In
TRICONTINENTAL
https://www.thetricontinental.org/pt-pt/dossie-35-crepusculo/
4/1/2021
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/eua/crepusculo_04jan21.html
4/1/2021
/A História frequentemente se move em saltos, solavancos e em ziguezague/.
– Friedrich Engels, /Das Volk/, n.16, 20 de agosto de 1859
Em 1492, quando Cristóvão Colombo chegou ao Caribe, a história começou a
dividir-se em duas. Antes desse momento, nenhum império havia tido
alcance planetário. A partir daquele ano, as grandes potências europeias
passaram a dominar o mundo e, a partir do final do século XVII, essa
dominação foi organizada e legitimada em nome da ideia de raça, uma
construção com consequências catastróficas para a humanidade.
A autoridade colonial enfrentou constante resistência. Os intelectuais
colonialistas imaginavam a si mesmos como figuras da Grécia Antiga, como
Hércules guerreando contra a monstruosa Hidra de Lerna – rebeliões no
mar, nas /plantations/, nas montanhas e florestas, nas tabernas dos
portos, nas terras comuns que sobreviveram fora do alcance do poder
colonial e nos novos espaços insurgentes criados por aqueles que
fugiam[1] <#_ftn0>. Quando o capitalismo, enraizado na /plantation/
colonial, começou a agarrar o planeta com seus tentáculos, a fábrica e a
cidade tornaram-se locais-chave de luta.
Se houve uma revolução que marcou o início do fim da época colonial e
que inaugurou uma nova civilização liderada pelos trabalhadores, essa
foi a Revolução Haitiana de 1804. Os africanos escravizados derrotaram
as quatro maiores potências europeias da época, conquistaram sua
liberdade e declararam uma República independente. Essa revolução foi
rapidamente interrompida. Em 1825, os franceses enviaram doze navios de
guerra para exigir que a nova República pagasse uma indenização aos
ex-proprietários das /plantations/, cujo valor seria equivalente a mais
de 20 bilhões de dólares hoje[2] <#_ftn1>. A afirmação da liberdade foi
recebida com a imposição de dívidas, uma tática de dominação neocolonial
que seria explorada impiedosamente contra as lutas de libertação do
século seguinte.
A Segunda Guerra Mundial, resultado da tentativa dos fascistas alemães
de retornar às práticas coloniais europeias, levou as potências do velho
continente a uma terrível conflagração que as deixou, ao final,
gravemente enfraquecidas. Foram então os EUA, a mais poderosa colônia
europeia de povoamento, que assumiram a gestão neocolonial do planeta.
Agora, quase oitenta anos depois, a primazia dos EUA entra em seu
crepúsculo. Alguns intelectuais estadunidenses, remontando à Grécia
Antiga, argumentam que a ascensão da China ameaça os EUA e torna a
guerra inevitável. Essa teoria, conhecida como a armadilha de Tucídides,
é extraída do argumento da /História da Guerra do Peloponeso,/ em que a
ascensão de Atenas levou Esparta a uma guerra necessária em defesa de
seus interesses.² Os EUA impuseram um conflito hostil à China e a outros
países que consideram uma ameaça. A China não pretende suplantar os EUA,
mas apenas inaugurar uma ordem mundial multipolar.
A ideia de uma armadilha de Tucídides faz parte da guerra híbrida que
agora domina o planeta.
Este dossiê n. 36 (jan. 2021) explora o surgimento de uma nova guerra
fria imposta pelos Estados Unidos à China e as formas de guerra híbrida
que têm sido utilizadas como parte desse novo cenário estratégico.
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*Parte 1: o século estadunidense*
A equipe de Planejamento de Políticas do Departamento de Estado dos EUA
distribuiu um memorando, no final da década de 1940, no qual argumentava
que “buscar menos que um poder preponderante é optar pela derrota. O
poder preponderante deve ser o objeto da política dos Estados Unidos”[3]
<#_ftn2>. Estes emergiram da terrível violência da Segunda Guerra
Mundial como a economia mais poderosa, com uma infraestrutura intacta e
uma força militar impressionante que possuía a arma mais perigosa: a
bomba nuclear. O país fez uso dessas vantagens para estabelecer uma
série de instituições cujo objetivo era estender o poder dos EUA
globalmente. Entre elas, instituições políticas multilaterais (como as
Nações Unidas), instituições econômicas multilaterais (como o Fundo
Monetário Internacional e o Banco Mundial), instituições de segurança
regionais (como a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a
Organização do Tratado Central e a Organização do Tratado do Sudeste
Asiático) e instituições políticas regionais (como a Organização dos
Estados Americanos).
Os EUA agiram rapidamente para conter os novos Estados que emergiram das
lutas anticoloniais. Patrice Lumumba, recém-eleito presidente do Congo,
foi assassinado em um complô apoiado por Washington em 1961. Movimentos
radicais foram combatidos de forma impiedosa. Na Indonésia, mais de um
milhão de pessoas foram assassinadas enquanto militares, agindo com o
apoio estadunidense, tentavam destruir o Partido Comunista da Indonésia
e sua base de apoio após o golpe de 1965[4] <#_ftn3>.
A União Soviética e outros Estados comunistas, bem como setores radicais
das forças anticoloniais no Terceiro Mundo, funcionaram como um freio
parcial às ambições dos EUA. Quando a URSS começou a se fragmentar em
1990, esse escudo desapareceu e o acelerador da primazia dos Estados
Unidos atingiu a velocidade máxima. O /US Defense Planning Guidance/
[Orientações para o planejamento de defesa], de 1990, presidido por Dick
Cheney, deixou evidente sua agenda:
Nosso primeiro objetivo é evitar o ressurgimento de um novo rival, seja
no território da ex-União Soviética seja em outro lugar […] Esta é uma
consideração dominante subjacente à nova estratégia de defesa regional e
exige que nos esforcemos para impedir qualquer potência hostil de
dominar uma região cujos recursos seriam, sob controle consolidado,
suficientes para gerar poder global. […] Nossa estratégia deve agora
voltar a se concentrar em impedir o surgimento de qualquer potencial
futuro competidor global.[5] <#_ftn4>
Em 2000, o Projeto para um Novo Século Americano publicou /Rebuilding
America’s Defenses/ [Reconstruindo as defesas estadunidenses]. O
relatório informou que a primazia dos EUA “deve ter uma base segura na
inquestionável preeminência militar dos EUA”[6] <#_ftn5>. O
financiamento para as Forças Armadas dos EUA expandiu astronomicamente
antes do ataque da Al Qaeda em 11 de setembro de 2001. Em 2002, a
/Estratégia de Segurança Nacional/ dos /Estados Unidos da América, /do
presidente George W. Bush, afirmava que “Nossas forças serão fortes o
suficiente para dissuadir adversários em potencial de buscar um aumento
militar na esperança de superar ou igualar o poder dos Estados
Unidos”[7] <#_ftn6>. Em 2019, os gastos militares dos EUA – 732 bilhões
de dólares[8] <#_ftn7> (1 trilhão se adicionarmos o orçamento de
inteligência em grande parte sigiloso, mas estimável) – eram maiores que
os dez países seguintes juntos. Todo inventário de armas conhecido
mostra que os EUA têm uma capacidade muito maior de causar estragos do
que qualquer outro país; mas o setor de segurança dos Estados Unidos
agora entende que, embora possa mandar aos ares um país, não pode mais
subordinar todos os países apenas por meio do poderio militar.
Os EUA usaram seu sistema de aliança anterior do tipo /hub and spokes
/[centros e raios] para estender e consolidar seu poder global. Alguns
pilares-chave desse sistema precisam ser claramente compreendidos:
1. Os Estados Unidos estavam no centro, enquanto seus principais
aliados (Reino Unido, França, Alemanha, Japão e outros) eram seus
raios. No limite externo desses raios estavam seus aliados
subsidiários, como Colômbia, Egito, Israel, Arábia Saudita,
Tailândia e outros. Esses aliados continuam sendo essenciais para o
alcance global do poder dos EUA, uma vez que operam contra
adversários com total apoio de Washington e fornecem aos militares
estadunidenses bases, inteligência e capacidade logística. Qualquer
desafio colocado a esses aliados é rapidamente eliminado com toda a
força, conforme ficou evidente no ataque ao Iraque (1991) e no Plano
Colômbia (1999).
2. O surgimento de qualquer “futuro competidor global em potencial”,
como o /US Defense Planning Guidance/ [Orientações para o
planejamento de defesa] de 1990 afirmava, deveria ser detido por
meio do sistema de alianças. A pressão foi construída ao redor da
China e Rússia por meio da expansão da Otan na Europa Oriental e com
o aumento das forças dos EUA na região da Orla do Pacífico. A
eleição de Hugo Chávez na Venezuela (1998), o surgimento de um novo
conjunto de líderes sul-americanos de esquerda e um novo impulso
para a integração regional (como a Aliança Bolivariana para as
Américas – Alba) precisavam ser desestabilizados. Esse desafio
começou com uma tentativa de golpe militar contra o governo de
Chávez em 2002. Dois anos depois, Jean-Bertrand Aristide, o
presidente haitiano progressista eleito por uma maioria esmagadora,
foi derrocado com sucesso por um golpe apoiado pelos Estados Unidos.
A isso se seguiram as guerras híbridas.
3. A cadeia global de /commodities/ desenvolvida para beneficiar as
corporações multinacionais ocidentais precisava ser protegida a todo
custo. A revolução eletrônica trouxe uma nova era que viu a
capacidade de um computador dobrar a cada 18 ou 24 meses. Entre 1955
e 2015, o poder de um computador aumentou mais de um trilhão de
vezes. Novas forças produtivas inauguraram o fim do velho sistema
fabril industrial, centralizado e grande. O Congresso dos Estados
Unidos estendeu as leis de propriedade intelectual para proteção de
direitos autorais primeiro para 28 anos em 1976 e depois para cem
anos em 1998. Esse sistema pernicioso foi aprovado pela Organização
Mundial do Comércio em 1994.
A habilidade de desmontar grandes fábricas, distribuí-las
globalmente e introduzir sistemas de depósito /just-in-time/ minou a
soberania nacional e o poder sindical. O poder diplomático e militar
foi implantado para garantir que nenhuma alternativa a esses
arranjos seria possível. Mecanismos como a Guerra às Drogas e a
Guerra ao Terror foram usados para atacar quaisquer enfrentamentos à
cadeia global de /commodities/ que começou nas “zonas de sacrifício”
onde as matérias-primas são extraídas ou cultivadas.
4. O complexo Dólar-Wall Street, que dominou os sistemas econômicos e
financeiros por décadas, não poderia ser desestabilizado por novas
moedas globais que poderiam representar uma ameaça ao complexo
Dólar-Wall Street de várias maneiras: poderiam ser usadas como
reservas e para transações que prejudicariam o dólar; poderiam ser
usadas por novos bancos de desenvolvimento ou por procedimentos que
enfraqueceriam o FMI e o Banco Mundial; ou ainda serem usadas por
novas instituições financeiras para contornar as redes financeiras
dominadas pelo Ocidente e enraizadas no Departamento do Tesouro dos
Estados Unidos, nos bancos financeiros do eixo Wall Street-City de
Londres e Frankfurt e nas redes de transferência de dinheiro (como a
do sistema SWIFT sediado na Bélgica).
A guerra ilegal dos EUA no Iraque (2003) e a crise de crédito (2007)
mostraram o enfraquecimento do poder dos EUA. A máquina militar dos EUA
poderia facilmente destruir as instituições de um país – como ficou
demonstrado no Iraque em 2003 e na Líbia em 2011 –, mas não poderia
subordinar suas populações. Batalhas podiam ser vencidas, mas não
guerras de longo prazo.
A crise de crédito revelou o enfraquecimento interno da economia dos
EUA, onde principalmente o consumismo induzido pelo crédito permitiu que
o mito do “sonho americano” permanecesse intacto mesmo com a estagnação
dos salários e com uma crise estrutural de empregos afligindo a vida da
classe trabalhadora e até mesmo da classe média. Entre 1979 e 2018, a
média anual dos salários por hora nos EUA, em dólares constantes,
diminuiu[9] <#_ftn8>. Essas fraquezas levaram a um debate sobre o
declínio dos EUA, embora seus reservatórios da dominação – como o poder
militar, econômico, financeiro e cultural ou “soft power” –
permanecessem intactos. Os presidentes George W. Bush, Barack Obama e
Donald Trump não conseguiram reverter a queda da economia estadunidense,
mais uma vez mantida pela autoridade global do dólar, entre outros
processos.
Em seu discurso de inauguração, em 2017, Trump lamentou a “carnificina”
que atingiu a classe trabalhadora e a classe média nos EUA, que viviam
próximas a “fábricas enferrujadas espalhadas como lápides pela paisagem
de nossa nação”[10] <#_ftn9>. A solução de Trump para essa “carnificina”
foi cinicamente racista, culpando os migrantes sem documentos (e o
México), bem como o roubo de propriedade intelectual e a produção
subsidiada no exterior (e na China). A agenda de Biden não tem nada
substancial a dizer para além do que já disseram Bush, Obama e Trump:
reconstruir a economia dos EUA e usar seu poder para defender seus
interesses. Como observou o /site/ da campanha de Biden, “Biden nunca
hesitará em proteger o povo americano, inclusive, quando necessário,
usando a força. Temos os militares mais fortes do mundo – e como
presidente, Biden garantirá que continue assim”[11] <#_ftn10>.
Os EUA estão se aproximando de uma posição em que não serão mais a maior
economia do mundo, seja qual for a medida, em um futuro próximo. Em
paridade de poder de compra (o fluxo físico real de bens e serviços), a
economia da China já é 16% maior que a dos EUA. Em 2025, o FMI projeta
que será 39% maior. Como acontece com quase todos os países em
desenvolvimento, o tamanho da economia chinesa é subestimado quando
calculado segundo taxas de câmbio atuais, mas já é 73% do tamanho da
economia dos EUA nas taxas de câmbio atuais e, com base nas projeções do
FMI, esse número saltará para 90% em 2025.
No final da década, o PIB da China será maior do que o dos EUA, não
importa como for medido. Já sentimos a mudança. Lojas e /shopping
centers/ trazem ainda as características da cultura dos Estados Unidos,
mas seus produtos são feitos na China. Em outras palavras, os EUA
continuam definindo a /forma/, mas a China já fornece o /conteúdo/.
Gradualmente, a forma ficará alinhada ao conteúdo. Uma década atrás, a
China tinha pouquíssimas marcas globalmente conhecidas, mas agora
Huawei, TikTok, Alibaba e outras são conhecidas em todo o mundo e alvo
de comentários diários nos editoriais de economia.
A reação a esses fatos assumiu muitas formas, das quais as mais comuns
são também as mais extremadas. Há uma literatura de /catastrofismo/, uma
antecipação do colapso dos EUA de sua posição de grande potência. Essa
visão é que a implosão da economia dos EUA – que hoje luta diante da
pandemia, apesar das altas em Wall Street e das injeções de crédito do
Federal Reserve – levará a uma perda de poder estrutural por parte das
instituições dirigidas pelos EUA e ao aumento do uso do poder militar
para manter a autoridade do país. Em contraste está a literatura do
/renascimento/, geralmente com base em esperanças e projeções de um
segundo “século americano” na ausência de dados sérios. Essa visão
sugere que a economia dos EUA é resiliente e o poder do dólar,
sacrossanto, além de uma fé inabalável na engenhosidade das empresas
sediadas nos EUA que seriam capazes de destruir criativamente antigos
setores simplesmente para que voltem a crescer – como uma fênix – com
novas invenções para impulsionar o país. O poderio deste, acredita-se,
não deriva da General Motors de ontem (agora voltada a serviços
financeiros, além de seu papel histórico como uma empresa de
automóveis), mas da Microsoft de amanhã.
Nenhuma dessas visões – colapso ou renascimento – é completa. Ambos
possuem elementos de verdade, mas apenas parcialmente. Há uma grande
debilidade na manutenção da primazia dos EUA, evidenciada pelo fracasso
dos EUA em impedir os avanços científicos e tecnológicos da China –
entre outros países – o que ameaça o monopólio que os EUA têm sobre a
inovação tecnológica. É essa alta tecnologia e o monopólio da renda da
propriedade intelectual que impulsionam a economia estadunidense. O
conflito com a China é decorrente do reconhecimento, por uma grande
parte da elite dos EUA, de que o crescente avanço científico e
tecnológico do país asiático é uma ameaça existencial à sua primazia. O
“giro para a Ásia” de Obama, em 2015, foi baseado no temor desse aumento
e na percepção de que não haveria um Gorbachev chinês para destruir a
China internamente.
A ascensão da China representa uma ameaça existencial à hegemonia
estadunidense. Assim como a dominação europeia inaugurada em 1492, as
tentativas dos EUA de preservar seu domínio global podem ser lidas em
termos raciais.
O declínio histórico dos EUA está ocorrendo enquanto ele ainda possui
grandes reservas históricas; haverá um longo período no qual os EUA
continuarão a realizar contra-ataques diante de seu declínio. Não por
acaso a obra /Sobre a guerra prolongada/ de Mao Zedong voltou a ser uma
das mais citadas na China.
*Parte 2: A Guerra na Eurásia*
The War in Eurasia
Em abril de 2019, o Comando Indo-Pacífico dos Estados Unidos divulgou um
documento intitulado /Regain the Advantage/ [Retomar a vantagem], no
qual apontava para a “nova ameaça de competição que enfrentamos das
Grandes Potências. […] Sem um impedimento convencional válido e
convincente, China e Rússia serão encorajadas a atuar na região para
suplantar os EUA e seus interesses”. O almirante Philip Davidson, líder
do Comando Indo-Pacífico, pediu ao Congresso que financiasse “forças
combinadas rotativas e avançadas” como a “forma mais confiável de
demonstrar aos EUA compromisso e determinação com potenciais
adversários”[12] <#_ftn11>. O relatório tem um espantoso ar de ficção
científica e expressa o desejo de criar “redes de ataque de precisão com
alta capacidade de sobrevivência” ao longo da Orla do Pacífico, com
mísseis – incluindo ogivas nucleares – e instalações de radar de Palau
[arquipélago no oeste do Pacífico] ao espaço sideral. Novos sistemas
bélicos já em desenvolvimento aumentariam a pressão dos EUA sobre a
China e a Rússia ao longo de seus litorais. Essas armas incluem mísseis
de cruzeiro hipersônicos, que reduzem o tempo de ataque contra alvos
chineses e russos para minutos após o lançamento.
Após o colapso da URSS e do sistema estatal comunista, os EUA
descobriram que podiam exercer seu poder sem grandes entraves. Por
exemplo, poderiam bombardear o Iraque e a Iugoslávia, e pressionar por
um sistema de comércio e investimento que favorecesse seus aliados. Toda
a década de 1990 pareceu uma volta da vitória, com os presidentes George
H. W. Bush e Bill Clinton exibindo-se em reuniões internacionais,
sorrindo para as câmeras e garantindo que todos vissem o mundo através
de seus olhos, ao passo que mantinham os “Estados rebeldes” (Irã e
Coreia do Norte, por exemplo) na mira de suas armas. Naquele momento,
China e a Rússia aparentemente estavam comprometidas com a liderança dos
EUA.
Nas décadas seguintes, muita coisa mudou. O crescimento econômico da
China foi espetacular. A renda disponível /per capita/ em termos reais
cresceu 96,6% apenas no período 2011-2019[13] <#_ftn12>. Em 23 de
novembro último, a China anunciou que havia eliminado a pobreza absoluta
em todo o país e usou seu alto nível de investimento para construir
infraestrutura dentro do país. Utilizou também sua enorme quantidade de
câmbio estrangeiro em auxílios para todo o mundo por meio da Iniciativa
de Cinturão e Rota, iniciada em 2013. Enquanto os EUA estavam atolados
em suas guerras no Afeganistão, Iraque e outros lugares, a China
construiu um sistema de comércio que liga grandes partes do mundo à sua
locomotiva econômica. Durante a pandemia de covid-19, a China foi a
primeira a quebrar a cadeia de transmissão e a retomar a atividade
econômica quase normal. Como consequência, o FMI projeta que quase 60%
do PIB global estimado em 2020-2021 será devido ao crescimento chinês.
A chave para o novo período não é apenas seu dinamismo econômico, mas
seus vínculos estreitos com a Rússia. As novas conexões impulsionadas
pela Iniciativa de Cinturão e Rota estão ocorrendo ao longo do flanco
sul da Ásia para a Europa e África. Já suas ligações com a Rússia
permitem a integração ao longo do flanco norte da Ásia. Os novos laços
entre os dois gigantes asiáticos culminaram em uma série de acordos
econômicos e militares assinados nos últimos cinco anos.
Desde os primeiros anos do século XXI, os países do Sul Global –
incluindo a China – têm procurado criar instituições regionais e
multilaterais baseadas no direito internacional e em uma agenda de
desenvolvimento genuína para os povos do mundo. Essas instituições devem
transcender o período de primazia dos Estados Unidos em grande escala
que se abriu após a queda da URSS. Uma série de iniciativas desse tipo
foi desenvolvida, incluindo plataformas regionais – como a Organização
de Cooperação de Xangai na Ásia (2001) e a Aliança Bolivariana para as
Américas (Alba) na América Latina e Caribe (2004) –, bem como
plataformas mais globais – como o Diálogo Índia, Brasil e África do Sul
(Ibas) (2003) e os Brics, formado por Brasil, Rússia, Índia, China e
África do Sul (2009). A 14^a cúpula do Movimento Não-Alinhado em Havana
(2006) girou em torno da questão do regionalismo e multilateralismo. Na
reunião do Brics, em 2013, os líderes divulgaram a Declaração de
eThekwini, que resumiu o espírito dessa iniciativa, indicando seu
compromisso com a “promoção do direito internacional, do
multilateralismo e do papel central da ONU”, bem como a necessidade de
“mais esforços regionais eficazes” para acabar com o conflito e promover
o desenvolvimento.
O projeto Brics desenvolveu um conjunto de propostas para a criação de
novas instituições multilaterais em substituição às instituições
dominadas pelos Estados Unidos. Um Acordo de Reserva de Contingência,
por exemplo, foi criado para complementar o FMI com liquidez de curto
prazo para países com problemas cambiais, e um Banco Brics foi formado,
desafiando o Banco Mundial e o Banco Asiático de Desenvolvimento. Mas
todo o projeto do Brics tinha limites desde o início: não articulava
nenhuma alternativa ideológica ou política ao neoliberalismo, carecia de
instituições independentes importantes (mesmo o Acordo de Reserva de
Contingência usaria dados e análises do FMI) e não tinha capacidade
política ou militar para conter a dominação militar dos EUA.
Projetos regionais como a Alba desenvolveram formas alternativas de
integração que experimentaram construir relações interestatais e novas
instituições. Essa Aliança levou à criação de novas formações regionais,
como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul, 2004) e a Comunidade de
Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac, 2010), e criou um novo
banco regional (BancoSul), uma nova moeda virtual (Sucre), uma nova rede
de comunicações (ancorada na TeleSur) e uma nova atitude de
independência do Sul Global em relação ao poderio estadunidense. Foi
precisamente por isso que os EUA gastaram esforços e recursos para minar
muitos dos movimentos da Alba, como por meio de um golpe à antiga em
Honduras (2009) e um golpe jurídico (/lawfare/) no Brasil (2016)[14]
<#_ftn13>. Esses ataques contra a integração social e política regional
na América do Sul, juntamente com a subordinação do hemisfério ao poder
dos EUA, têm sido as características definidoras de suas políticas
voltadas para a América Latina e o Caribe nos últimos dois séculos.
As limitações internas do projeto do Brics corroeram seu potencial
quando os acontecimentos políticos na Índia (2013) e no Brasil (2016)
trouxeram a extrema-direita ao poder. Ambos os países subordinaram
imediatamente sua política externa a Washington, sem sequer querer ser
parte de qualquer regionalismo ou multilateralismo. Não há mais a
possibilidade nem mesmo de um subimperialismo, como argumentou Ruy Mauro
Marini em 1965, já que agora essas frações da elite em lugares como
Brasil e Índia se contentavam em ocupar os postos designados pelo
Departamento de Estado dos EUA em vez de dirigir sua própria política em
suas regiões.
A saída do Brasil e da Índia de qualquer liderança efetiva do bloco
Brics veio ao lado de tensões políticas na África do Sul, onde o
ex-presidente Jacob Zuma transformou o Congresso Nacional Africano
(CNA), antes um movimento de libertação nacional, em uma cleptocracia
repressiva. Nos últimos cinco anos, o projeto do Brics não conseguiu
avançar em nenhuma agenda significativa, embora sua existência
continuada como um grupo que inclui as maiores economias em
desenvolvimento do mundo tenha algum significado. Apesar das diferenças,
China, Índia e Rússia também continuaram a cooperar na Organização de
Cooperação de Xangai.
É nesse contexto que assistimos ao crescimento da aliança chinesa e
russa, impulsionada pelos ataques dos Estados Unidos e de outras
potências ocidentais e pelo desgaste do Brics. Um grande abismo entre a
China e a Rússia havia surgido durante a disputa sino-soviética de 1956,
e as tensões entre os dois países continuaram a persistir nos anos
imediatamente posteriores à queda da URSS, com uma Moscou inicialmente
flexível olhando para o Ocidente em busca de alianças. Foi apenas em
2008 que ambas as nações finalmente resolveram uma disputa de fronteira
de longa data, abrindo caminho para os laços do período atual.
Nesse período, os legisladores dos EUA procuraram encurralar uma Rússia
enfraquecida em um projeto para cercar a China. O Ocidente exagerou e
tentou colocar a Rússia de joelhos por meio da expansão da Otan em
direção à Europa Oriental, quebrando uma promessa feita durante a
dissolução da República Democrática Alemã (RDA). O poder russo parecia
destinado a ser totalmente drenado quando o Ocidente ameaçou os dois
únicos portos de água quente da Rússia em Sebastopol (Crimeia) e em
Tartus (Síria). Um conjunto de outras ações agressivas do Ocidente
contra a Rússia – incluindo a expulsão do país do G8 em 2014 e um severo
regime de sanções instituído pelos EUA – atingiu vitais interesses
russos, ofendeu enormemente a opinião nacional russa, que estava
profundamente envolvida com os eventos na Ucrânia, e empurrou a Rússia
para um maior alinhamento com a China.
Em 2019, os presidentes dos dois países, Xi Jinping e Vladimir Putin,
falaram no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, uma reunião
anual de negócios iniciada em 1997, cujo escopo inclui cada vez mais a
avaliação das relações da Rússia com a Ásia, bem como com o Ocidente. Xi
e Putin falaram dos laços próximos entre seus países, enfatizando que os
dois haviam se encontrado pessoalmente pelo menos trinta vezes desde
2013. Entre os muitos acordos para incrementar o comércio, os dois
líderes concordaram em aumentar o comércio bilateral usando o rublo e o
/yuan/ – em vez do dólar – para reconciliar os pagamentos
transnacionais. Essa esnobada não foi a única coisa que alarmou
Washington. O mesmo aconteceu com o aumento nas vendas de armas entre os
dois países, que veio junto com exercícios militares conjuntos mais
frequentes: em setembro de 2018, um terço dos soldados russos participou
dos exercícios militares Vostok 2018 entre as duas potências[15]
<#_ftn14>. Em outubro de 2020, quando Putin foi questionado se formaria
com a China uma “aliança militar”, ele respondeu: “Não precisamos disso,
mas, em teoria, é perfeitamente possível imaginar”[16] <#_ftn15>.
O enfraquecimento da Rússia em termos políticos e militares certamente
fez parte da expansão da Otan para o leste, mas a China tem sido o
principal alvo econômico dos EUA e seus aliados. Em particular, há
grande ansiedade em relação ao desenvolvimento das empresas chinesas de
alta tecnologia que produzem equipamentos e softwares para
telecomunicações, robótica e inteligência artificial, entre outras. Uma
coisa era a China ser a oficina do mundo, seus trabalhadores serem
empregados por corporações multinacionais, enquanto suas próprias
empresas permaneciam no setor de tecnologia média; outra é se tornar um
importante produtor tecnológico mundial. Essa é a razão pela qual o
governo dos EUA, empurrado por empresas do Vale do Silício, foi atrás da
Huawei e da ZTE. Em abril de 2019, o Conselho de Inovação em Defesa dos
EUA observou:
O líder do 5G deve ganhar centenas de bilhões de dólares em receita na
próxima década, com ampla criação de empregos em todo o setor de
tecnologia sem fio. O 5G também tem o potencial de revolucionar outras
indústrias, já que tecnologias como veículos autônomos obterão enormes
benefícios com a transferência de dados mais rápida e maior. O 5G também
aprimorará a Internet das Coisas (IoT, sigla em inglês), aumentando a
quantidade e a velocidade do fluxo de dados entre vários dispositivos, e
pode até mesmo substituir o /backbone/ de fibra ótica usado em tantos
lares. O país que possuir 5G possuirá muitas dessas inovações e definirá
os padrões para o resto do mundo[17] <#_ftn16>.
Esse país provavelmente não será os EUA. Mesmo o Defense Innovation
Board [Conselho de Inovações em Defesa] admite que nem a AT&T nem a
Verizon serão capazes de fabricar o tipo de transmissor necessário para
os novos sistemas. Tampouco é provável que a Suécia (Ericsson) ou a
Finlândia (Nokia) consigam, já que as empresas chinesas estão muito à
frente. Essa é uma grave ameaça às perspectivas futuras da economia dos
EUA, razão pela qual o governo tem usado todos os instrumentos para
restringir o crescimento da China.
Nenhuma das acusações amplamente falsas contra as empresas chinesas (de
roubo de propriedade intelectual ou de erosão da privacidade) dissuadiu
clientes em todo o mundo. O que impediu as perspectivas comerciais
dessas empresas foi a pressão política direta dos EUA sobre os governos
para conter ou proibir a entrada da Huawei e da ZTE. Os EUA reconhecem
que o rápido crescimento tecnológico chinês é uma ameaça geracional à
principal vantagem que tiveram nas últimas décadas, ou seja, sua
superioridade tecnológica. É para evitar a ascensão tecnológica do país
asiático que os EUA têm usado todos os recursos, desde a pressão
diplomática até a militar, mas nenhuma delas parece estar funcionando.
A China, por enquanto, está decidida. Não está disposta a recuar e
desmantelar seus ganhos tecnológicos. Nenhuma resolução é possível a
menos que haja um reconhecimento da realidade: a China é igual ou mais
avançada do que o Ocidente em termos de produção tecnológica em alguns
setores, e a tendência é isso aumentar gradualmente, e não é nada que
precise ser ou possa ser revertido por meio da guerra.
Em 2001, o então vice-presidente da China, Hu Jintao, disse que “a
multipolaridade constitui uma base importante na política externa
chinesa”[18] <#_ftn17>. A China continua comprometida com a
multipolaridade, evitando qualquer perspectiva de um “século chinês”
após o “século americano”. A posição chinesa é espelhada em alguns dos
documentos estratégicos dos EUA, como o relatório do Conselho Nacional
de Inteligência dos EUA, de 2012, que afirma que “até 2030, nenhum país
– os EUA, a China ou qualquer outro grande país – será um poder
hegemônico”[19] <#_ftn18>. O que existirá, em vez disso, é um “poder
difuso”. Mas outros membros da comunidade de análise estratégica dos
Estados Unidos, como Richard N. Haass, presidente do Conselho de
Relações Exteriores, argumentam que, se os Estados Unidos não
continuarem sua “liderança” da ordem global, a alternativa “não é uma
era dominada pela China ou qualquer outro país, mas sim um tempo caótico
em que os problemas regionais e globais oprimirão a vontade coletiva
mundial e a capacidade de enfrentá-los”[20] <#_ftn19>.
A multipolaridade, ou um declínio na primazia dos EUA, afirma Haass,
trará o caos: “Os americanos não estariam seguros ou seriam prósperos em
tal mundo”, escreveu Haass em /Foreign Policy Begins at Home/ [Política
externa começa em casa] (2013). “Nossa Idade das Trevas já foi
suficiente; a última coisa que precisamos é outra”[21] <#_ftn20>. Para
liberais como Haass e neofascistas como Trump, não há substituto para a
primazia dos EUA. É esse fracasso das elites dos EUA em compreender a
inevitabilidade de um futuro multipolar que as leva a novas guerras
frias, perigosas intervenções militares e guerras híbridas de todos os
tipos.
*Parte 3: Guerra híbrida*
Em 2015, Andrew Korybko publicou um livro fascinante chamado /Hybrid
Wars: The Indirect Adaptive Approach to Regime Change/ [Guerras
híbridas: a abordagem adaptativa indireta para a mudança de regime]. Por
meio da leitura de documentos militares públicos e vazados dos EUA,
Korybko expôs as várias estratégias usadas para derrubar governos tidos
como entraves ao poder dos EUA. Korybko explica o objetivo de uma guerra
híbrida citando o documento do Exército estadunidense classificado como
/Special Forces Unconventional Warfare /[Forças Especiais para Guerras
não Convencionais]: “degradar o aparato de segurança do governo (os
elementos militares e policiais do poder nacional) ao ponto em que o
governo fique suscetível à derrota”. A questão nem sempre é substituir
um governo hostil aos interesses dos EUA por outro favorável a ele. “Em
sua essência, a guerra híbrida é o caos administrado”[22] <#_ftn21>,
escreve Korybko. Um conflito de baixa intensidade que gradualmente
esvazia o país de sua resiliência e cria confusão na região é talvez o
objetivo dos tipos de conflitos que são processados por guerras de
informação e sanções, dois elementos-chave no conjunto de ferramentas da
guerra híbrida.
A guerra híbrida liderada pelos Estados Unidos se desdobra de forma mais
feroz contra o Irã e a Venezuela, países que vêm sendo enfraquecidos
pela guerra de informação e pelo caos no mercado de petróleo. O que
impede esses países de entrar em colapso diante de tal pressão são as
reservas de legitimidade produzidas por seus próprios processos sociais
e políticos. Na Venezuela, por exemplo, a mobilização regular do povo
tanto para manifestações como para o trabalho prático de reprodução
social em escala comunitária afirma a legitimidade popular de seu
processo revolucionário. As guerras híbridas nem sempre têm êxito, mas –
mesmo quando não o fazem – ameaçam os laços sociais básicos entre as
pessoas.
Com base em Korybko e em uma série de documentos do governo dos EUA,
aqui estão quatro dos aspectos mais importantes da estratégia de guerra
híbrida:
1. *Guerra informacional*. Em 1989, William Lind, um autor que ajudou a
desenvolver a teoria da guerra de quarta geração (um sinônimo para
guerras híbridas), escreveu que “as notícias de televisão podem se
tornar uma arma operacional mais poderosa que as divisões
blindadas”[23] <#_ftn22>. Controlar informações e definir pessoas e
eventos molda a maneira como os conflitos são entendidos. O controle
sobre o enredo é essencial, mas esse controle não pode ser visto
como propaganda nua e crua. A narrativa é tão cuidadosamente
definida que tudo o que vem de um “Estado pária” é interpretado como
falso, e o que os EUA e seus aliados dizem é visto como verdadeiro.
Mesmo que sejam feitas declarações falsas – como a de que o Iraque
tinha armas de destruição em massa –, elas são consideradas erros e
não mentiras.
Ideias racistas profundamente arraigadas são mobilizadas para
construir certos líderes como ditadores – ou mesmo como genocidas –
enquanto os líderes ocidentais que enviam bombardeiros para
aniquilar cidades são vendidos como humanitários. Esse exercício
básico de /branding/ de líderes políticos é característico do poder
da guerra de informação. Os Estados Unidos podem ser responsáveis
por mais de um milhão de mortos no Iraque, mas sempre será Saddam
Hussein – e não George W. Bush – quem será visto como um criminoso
de guerra e, portanto, merecedor de seu terrível destino. Os
muçulmanos são sempre terroristas, os russos sempre mafiosos ou
espiões, e o Estado considerado um adversário não é mais liderado
por um governo, mas por um “regime”. Reivindicações
descontroladamente desequilibradas sobre violações dos direitos
humanos se tornam uma ferramenta central para deslegitimar
dissidentes, seja por Estados seja por movimentos populares. Há uma
“porta giratória” entre a Human Rights Watch, uma organização criada
por atores dos EUA durante a Guerra Fria, e funcionários de política
externa do governo dos EUA.
2. *Guerra diplomática.* Remover o representante legítimo de um país de
um órgão multilateral é uma maneira astuta de deslegitimar o governo
do país. Os EUA retiraram Cuba da Organização dos Estados Americanos
(OEA) em 1962 como punição exemplar a qualquer país que desafiasse
os EUA. Mas Cuba não invadiu os Estados Unidos; foi o contrário, no
episódio conhecido como Invasão da Baía dos Porcos, em 1961, e, se a
Carta da OEA fosse cumprida, os Estados Unidos deveriam perder seu
assento no organismo. Mas como este é um instrumento do poder dos
EUA, foi Cuba quem teve que se retirar. Expulsar o embaixador,
pressionar aliados a fazerem o mesmo, isolar o país nas Nações
Unidas – tudo isso faz parte dos mecanismos eficazes de uma guerra
diplomática.
3. *Guerra econômica*. As sanções estadunidenses e secundárias são
impostas ao adversário, que deve lutar para romper o embargo
estabelecido. Essas sanções impedem o país visado de utilizar os
canais normais de financiamento, incluindo o sistema SWIFT e as
redes bancárias internacionais. Evitam, assim, que o país importe
bens essenciais ou que inclusive possa pagar empresas de transporte
pelo trânsito de bens que outros estariam plenamente satisfeitos em
vender; impedem o acesso às contas bancárias do país em outros
Estados e a fundos-chave de desenvolvimento oferecidos pelo Banco
Mundial e fundos de emergência oferecidos pelo FMI. Em janeiro de
2019, quando houve uma tentativa de golpe na Venezuela, o embaixador
Idriss Jazairy, Relator Especial da ONU sobre o impacto negativo das
medidas coercivas unilaterais, disse: “Estou especialmente
preocupado em ouvir relatos de que essas sanções visam mudar o
governo Venezuela. A coerção, seja militar seja econômica, nunca
deve ser usada para buscar uma mudança de governo em um Estado
soberano. O uso de sanções por poderes externos para derrubar um
governo eleito viola todas as normas do direito internacional”[24]
<#_ftn23>.
4. *Guerra política.* Todo o espectro de informação e guerra
diplomática é usado para minar a legitimidade política de um governo
e para lançar dúvidas sobre todo o sistema político do país sob
ataque. Os processos eleitorais são descritos como fraudulentos, os
líderes políticos são difamados, o próprio sistema legal é usado
contra os líderes políticos populares através de um processo
conhecido como /lawfare/, e a fé em todo o sistema político é
corroída. Financiamentos são fornecidos a “grupos de oposição”,
incluindo organizações não governamentais, que muitas vezes se
tornam instrumentos das velhas elites. A difícil situação econômica
criada pela guerra econômica cria sérias tensões internas, que são
atribuídas ao governo por essa “oposição” e não à guerra econômica.
Fundos e apoio político são então concedidos à população
insatisfeita que, sentindo o peso dessa guerra política, começa a
apoiar a mudança de governo. As mídias sociais são utilizadas como
uma arma contra o governo, conforme descrito em/Special Forces
Unconventional Warfare /[Forças Especiais para Guerras não
Convencionais], o já citado documento de 2010. Esta é uma “revolução
colorida”, uma revolução dos de cima e não dos de baixo. Se há
repressão policial contra os protestos, mesmo que para deter
mobilizações que aterrorizam bairros populares e agridem fisicamente
a população, essa repressão é mostrada como autoritária ou mesmo
genocida. Em seguida, o clamor por “intervenção humanitária” começa
a levar a uma intervenção militar aberta dos Estados Unidos. O
Estado Maior Conjunto dos EUA, o /Joint Vision 2020,/ sugere que um
dos objetivos é promover o caos na sociedade-alvo por meio das
chamadas “operações de informação” (incluindo “operações
psicológicas” e “ataques a redes de computadores”).
Em uma guerra híbrida, o agressor tem como alvo as vulnerabilidades de
uma sociedade por meio desses aspectos da guerra não militar
(informacional, diplomática, econômica e política) e aprofunda o caos
por meio de atos de sabotagem e ameaças de invasão. A pressão aumenta
sobre a sociedade-alvo, na qual a solidariedade e a resistência são
chamadas para evitar o colapso social e político total.
Entre as técnicas de guerra híbridas que os EUA empregam contra a China
estão a retórica hostil contra o governo e o povo chinês, distorções
sobre eventos em Hong Kong, Taiwan e Xinjiang e a descrição da pandemia
de coronavírus como um “vírus chinês”. A evidência não é tão importante
aqui quanto o uso de ideias racistas e anticomunistas mais antigas para
demonizar o país asiático. Mas essas técnicas não tiveram sucesso na
China, onde a classe média – o alvo de uma “revolução colorida” – não
tem nenhum apetite por derrubar o governo e demonstra estar satisfeita
com os rumos do país, cujo governo tem se esforçado para melhorar os
padrões de vida e foi capaz – ao contrário dos governos ocidentais – de
enfrentar a pandemia do coronavírus. Um estudo da Universidade de
Harvard publicado em julho de 2020 mostra que o governo liderado pelo
Partido Comunista da China aumentou sua aprovação de 2003 a 2016, em
grande parte por causa dos programas de bem-estar social e da luta
contra a corrupção impulsionada tanto pelo Partido Comunista da China
quanto pelo governo. A aprovação geral é de 95,5%[25] <#_ftn24>.
A época de dominação europeia do planeta, inaugurada em 1492, chegará ao
fim. Na verdade, já podemos vislumbrar seu fim. Mas surgem questões
importantes. Não sabemos quanto tempo levará o processo, quão efetiva e
devastadora será a resistência liderada pelos EUA, ou o que irá
substituí-la. Nossa tarefa é continuar, no presente, a resistência que
em 1804 derrotou as potências escravistas no Haiti, até que haja outra
data para colocar ao lado de 1492, uma data que marque o fim da
dominação do planeta pela Europa e suas colônias.
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*Notas*
[1] <#_ftnref0> Peter Linebaugh; Marcus Rediker, /The Many-Headed
Hydra/: /The Hidden History of the Revolutionary Atlantic, /Boston:
Beacon Press, 2000.
[2] <#_ftnref1> Dan Sperling, ‘In 1825, Haiti Paid France $21 Billion To
Preserve Its Independence – Time For France To Pay It Back’, /Forbes/, 6
dez. 2017. Disponível em:
https://www.forbes.com/sites/realspin/2017/12/06/in-1825-haiti-gained-independence-from-france-for-21-billion-its-time-for-france-to-pay-it-back.
Acesso em: 7 dez. 2020.
[3] <#_ftnref2> Citação retirada de Melvyn Leffler. A Preponderance of
Power: National Security, the Truman Administration, and the Cold War
(Palo Alto, CA: Stanford University Press, 1992), p.18-19.
[4] <#_ftnref3> Leia mais sobre a repressão ao Partido Comunista da
Indonésia após o golpe de 1965 em nosso dossiê: O legado do Lekra:
organizando a cultura revolucionária na Indonésia, 1 dez. 2020.
[5] <#_ftnref4> “Excerpts From Pentagon’s Plan: Prevent the Re-Emergence
of a New Rival”, New York Times, 8 mar. 1992. Disponível em:
https://www.nytimes.com/1992/03/08/world/excerpts-from-pentagon-s-plan-prevent-the-re-emergence-of-a-new-rival.html.
Acesso em: 7 dez. 2020.
[6] <#_ftnref5> Vijay Prashad, Balas de Washington: uma história da CIA,
golpes e assassinatos (São Paulo: Expressão Popular, 2020).
[7] <#_ftnref6> U.S. National Security Strategy: Transform America’s
National Security Institutions to Meet the Challenges and Opportunities
of the 21^st Century’, U.S. Department of State Archive, 20 set. 2001.
Disponível em: https://2001-2009.state.gov/r/pa/ei/wh/15430.htm
<https://2001-2009.state.gov/r/pa/ei/wh/15430.htm>. Acesso em: 7 dez. 2020.
[8] <#_ftnref7> Nan Tian; Alexandra Kuimova; Diego Lopes da Silva;
Pieter D. Wezeman; Siemon T. Wezeman, ‘Trends in World Military
Expenditure, 2019’, Stockholm International Peace Research Institute,
abr. 2020. Disponível em:
https://www.sipri.org/sites/default/files/2020-04/fs_2020_04_milex_0_0.pdf
<https://www.sipri.org/sites/default/files/2020-04/fs_2020_04_milex_0_0.pdf>.
Acesso em: 7 dez. 2020.
[9] <#_ftnref8> John Schmitt; Elise Gould; Josh Bivens, ‘America’s
slow-motion wage crisis’, Economic Policy Institute, 13 set. 2018.
Disponível em:
https://www.epi.org/publication/americas-slow-motion-wage-crisis-four-decades-of-slow-and-unequal-growth-2/
<https://www.epi.org/publication/americas-slow-motion-wage-crisis-four-decades-of-slow-and-unequal-growth-2/>.
Acesso em: 7 dez. 2020.
[10] <#_ftnref9> Donald J. Trump, ‘Inaugural Address: Remarks of
President Donald J. Trump – as prepared for delivery’, The White House,
20 jan. 2017. Disponível em:
https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/the-inaugural-address/
<https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/the-inaugural-address/>. Acesso
em: 7 dez. 2020.
[11] <#_ftnref10> ‘The Power of America’s Example: The Biden Plan for
Leading the Democratic World to Meet the Challenges of the 21^st
Century’, Joebiden.com, jul. 2019. Disponível em:
https://joebiden.com/americanleadership
<https://joebiden.com/americanleadership>. Acesso em: 7 dez. 2020.
[12] <#_ftnref11> ‘National Defense Authorization Act (NDAA) 2020
Section 1253 Assessment Executive Summary: Regain the Advantage’, U.S.
Indo-Pacific Command, 5 abr. 2020. Disponível em:
https://int.nyt.com/data/documenthelper/6864-national-defense-strategy-summ/8851517f5e10106bc3b1/optimized/full.pdf
<https://int.nyt.com/data/documenthelper/6864-national-defense-strategy-summ/8851517f5e10106bc3b1/optimized/full.pdf>.
Acesso em: 7 dez. 2020.
[13] <#_ftnref12> ‘Factbox: How close is China to complete building a
moderately prosperous society in all respects’, Xinhua, 2 ago. 2020.
Disponível em:
http://www.xinhuanet.com/english/2020-08/02/c_139259082.htm
<http://www.xinhuanet.com/english/2020-08/02/c_139259082.htm>. Acesso
em: 7 dez. 2020.
[14] <#_ftnref13> Para saber mais, leia nosso dossiê n.5 de 1 jun. 2018:
Lula e a Batalha pela Democracia. Disponível em:
https://www.thetricontinental.org/pt-pt/dossie-5-lula-a-a-batalha-da-democracia/
<https://www.thetricontinental.org/pt-pt/dossie-5-lula-a-a-batalha-da-democracia/>.
Acesso em: 7 dez. 2020.
[15] <#_ftnref14> ‘Russia and China hold the biggest military exercises
for decades’, /The Economist/, 6 set. 2018, Disponível em:
https://www.economist.com/europe/2018/09/06/russia-and-china-hold-the-biggest-military-exercises-for-decades
<https://www.economist.com/europe/2018/09/06/russia-and-china-hold-the-biggest-military-exercises-for-decades>.
Acesso em: 7 dez. 2020.
[16] <#_ftnref15> Vladimir Isachenko, ‘Putin: Russia-China military
alliance can’t be ruled out’. /AP News/, 22 out. 2020. Disponível em:
https://apnews.com/article/beijing-moscow-foreign-policy-russia-vladimir-putin-1d4b112d2fe8cb66192c5225f4d614c4
<https://apnews.com/article/beijing-moscow-foreign-policy-russia-vladimir-putin-1d4b112d2fe8cb66192c5225f4d614c4>.
Acesso em: 7 dez. 2020.
[17] <#_ftnref16> Milo Medin; Gilman Louie. ‘The 5G Ecosystem: Risks &
Opportunities for DoD Defense Innovation Board’. Colaboradores: Kurt
DelBene; Michael McQuade; Richard Murray; Mark Sirangelo. /Defense
Innovation Board/, 3 abr. 2019. Disponível em:
https://media.defense.gov/2019/Apr/04/2002109654/-1/-1/0/DIB_5G_STUDY_04.04.19.PDF
<https://media.defense.gov/2019/Apr/04/2002109654/-1/-1/0/DIB_5G_STUDY_04.04.19.PDF>.
Acesso em: 7 dez. 2020.
[18] <#_ftnref17> ‘Multipolarity Plays Key Role in World Peace: Chinese
Vice President’, People’s Daily, 6 nov. 2001. Disponível em:
http://en.people.cn/english/200111/05/eng20011105_83945.html
<http://en.people.cn/english/200111/05/eng20011105_83945.html>. Acesso
em: 7 dez. 2020.
[19] <#_ftnref18> National Intelligence Council, Global Trends 2030:
Alternative Worlds (Washington, DC: Office of the Director of National
Intelligence, 2012), iii.
[20] <#_ftnref19> Richard Haass, ‘How to Build a Second American
Century’, /Washington Post/, 26 abr. 2013; Stephen Brooks; William C.
Wohlforth, World Out of Balance: International Relations and the
Challenge of American Primacy. Princeton: Princeton University Press, 2008.
[21] <#_ftnref20> Richard Haass, Foreign Policy Begins at Home. New
York: Basic Books, 2013.
[22] <#_ftnref21> Andrew Korybko, Hybrid Wars: The Indirect Adaptive
Approach to Regime Change (Moscow: Peoples’ Friendship University of
Russia, 2015). Disponível em:
https://orientalreview.org/wp-content/uploads/2015/08/AK-Hybrid-Wars-updated.pdf
<https://orientalreview.org/wp-content/uploads/2015/08/AK-Hybrid-Wars-updated.pdf>.
Acesso em: 7 dez. 2020
[23] <#_ftnref22> William S. Lind and Gregory A. Thiele, 4^th Generation
Warfare Handbook (Kouvola: Castalia House, 2015).
[24] <#_ftnref23> ‘Venezuela sanctions harm human rights of innocent
people, UN expert warns’, United Nations Human Rights, Office of the
High Commissioner, 31 jan. 2019. Disponível em:
https://www.ohchr.org/en/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=24131&LangID=E
<https://
.ohchr.org/en/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=24131&LangID=E>.
Acesso em: 7 dez. 2020).
[25] <#_ftnref24> Dan Harsha, ‘Taking China’s pulse’, The Harvard
Gazette, 9 jul. 2020. Disponível em:
https://news.harvard.edu/gazette/story/2020/07/long-term-survey-reveals-chinese-government-satisfaction/
<https://news.harvard.edu/gazette/story/2020/07/long-term-survey-reveals-chinese-government-satisfaction/>.
Acesso em: 7 dez. 2020.
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