quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

O ressurgimento rentista e a tomada de controle: Capitalismo financeiro vs. capitalismo industrial (2)




In
RESISTIR.INFO

https://www.resistir.info/m_hudson/ressurgencia_rentista_27jan21_2.html
3/2/2021


    (A primeira parte encontra-se aqui
    <https://resistir.info/m_hudson/ressurgencia_rentista_27jan21_1.html> )

*por Michael Hudson [*]

Saída em K. *A luta do capital financeiro para privatizar e monopolizar
infraestrutura pública *

Outra razão para a desindustrialização é o aumento do custo de vida
resultante da conversão de infra-estruturas públicas em monopólios
privatizados. Quando os Estados Unidos e a Alemanha ultrapassaram o
capitalismo industrial britânico, foi reconhecido que uma das principais
chaves para a vantagem industrial era o investimento público em
estradas, caminhos-de-ferro e outros transportes, educação, saúde
pública, comunicações e outras infra-estruturas básicas. Simon Patten, o
primeiro professor de teoria económica na primeira /business school /
dos EUA, a Wharton School da Universidade da Pensilvânia, definiu a
infra-estrutura pública como um "quarto factor de produção", para além
do trabalho, do capital e da terra. Mas ao contrário do capital,
explicava Patten, o seu objectivo não era o de obter lucro. O seu
objectivo era minimizar o custo de vida e de fazer negócios,
proporcionando serviços básicos a baixo preço para tornar o sector
privado mais competitivo.

Ao contrário das taxas militares que sobrecarregavam os contribuintes
nas economias pré-modernas, "numa sociedade industrial, o objectivo da
tributação é aumentar a prosperidade industrial" através da criação de
infra-estruturas sob a forma de canais e caminhos-de-ferro, um serviço
postal e educação pública. Esta infra-estrutura era um "quarto" factor
de produção. Os impostos seriam "não encargos", explicava Patten, na
medida em que fossem investidos em melhoramentos internos públicos,
encabeçados por transportes tais como o Canal Erie [2] <#notas> .

A vantagem deste investimento público é reduzir custos ao invés de
deixar privatizadores imporem rendas de monopólio na forma de encargos
de acesso à infraestrutura básica. Governos podem estabelecer os preços
dos serviços destes monopólios naturais (incluindo criação de crédito,
como estamos a ver hoje) ao preço de custo ou oferecê-los gratuitamente,
ajudando o trabalho e seus empregadores industriais a venderem por menos
a países aos quais faltam tais empreendimentos públicos.

Nas cidades, explicava Patten, o transporte público elevava os preços
das propriedades (e portanto da renda económica) na periferia afastada,
assim como o Canal Erie havia beneficiado agricultores do Oeste que
competiam com agricultores do norte do estado de Nova York. Esse
princípio é evidente nos bairros suburbanos de hoje em relação aos
centros de cidades. A extensão do metro de Londres ao longo da Jubilee
Line, e do metro da Segunda Avenida da Cidade de Nova York, mostraram
que o transporte subterrâneo e o autocarro podem ser financiados
publicamente pela tributação do valor rentístico mais alto criado para
determinados sítios ao longo destas rotas. Pagar o investimento de
capital a partir de tais taxas pode providenciar transportes a preços
subsidiados, minimizando consequentemente o custo de estrutura da
economia. O que Joseph Stiglitz popularizou como a "Lei de Henry George"
deveria assim, mais correctamente, ser conhecida como "Lei de Patten" da
tributação não sobrecarregada por dívidas /(burdenless). / [3] <#notas>

Sob um regime de "tributação não sobrecarregada" o retorno sobre o
investimento público não toma a forma de lucro mas destina-se a reduzir
o preço geral de estrutura da economia para "promover prosperidade
geral". Isto significa que governos deveriam operar directamente os
monopólios naturais ou, pelo menos, regulá-los. "Parques, esgotos e
escolas melhoram a saúde e a inteligência de todas as classes de
produtores, o que lhes permite produzir de modo mais barato e competir
com mais êxito em outros mercados". Patten concluía: "Se os tribunais,
correios, parques, obras gasistas, hidráulicas, de arruamentos, fluviais
e melhorias de portos e outras obras públicas não aumentarem a
prosperidade da sociedade elas não deveriam ser efectuadas pelo Estado".
Mas esta prosperidade para a economia geral não pode ser obtida ao
tratar empresas públicas como centros de lucro, como se diz hoje em dia.
[4] <#notas>

Em certo sentido, isto pode ser chamado "privatizar os lucros e
socializar os prejuízos". Advogar uma economia mista de acordo com estas
linhas é parte da lógica do capitalismo industrial que procura minimizar
a produção do sector privado e dos custos de emprego a fim de maximizar
lucros. A infraestrutura social básica é um subsídio a ser fornecido
pelo estado.

O primeiro-ministro conservador britânico Benjamin Disraeli (1874-80)
reflectiu este princípio: "A saúde do povo é realmente o fundamento
sobre o qual depende toda a sua felicidade e todos os seus poderes
enquanto Estado". [5] <#notas> Ele patrocinou a Lei da Saúde Pública de
1875, seguida da Lei da Venda de Alimentos e Drogas e, no ano seguinte,
a Lei da Educação. O governo prestaria estes serviços, e não
empregadores privados em busca de monopólio.

Durante um século, o investimento público ajudou os Estados Unidos a
seguir uma política de Economia de Altos Salários, providenciando
padrões de educação, alimentação e saúde para tornar o trabalho mais
produtivo e assim ser capaz de livrar-se do trabalho "miserável" de
baixo salário. O objectivo era criar uma retro-alimentação positiva
entre salários em ascensão e aumento da produtividade do trabalho.

Isto está em contraste absoluto com o /business plan / do capitalismo
financeiro de hoje – cortar salários e, também, reduzir o investimento
de capital a longo prazo, a investigação e o desenvolvimento enquanto
privatiza infraestrutura pública. A carnificina neoliberal de Ronald
Reagan nos Estados Unidos e de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha na
década de 1980 foi apoiada pelas exigências do FMI de que economias
devedoras equilibrassem seus orçamentos pela liquidação de empresas
públicas e recortes nos gastos sociais. Serviços de infraestrutura foram
privatizados como monopólios naturais, aumentando drasticamente os
custos de estrutura de tais economias, mas criando enormes comissões de
subscrição financeira e ganhos no mercado bolsista da Wall Street e de
Londres.

Até agora privatizar monopólios públicos tornou-se um dos modos mais
lucrativos de ganhar riqueza financeiramente. Mas cuidados de saúde
privatizados e seguros médicos são pagos pelo trabalho e seus
empregadores, não pelo governo como no capitalismo industrial. E face à
ascensão de custos do sistema educacional privatizado, o acesso da
classe média ao emprego tem sido financiado pela dívida estudantil.
Estas privatizações não ajudaram as economias a tornarem-se mais ricas
ou competitivas. Ao nível vasto da economia, este plano de negócios é
uma corrida para o fundo, mas uma corrida que beneficia a riqueza
financeira no topo.

*O capitalismo financeiro empobrece economias enquanto aumenta seu custo
de estrutura *

A renda económica clássica é definida como o excesso de preço sobre o
valor de custo intrínseco. Capitalizar esta renda – quer seja a renda da
terra ou a renda monopólica da privatização acima descrita – em
obrigações, acções e empréstimos bancários cria "riqueza virtual". A
criação exponencial de crédito do capitalismo financeiro aumenta a
riqueza "virtual" – títulos financeiros e direitos de propriedade – ao
administrar estes títulos e créditos de uma forma que os fez valer mais
do que a riqueza real tangível.

A principal forma de ganhar fortunas é obter ganhos nos preços de
activos ("ganhos de capital") em acções, obrigações e bens imobiliários.
Contudo, esta sobrecarga financeira exponencialmente crescente, com
alavancagem da dívida, polariza a economia de forma a concentrar a
propriedade da riqueza nas mãos dos credores, e dos proprietários de
imóveis de aluguer, acções e títulos – drenando a economia "real" a fim
de pagar o sector FIRE.

A teoria económica pós-classica descreve a infraestrutura privatizada, o
desenvolvimento de recursos naturais e a banca como fazendo parte da
economia industrial, não sobreposta a ela por uma classe em busca de
rendas. Mas a dinâmica de economias capitalistas-financeiras não
consiste em ganhar riqueza principalmente pelo investimento em meios de
produção industrial e poupando lucros ou salários, mas sim em ganhos de
capital obtidos principalmente através da procura da busca de rendas.
Estes ganhos não são "capital" como se entendia classicamente. São
"ganhos financeiros-capitalistas", porque resultam de uma inflação de
preços de activos alimentada pela alavancagem da dívida.

Ao inflacionar os seus preços de habitação e uma bolha no mercado de
acções a crédito, a alavancagem da dívida dos EUA, bem como a sua
financeirização e privatização de infra-estruturas básicas, colocou os
seus preços afastados dos mercados mundiais. A China e outros países não
financiarizados evitaram custos elevados de seguros de saúde, custos de
educação e outros serviços, estabelecendo-os em baixo custo ou
gratuitos, encarando-os como um serviço público. A saúde pública e os
cuidados médicos custam muito menos no estrangeiro, mas são atacados nos
Estados Unidos pelos neoliberais como "medicina socializada", como se
financiarizar a prestação de cuidados de saúde tornasse a economia dos
EUA mais eficiente e competitiva. Os transportes também foram
financiarizados e gerido com fins lucrativos, não para baixar o custo de
vida e de fazer negócio.

Deve-se concluir que a América optou por não mais industrializar, mas
financiar a sua economia através da renda económica – renda monopolista,
desde as tecnologias de informação, à banca e à especulação, deixando a
indústria, investigação e desenvolvimento para outros países. Mesmo que
a China e outros países asiáticos não existissem, não há maneira de a
América recuperar os seus mercados de exportação ou mesmo o seu mercado
interno com as suas actuais despesas gerais sobrecarregadas pelo
endividamento e a sua educação privatizada e financiarizada, assim como
os cuidados de saúde, transportes e outros sectores de infra-estrutura
básica.

O problema subjacente não é a competição da China, mas a financiarização
neoliberal. Capitalismo-financeiro não é capitalismo industrial. É uma
decadência de volta à servidão da dívida e ao neo-feudalismo rentista.
Os banqueiros desempenham hoje o papel que os senhores da terra
desempenharam ao longo do século XIX, fazendo fortunas sem o valor
correspondente, através de ganhos de capital com o imobiliário, acções e
títulos a crédito, pelo alavancamento de dívida cujos encargos aumentam
o custo de viver e de fazer negócio da economia.

*A nova guerra fria de hoje é um combate do capitalismo financeiro
contra o capitalismo industrial *

O mundo de hoje está a ser fracturado por uma guerra económica sobre que
espécie de sistema económica terá. O capitalismo industrial está a
perder o combate para o capitalismo financeiro, o qual está a revelar-se
como a sua antítese – assim como o capitalismo industrial era a antítese
dos senhores da terra pós-feudais e das casas bancárias predadoras.

A este respeito, a Nova Guerra Fria de hoje é um conflito de sistemas
económicos. Como tal, ela está a ser combatida contra a dinâmica do
capitalismo industrial dos EUA, bem como aquele da China e de outras
economias. Portanto, a luta é também interna nos Estados Unidos e na
Europa, bem como confrontacional contra a China e a Rússia, o Irão,
Cuba, Venezuela e os seus movimentos para desdolarizar as suas economias
e rejeitar o Consenso de Washington e a sua Diplomacia do Dólar. É uma
luta do capital financeiro centrado nos EUA para promover a doutrina
neoliberal que concede privilégios fiscais especiais ao rendimento dos
rentistas, desonerando tributariamente a renda de terra, a renda de
recursos naturais, a renda de monopólio e a do sector financeiro. Este
objectivo inclui a privatização e a financeirização de infra-estruturas
básicas, maximizando a sua extracção de renda económica ao invés de
minimizar o custo de vida e de fazer negócio.

O resultado é uma guerra para mudar o carácter do capitalismo bem como o
da social-democracia. O Partido Trabalhista britânico,
sociais-democratas europeus e o Partido Democrata dos EUA saltaram todos
para dentro do vagão neoliberal. Todos eles são cúmplices na austeridade
que se tem propagado desde o Mediterrâneo até o cinturão da ferrugem no
Meio-Oeste dos EUA.

O capitalismo financeiro explora o trabalho, mas via um sector rentista,
o qual acaba por canibalizar o capital industrial. Este impulso tem-se
internacionalizado num combate contra nações que restringem a dinâmica
predatória do capital financeiro que procura privatizar e desmantelar o
poder regulatório do governo. A Nova Guerra Fria não é meramente uma
guerra que está a ser travada pelo capitalismo financeiro contra o
socialismo e a propriedade pública dos meios de produção. Tendo em vista
a dinâmica inerente do capitalismo industrial que exige forte
regulamentação estatal e poder tributário para controlar a intrusão do
capital financeiro, este conflito global pós-industrial é entre o
socialismo que evolui a partir do capitalismo industrial e o fascismo,
definido como uma reacção rentista para mobilizar o governo a fim de
fazer recuar a social-democracia e restaurar o controlo das classes
financeiras e monopolistas rentistas.

A velha Guerra Fria era um combate contra o "Comunismo". Além de
libertar-se da renda da terra, dos encargos com juros e de lucros
industriais apropriados privadamente, o socialismo favorece o combate do
trabalho por melhores salários e condições de trabalho, melhor
investimento público em escolas, cuidados de saúde e outros apoios ao
bem estar social, melhor segurança de emprego e seguro de desemprego.
Todas estas reformas minariam os lucros dos empregadores. Lucros mais
baixos significam preços de acções mais baixos e portanto menos ganhos
para o capital financeiro.

O objectivo do capitalismo financeiro não é tornar uma economia mais
produtiva pela produção de bens e a sua venda a um custo mais baixo do
que os competidores. O que à primeira vista pode parecer ser rivalidade
económica internacional e inveja entre os Estados Unidos e a China é
portanto melhor visto como um combate entre sistemas económicos: o do
capitalismo financeiro e o da civilização a tentar libertar-se de
privilégios rentistas e da submissão a credores, com uma filosofia de
governo mais social com poder de decisão para controlar interesses
privados quando eles actuam egoistamente e prejudicam a sociedade como
um todo.

O inimigo nesta Nova Guerra Fria não é meramente governo socialista mas
governo em si mesmo, excepto na medida em que ele possa ser trazido para
ficar sob o controle da alta finança a fim de promover a agenda
neoliberal rentista. Isto reverte a revolução política democrática do
século XIX que substituiu a Casa dos Lordes e outras câmaras altas
controladas pela aristocracia hereditária por legisladores mais
representativos. O objectivo é criar um estado corporativo, substituindo
organismos governamentais eleitos por bancos centrais – o Federal
Reserve dos EUA e o Banco Central Europeu, juntamente com pressão
externa do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial.

O resultado é um "estado profundo" a apoiar uma oligarquia financeira
cosmopolita. Isto é a definição de fascismo, revertendo governos
democráticos para devolver o controle às classes financeiras e
monopolistas rentistas. O beneficiário é o sector corporativo, não o
trabalho, cujo ressentimento é desviado contra estrangeiros e contra
inimigos internos designados.

Na falta de afluência estrangeira, o Estado corporativo norte-americano
promove o emprego através de uma acumulação militar e de despesas
públicas em infra-estruturas, a maior parte das quais é entregue a
iniciados internos a fim de privatizar em monopólios em busca de renda e
em sinecuras. Nos Estados Unidos, as forças armadas estão a ser
privatizadas para combater no estrangeiro (exemplo: Blackwater
USA/Academi) e as prisões estão a ser transformadas em centros de lucro
utilizando condenados como mão-de-obra barata.

O que é irónico é que embora a China esteja a procurar desligar-se do
capitalismo financeiro ocidental, na realidade tem feito o que os
Estados Unidos fizeram na sua descolagem industrial no final do século
XIX e início do século XX. Como uma economia socialista, a China tem
visado aquilo que se esperava do capitalismo industrial: libertar a sua
economia do rendimento rentista (senhores da terra e bancos usurários),
em grande parte através de uma política progressiva de impostos sobre o
rendimento que incide principalmente sobre o rendimento de rentistas.

Acima de tudo, a China tem mantido a banca no domínio público. Manter a
moeda e a criação de crédito públicas ao invés de privatiza-las é o
passo mais importante para manter baixo o custo de vida e de fazer
negócio. A China foi capaz de evitar uma crise de dívida pelo
esquecimento das mesmas ao invés de encerar empresas endividadas
consideradas serem de interesse público. Neste aspecto, é a China
socialista que está a alcançar o destino que se esperava inicialmente do
capitalismo industrial no Ocidente.

*Resumo: O capital financeiro em busca de renda *

A transformação da teoria económica académica sob o capitalismo
financeiro de hoje inverteu o impulso progressivo e mesmo radical da
economia política clássica que evoluiu para o marxismo. A teoria
pós-clássica descreve os sectores financeiro e outros rentistas como uma
parte intrínseca da economia industrial. Os actuais formatos
contabilísticos do rendimento nacional e do PIB são compilados de acordo
com esta reacção anti-clássica, representando o sector FIRE e os seus
sectores aliados em busca de renda como um acréscimo ao rendimento
nacional e não como um subtraendo. Juros, rendas e preços monopolistas
são todos contabilizados como "ganhos" – como se todos os rendimentos
fossem obtidos como partes intrínsecas do capitalismo industrial e não
como extracção predatória como despesas gerais da propriedade
imobiliária e dos créditos financeiros.

Isto é o oposto da teoria económica clássica. O capitalismo financeiro é
um mecanismo para evitar o que Marx e na verdade a maioria dos seus
contemporâneos esperavam: que o capitalismo industrial evoluísse para o
socialismo, de forma pacífica ou não.

*Algumas observações finais: As finanças tomam controle da indústria, do
governo e da ideologia *

Quase todas as economias são uma economia mista ?– pública e privada,
financeira, industrial e de buscadores de renda. Dentro destas economias
mistas, a dinâmica financeira – crescimento da dívida por juros
compostos, atendo-se primariamente a privilégios de extracção de renda
e, portanto, protegendo-os ideológica, política e academicamente. Estas
dinâmicas são diferentes daquelas do capitalismo industrial e, na
verdade, prejudicam a economia industrial ao desviar o seu rendimento a
fim de pagar ao sector financeiro e os seus clientes rentistas.

Uma expressão deste antagonismo inato é o horizonte temporal. O
capitalismo industrial requer planeamento a longo prazo para desenvolver
um produto, fazer um plano de marketing e empreender investigação e
desenvolvimento para seus preços abaixo dos dos concorrentes. A dinâmica
básica é M-C-M': o capital (dinheiro, M) é investido na construção de
fábricas e outros meios de produção e no emprego de mão-de-obra para
vender os seus produtos (mercadorias, C) com um lucro (M').

O capitalismo financeiro abrevia este processo para um M-M', fazendo
dinheiro de modo puramente financeiro, pela cobrança de juros e obtenção
de ganhos de capital. O modo financeiro de "criação de riqueza" é medido
pela avaliação do imobiliário, acções e títulos. Esta avaliação Esta
avaliação durante muito tempo foi baseada na capitalização do seu fluxo
de receitas (rendas ou lucros) à taxa de juro corrente, mas agora
baseia-se quase inteiramente nos ganhos de capital como a fonte
principal de "retornos totais".

Ao assumir o controlo de empresas industriais, os gestores financeiros
concentram-se no curto prazo, pois o seu salário e bónus baseiam-se no
desempenho do ano em curso. O "desempenho" em causa é o desempenho na
bolsa de valores. Os preços das acções tornaram-se em grande medida
independentes do volume de vendas e dos lucros, agora que são aumentados
pelas empresas que normalmente pagam cerca de 92 por cento das suas
receitas em dividendos e recompra de acções [6] <#notas> .

Ainda mais destrutivamente, o capital privado criou um novo processo:
M-dívida-M'. Um documento recente calcula isso: "Mais de 40% das
empresas que efectuam pagamentos também angariam capital durante o mesmo
ano, resultando em 31% das recompras e dividendos agregados de acções
financiadas externamente, primariamente com dívida". [7] <#notas> Isto
tornou o sector corporativo financeiramente frágil, particularmente a
indústria aérea na sequência da crise da COVID-19.

A essência das participações privadas ( /private equity
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Private_equity> / ), explica Matt
Stoller, é que "engenheiros financeiros [angariem] grandes quantias de
dinheiro e contraiam ainda mais empréstimos para comprar empresas e
saqueá-las. Estes tipos de barões do /private equity / não são
especialistas que ajudam a financiar produtos e serviços úteis, eles
fazem negócios de cortadores de biscoitos atacando empresas que
acreditam ter poder de mercado para elevar preços, que podem despedir
trabalhadores ou vender activos, e/ou que têm alguma espécie de alçapão
legal vantajoso. Muitas vezes destroem o negócio subjacente. Os gigantes
da indústria, desde a Blackstone até a Apollo, são os filhos do rei dos
títulos lixo /(junk bond) / da década de 1980 e do defraudador Michael
Milken. Eles são essencialmente mafiosos super dimensionados" [8]
<#notas> .

O capital privado tem desempenhado um grande papel no aumento da
alavancagem corporativa, tanto através das suas próprias acções como
através da desinibição de grandes companhias públicas na utilização da
dívida. Como explicaram Eileen Appelbaum e Rosemary Batt, as grandes
firmas de compras /(buyout), / na sequência do manual desenvolvido na
década de 1980, produzem os seus retornos a partir da engenharia
financeira e do corte de custos (acordos de redução de dimensão visam
empresas "mais crescentes", mas enquanto aquelas empresas de /private
equity / asseveram que acrescentam valor, isto pode ser apenas pelo
facto de serem habilidosas em identificar empresas promissoras e em
cavalgar uma onda de desempenho).

Ao contrário do que diz o seu marketing, as taxas de estrutura das
private equity significam que elas ganham dinheiro mesmo quando levam
firmas à bancarrota. E elas tornaram-se tão poderosas que é difícil
obter apoio político para travá-las quando prejudicam grande número de
cidadãos através de práticas exploradoras como a facturação de
equilíbrio ("surpresa") [9] <#notas> .

A descrição clássica deste processo de saqueio com fins lucrativos é o
documento de George Akerloff e Paul Romer de 1993, que descreve como "as
empresas têm um incentivo para irem à falência por lucro a expensas da
sociedade (para saquear) ao invés de irem em frente (para apostar no
êxito)". A bancarrota com fins lucrativos ocorrerá se uma má
contabilidade, uma regulamentação laxista, ou penalidades baixas por
abuso derem aos proprietários um incentivo para se pagarem a si próprios
mais do que as suas empresas valem e a seguir incumprirem as suas
obrigações de dívida". [10] <#notas>

O facto de os "ganhos de papel" dos preços das acções poderem ser
eliminados quando ocorrem tempestades financeiras, torna o capitalismo
financeiro menos resiliente do que a base industrial de investimento em
capital tangível que permanece no lugar. Os Estados Unidos encurralaram
a sua economia num canto ao desindustrializarem, substituindo a formação
de capital tangível por "riqueza virtual", ou seja, créditos financeiros
sobre rendimentos e activos tangíveis. Desde 2009, e especialmente desde
a crise Covid de 2020, a sua economia tem estado a sofrer através
daquilo a que se chama uma "recuperação" em forma de K [NR] <#nr> . Os
mercados de acções e títulos atingiram máximos históricos para
beneficiar as famílias mais ricas, mas a economia "real" da produção e
consumo, do PIB e emprego, declinou para o sector não-rentista, ou seja,
a economia em geral.

Como explicarmos esta disparidade se não pelo reconhecimento de que
diferentes dinâmicas e leis do movimento estão a funcionar? Ganhos em
riqueza cada vez mais tomam a forma de uma valorização ascendente de
direitos financeiros e de propriedade rentistas sobre os activos reais e
rendimentos reais da economia, encabeçados por direitos de extracção de
rendas, não por meios de produção.

Um capitalismo financeiro desta espécie só pode sobreviver se retirar
ganhos exponencialmente crescentes de fora do sistema, quer pela criação
de moeda pelo banco central /(Quantitative Easing) / quer pela
financiarização de economias estrangeiras, privatizando-as para
substituir serviços de infraestruturas públicas de baixos preços por
monopólios em busca de renda que emitem títulos e acções, amplamente
financiados por crédito baseado no dólar à procura de ganhos de capital.
O problema com este imperialismo financeiro é que ele faz os hospedeiros
clientes tornarem-se economias de alto custo como as dos EUA e de outros
patrocinadores nos centros financeiros do mundo.

Todos os sistemas económicos procuram internacionalizar-se e estender o
seu domínio através do mundo. A Guerra Fria reavivada de hoje deveria
ser entendida como um combate sobre que espécie de sistema económico
terá o mundo. O capitalismo financeiro está a lutar contra nações que
restringem a sua dinâmica intrusiva e o patrocínio da privatização e do
desmantelamento do poder regulador público. Ao contrário do capitalismo
industrial, o objectivo rentista não é tornar uma economia mais
produtiva pela produção de bens e a sua venda a um custo inferior ao dos
competidores. As dinâmicas do capitalismo financeiro são globalistas,
procurando utilizar organizações internacionais (o FMI, a NATO, o Banco
Mundial e as sanções comerciais e de investimento concebidas pelos EUA)
para anular governos nacionais que não são controlados pelas classes
rentistas. O objectivo é transformar todas as economias em
capitalistas-financeiras com camadas de privilégio hereditário, impondo
políticas de austeridade anti-laboral para espremer um excedente
dolarizado.

A resistência do capitalismo industrial a esta pressão internacional é
necessariamente nacionalista, porque necessita de subsídios e leis do
estado para tributar e regular o sector FIRE. Mas está a perder o
combate para o capitalismo financeiro, o qual está a transformar-se na
sua némesis, tal como o capitalismo industrial foi a némesis do senhor
da terra pós-feudal e da banca predatória. O capitalismo industrial
exige subsídios estatais e investimento em infraestruturas, juntamente
com poder regulador e fiscal para controlar a investida do capital
financeiro. O conflito global resultante é entre o socialismo (a
evolução natural do capitalismo industrial) e um fascismo pró-rentista,
uma reacção estatal-financeira-capitalista contra a mobilização do poder
estatal do socialismo para repelir os interesses dos rentistas pós-feudais.

Portanto, subjacente à rivalidade hoje sentida pelos Estados Unidos
contra a China está um choque de sistemas económicos. O conflito real
não é tanto "América vs. China", mas sim capitalismo financeiro vs.
capitalismo/socialismo de "estado" industrial. O que está em jogo é se
"o estado" irá apoiar a financeirização em benefício da classe rentista
ou fortalecer a economia industrial e a prosperidade global.

Para além do seu horizonte temporal, o outro grande contraste entre
capitalismo financeiro e capitalismo industrial é o papel do governo. O
capitalismo industrial quer que o governo ajude a "socializar os
custos", subsidiando serviços de infraestruturas. Ao baixar o custo de
vida (e consequentemente o salário mínimo), isto deixa mais lucros a
serem privatizados. O capitalismo financeiro quer arrancar estes
serviços públicos do domínio público e transformá-los em activos
privatizados submissos à renda. Isso eleva a estrutura de custos da
economia – e, em consequência, é autodestrutivo do ponto de vista da
competição internacional entre industriais.

Esta é a razão porque economias de custo mais baixo e menos
financiarizadas ultrapassaram os Estados Unidos, a começar pela China. O
modo como a Ásia, a Europa e os Estados Unidos reagiram à crise do
Covid-19 enfatiza este contraste. A pandemia forçou cerca de 70 por
cento dos restaurantes de bairro locais a encerrarem diante de grandes
rendas e dívidas atrasadas. Arrendatários, desempregados proprietários
de habitações e investidores imobiliários, bem como numerosos sectores
de consumo enfrentam também despejos e desalojamentos, insolvência e
execução de hipotecas ou vendas desesperadas quando a actividade
económica afunda.

Menos amplamente observado é como a pandemia levou a Reserva Federal a
subsidiar a polarização e monopolização da economia dos EUA,
disponibilizando crédito a apenas uma fracção de 1 por cento para
bancos, fundos de /private equity / e às maiores corporações do país,
ajudando-as a devorar pequenas e médias empresas em dificuldades.

Durante uma década após o salvamento bancário fraudulento de Obama em
2009, o Fed descreveu o seu objectivo como sendo manter a liquidez do
sistema bancário e evitar danos aos detentores dos seus títulos,
accionistas e grandes depositantes. O Fed infundiu o sistema bancário
comercial com poder de empréstimo suficiente para apoiar os preços das
acções e obrigações. A liquidez foi injectada no sistema bancário
através da compra de títulos do governo, como era normal. Mas depois de
o vírus do Covid atacar em Março de 2020, o Fed começou a comprar dívida
corporativa pela primeira vez, incluindo títulos lixo. A ex-chefe do
FDIC [Federal Deposit Insurance Corporation], Sheila Bair, e o
economista do Tesouro Lawrence Goodman, nota, a Reserva Federal comprou
os títulos "de 'anjos caídos' que afundaram para o status de lixo
durante a pandemia", por se terem permitido empréstimos
super-alavancados para pagar dividendos e comprar as suas próprias
acções [11] <#notas> .

O Congresso considerou a possibilidade de limitar a utilização das
receitas dos títulos comprados "para compensações executivas ou
distribuições a accionistas" no momento em que aprovou as medidas, mas
não fez qualquer tentativa para impedir as empresas de o fazerem.
Registando que "a Sysco utilizou o dinheiro para pagar dividendos aos
seus accionistas enquanto despedia um terço da sua força de trabalho ...
um relatório da comissão parlamentar constatou que as empresas que
beneficiaram das medidas despediram mais de um milhão de trabalhadores
entre Março e Setembro". Bair e Goodman concluem que "há pouca evidência
de que a compra da dívida empresarial do Fed tenha beneficiado a
sociedade". Pelo contrário: As acções do Fed "criaram mais uma
oportunidade injusta para as grandes empresas ficarem ainda maiores pela
compra dos competidores com o crédito subsidiado pelo governo".

O resultado, eles acusam, está a transformar a conformação política da
economia. "Os salvamentos /(bailouts) / em série do mercado pelas
autoridades monetárias – primeiro o sistema bancário em 2008 e agora
todo o mundo empresarial em meio a pandemia" – tem sido "uma ameaça
maior [para destruir o capitalismo] do que Bernie Sanders". As "taxas de
juro super baixas do Fed favoreceram o capital próprio das grandes
empresas em detrimento das suas congéneres mais pequenas", concentrando
o controle da economia nas mãos das empresas com maior acesso a tais
créditos.

As empresas mais pequenas são "a principal fonte de criação de emprego e
de inovação", mas não têm acesso ao crédito quase gratuito de que
desfrutam os bancos e os seus maiores clientes. Como resultado, o sector
financeiro continua a ser a mãe dos trusts, concentrando a riqueza
financeira e corporativa ao financiar uma devastação das empresas mais
pequenas pelas companhias gigantes para monopolizar o mercado de dívida
e de salvamento.

O resultado desta concentração financiarizada do "peixe grande come o
peixe pequeno" é uma versão nos dias modernos do Estado Corporativo do
fascismo. Radhika Desai chama a isto "creditocracia", regido pelas
instituições no controle do crédito. [12] <#notas> É um sistema
económico no qual os bancos centrais tomam dos órgãos políticos eleitos
e do Tesouro o controle da política económica, completando assim o
processo de privatização do controle da economia no seu todo.

27/Janeiro/2021

[2] "The Theory of Dynamic Economics," Essays in Economic Theory ed.
Rexford Guy Tugwell (New York: 1924), pp. 96 e 98, originalmente em The
Publications of the University of Pennsylvania, Political Economy and
Public Law Series 3:2 (whole No. 11), 1892, p. 96. Governos
aristocráticos da Europa desenvolveram sua política fiscal "numa época
em que o estado era uma mera organização militar para a defesa da
sociedades de inimigos estrangeiros, ou para satisfazer sentimentos
nacionais por guerras agressivas". Tais estados tinham uma política de
desenvolvimento económico "passiva" e sua filosofia fiscal não se
baseava na eficiência económica. Apresento pormenores em "Simon Patten
on Public Infrastructure and Economic Rent Capture," American Journal of
Economics and Sociology 70 (October 2011), pp. 873-903.
[3] George defendeu um imposto sobre a terra, mas a sua oposição ao
socialismo levou-o a rejeitar os conceitos de valor e preço, necessários
para definir a renda económica quantitativamente. A sua defesa dos
banqueiros e dos juros tornou as suas recomendações políticas ineficazes
na medida em que passou para a ala da direita libertária do espectro
político, opondo-se a investimento governamental, mas limitando-se a
tributar as rendas dos privatizadores – o contrário do que Patten e a
sua escola pró-industrial de economistas defendiam, com base na teoria
clássica do valor e dos preços.
[4] "The Theory of Dynamic Economics," p. 98.
[5] Discurso de 24 de Junho de 1877. Ele utilizou o latim e disse
"Sanitas, Sanitatum" e traduziu isto como "Saneamento, tudo é
saneamento". Era um jogo de palavras com o famoso aforismo, "Vanitas,
vanitatum," "Vaidade, tudo é vaidade".
[6] William Lazonick, "Profits Without Prosperity: Stock Buybacks
Manipulate the Market and Leave Most Americans Worse Off," Harvard
Business Review, September 2014. E mais recentemente, Lazonick e
Jang-Sup Shin, Predatory Value Extraction: How the Looting of the
Business Corporation Became the U.S. Norm and How Sustainable Prosperity
Can Be Restored (Oxford: 2020).
[7] Joan Farre-Mensa, Roni Michaely, Martin Schmalz, "Financing
Payouts," Ross School of Business Paper No. 1263 (December 1, 2020),
citado por Matt Stoller," How to Get Rich Sabotaging Nuclear Weapons
Facilities," BIG, January 3, 2021.
[8] Matt Stoller, ibid. Ver também o seu artigo "Crime Shouldn't Pay:
Why Big Tech Executives Should Face Jail," BIG, December 20, 2020.
[9] George Akerloff and Paul Romer, "Looting: The Economic Underworld of
Bankruptcy for Profit,"
[10] Sheila Bair e Lawrence Goodman, "Corporate Debt 'Relief' Is an
Economic Dud", /Wall Street Journal, / January 7, 2021.
[11] Desai, Radhika. 2020.'The Fate of Capitalism Hangs in the Balance
of International Power'. Canadian Dimension, 12 October. Ver também
Geoffrey Gardiner, Towards True Monetarism (Dulwich: 1993) e The
Evolution of Creditary Structure and Controls (London: Palgrave, 2006) e
o grupo póskeynesiano Gang of 8 popularizou a expressão "creditary
economics" na década de 1990.

[NR] Ver O que significa uma recuperação económica em forma de K
<https://resistir.info/jf/saidas_suite_24out20.html>

*A primeira parte encontra-se em
resistir.info/m_hudson/ressurgencia_rentista_27jan21_1.html
<https://resistir.info/m_hudson/ressurgencia_rentista_27jan21_1.html> *

*[*] Este artigo é baseado no Capítulo 1 de /Cold War 2.0. The
Geopolitical Economics of Finance Capitalism vs. Industrial Capitalism /
(Dresden, ISLET: em impressão; tradução chinesa em 2021). Obras do autor
em Book Depository
<https://www.bookdepository.com/search?searchTerm=Michael+Hudson&search=Find+book>.


O original encontra-se em michael-hudson.com/...
<https://michael-hudson.com/2021/01/the-rentier-resurgence-and-takeover-finance-capitalism-vs-industrial-capitalism/>

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/m_hudson/ressurgencia_rentista_27jan21_2.html
3/2/2021

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