segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Há 50 anos, a USP perdia Alexandre Vannucchi Leme, estudante torturado até a morte pela ditadura

 

     
      <https://jornal.usp.br/universidade/ha-50-anos-a-usp-perdia-alexandre-vannucchi-leme-estudante-torturado-ate-a-morte-pela-ditadura/>


      por Camilo Vannuchi

Os pais já estavam aflitos quando o telefone tocou, na manhã de
terça-feira. Alexandre não tinha aparecido na sexta, nem no sábado ou no
domingo. Tampouco havia telefonado ou mandado avisar que não iria para
Sorocaba naquele fim de semana. Quem atendeu foi José Augusto, o
penúltimo dos seis filhos de dona Egle e seu José. Tinha 12 anos, dez a
menos que o primogênito Alexandre, e não teria atendido àquela ligação
se fosse capaz de prever o que iria ouvir.

— Alô.
—O Alexandre está preso em São Paulo. Procurem por ele no Dops.
/Tum, tum, tum, tum/.

A identidade do mensageiro permaneceu em sigilo por décadas. Primeiro,
por medo. Em seguida, por segurança. Mais tarde, porque já não havia
quem perguntasse. Hoje, sabemos que foi Alberto quem telefonou para a
casa dos pais do amigo.

Alberto Alonso Lázaro era colega de turma de Alexandre. Havia, como ele,
entrado em 1970 e, também como ele, pegaria o canudo no final de 1973.
Como Alexandre, queria a volta da democracia e liberdade para as
entidades estudantis. Como Alexandre, buscava mobilizar a juventude
universitária e, novamente como Alexandre, aproximou-se da Ação
Libertadora Nacional (ALN), organização que fora liderada por Marighella
até 1969.

No dia 16 de março de 1973, Alberto foi um dos primeiros a saber que
Alexandre havia caído, ou seja, que o amigo havia sido capturado pela
repressão. Não porque estivesse por perto ou porque fosse
excepcionalmente bem-informado, mas porque Alexandre faltou ao ponto
seguinte. No código da clandestinidade, um atraso bastava para
desencadear uma série de medidas cautelares, dentre as quais uma fuga
repentina e uma mudança inesperada de endereço.

Retrato de Alexandre Vannucchi Leme, 3×4, tirada aos 18 anos para
expedição de documentos

Não bastasse a proximidade na sala de aula, nos barracões dos
laboratórios e na área próxima da guerrilha, como costumavam chamar a
rede de militantes que mantinham uma atividade legal e apenas ajudavam
os guerrilheiros, Alberto e Alexandre também dividiam o mesmo
apartamento, uma república estudantil no Itaim Bibi, ora em processo de
conversão em aparelho.

Na república, na universidade, nos trabalhos de campo em Itu ou em
Bertioga, Alberto era conhecido como “Babão”. Alexandre era o “Minhoca”.
Não apenas porque era mirrado e franzino, e apaixonado pelas coisas da
terra, mas porque aprendeu cedo a imitar certo professor do curso,
Sérgio Estanislau do Amaral, que os veteranos chamavam de “Minhocão”.
Virou Minhoca. E fazia o diabo com sua ironia e seu censo de humor,
botando apelido em todo mundo, subindo no ombro dos amigos mais
encorpados para tirar foto de asas abertas.

Nem dois meses antes de ser sequestrado na rua e levado para o DOI-Codi,
o mais temido centro de tortura da ditadura militar, que o coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra dera de chamar de “sucursal do inferno”,
Alexandre havia se submetido às pressas a uma cirurgia de retirada do
apêndice. Quando o cerco se fechou em torno dos estudantes da USP que
mantinham algum grau de colaboração com a ALN, qualquer grau, a
combinação de fatores mostrou-se fatal. Torturado nos dias 16 e 17 de
março, Minhoca não resistiu. Não há laudo médico que não tenha sido
falseado, mas desconfia-se que o jovem de 22 anos sofreu uma hemorragia
interna na região do procedimento. À tarde, foi trazido aos tropeços
para a cela. “Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme”, ele teria dito, em
voz alta, segundo o testemunho atento de outros presos políticos. “Sou
estudante de Geologia. Me acusam de ser da ALN. Eu só disse o meu nome.”
Horas depois, seu corpo jazia, inerte.

Em 1970, recepção aos calouros do curso de Geologia da USP, na Cidade
Universitária. Alexandre, o primeiro à esquerda, tem o corpo lambuzado
com óleo num dos trotes comuns na época – Foto: Autor desconhecido /
Acervo de Dirceu Pagotto Stein

Em 1971, viagem a Bertioga, no litoral, com os colegas da Geologia.
Irreverente, Alexandre simula uma decolagem nos ombros de um amigo –
Foto: Roberto Nakamura

Os amigos se lembram do Minhoca como um moço do interior, muito católico
(ele tinha um tio padre e três tias freiras), que havia sido aprovado em
primeiro lugar no exame de admissão do curso (numa época em que ainda
não havia vestibular unificado) e que estava sempre com um livro, metido
em alguma pesquisa. Numa delas, escarafunchou tudo o que conseguiu
encontrar sobre os impactos ambientais provocados pela Rodovia
Transamazônica, em construção, e municiou a equipe de roteiristas da
peça /Uma Transa Amazônica/, produzida na época por um dos grupos
teatrais da USP. “Ele já chegou com cabeça de geólogo, estava muito à
frente da gente, era um aluno brilhante”, diz Adriano Diogo, outro
colega no curso de Geologia e companheiro de Alexandre no movimento
estudantil.

Quando Alexandre foi morto, as autoridades tentaram esconder a digital
do crime que haviam cometido. Nos jornais, somente no dia 23, quando seu
corpo já havia sido coberto de cal e enterrado como indigente, foi
publicada a notícia, plantada pelo Dops, de que Minhoca fora atropelado
numa rua do Brás ao tentar escapar da polícia. Era mentira. A denúncia
partiu de diferentes grupos. Alunos da USP foram procurar o arcebispo de
São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, e propuseram a ele que fizesse uma
missa na Cidade Universitária em homenagem ao estudante, uma forma de
dar visibilidade ao que haviam feito. Dom Paulo pensou um instante e
ofereceu a Catedral Metropolitana.

Recorte do jornal O Globo do dia 23 de março de 1973, edição em que foi
divulgada a versão falsa da morte de Alexandre – Foto: SSP/Deops-SP

Com 3 mil pessoas lotando a igreja, aquele se tornou o primeiro grande
ato de desagravo desde o início do governo Médici, o mais nefasto desde
o golpe, e antecipou em dois anos e meio a grande manifestação ecumênica
que tomaria aquele mesmo espaço em outubro de 1975, no ato em homenagem
a Vladimir Herzog.

Na missa de 1973, Dom Paulo bateu firme. “Só Deus é dono da vida; dele a
origem, e só ele pode decidir o seu fim”, proferiu, em homilia. O cantor
e compositor Sérgio Ricardo, o mesmo artista que, em 1967, quebrara o
violão no palco do Festival da Record, chegou do Rio de Janeiro apenas
para cantar a música /Calabouço/, que acabara de compor em memória de
outro jovem assassinado pela ditadura, o secundarista Edson Luís de Lima
Souto, morto em 1968.

Convocação para a missa celebrada por Dom Paulo Evaristo Arns na
Catedral da Sé na tarde de 30 de março – Foto: Reprodução

No próximo dia 17 de março, uma sexta-feira, às 18h, 50 anos depois do
assassinato sob tortura de Alexandre Vannucchi Leme, haverá mais uma vez
uma missa em sua homenagem na Sé. O bispo de Mogi das Cruzes (SP), Dom
Pedro Luiz Stringhini, deve celebrar ao lado de Dom Angélico Sândalo
Bernardino, emérito de Blumenau (SC), hoje aos 90 anos. Foi Dom
Angélico, um dos celebrantes do ato ecumênico de Herzog, quem sugeriu,
anos atrás, que o trecho da Rodovia Castello Branco que liga São Paulo a
Sorocaba tivesse seu nome alterado para Rodovia Alexandre Vannucchi
Leme. Dom Odilo Scherer, cardeal de São Paulo, cogita assumir
pessoalmente a presidência da celebração eucarística.

Antes disso, das 16h às 18h30, haverá um ato em memória de Alexandre na
Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.
Na ocasião, haverá o lançamento mundial da exposição virtual /Eu só
disse o meu nom/e, uma iniciativa do Instituto Vladimir Herzog publicada
na plataforma Google Arts & Culture, com curadoria de Carolina
Vilaverde. São vinte fotografias, depoimentos em áudios e textos em
português, inglês e espanhol. Haverá ainda o início da pré-venda do
livro /Eu só disse o meu nome/, de minha autoria, previsto para o meio
do ano. Para que não se esqueça.

No próximo texto, que será publicado em 3 de março: O cerco à USP nos
anos 1970; 47 membros da comunidade, entre professores, alunos e
funcionários, torturados e mortos durante a ditadura militar; o que diz
o relatório final da Comissão da Verdade da Universidade; a busca da
família Vannucchi Leme por verdade, justiça e reparação.

*Camilo Vannuchi é jornalista e escritor, mestre e doutor em Ciências da
Comunicação pela USP, professor de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero
e primo de segundo grau de Alexandre Vannucchi Leme. Para informações
sobre o livro /Alexandre Vannucchi Leme: eu só disse o meu nome,/ entre
em contato pelo e-mail camilo.vannuchi@gmail.com
<mailto:camilo.vannuchi@gmail.com>. *

*O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN.
Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para
**dicasdepauta@jornalggn.com.br* <mailto:dicasdepauta@jornalggn.com.br>*.*

Em
Jornal GGN
https://jornalggn.com.br/ditadura/ha-50-anos-a-usp-perdia-alexandre-vannucchi-leme-estudante-torturado-ate-a-morte-pela-ditadura/
27/2/2023

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