terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Xadrez dos nós da economia e da volta do Senhor Crise

 

por Luis Nassif

Só quando a crise abrir novamente a bocarra e ameaçar engolir não apenas
o governo, mas qualquer pretensão de recuperação do país civilizado, os
dogmas irão para segundo plano e os problemas reais ganharão novamente
prioridade.



  Peça 1 – o mapa da economia no mundo ideal

Em um primeiro momento, conta o ciclo econômico. Após períodos de
intensa concentração de renda – como o que houve nos últimos anos – há
uma poupança acumulada, disponível para novas aplicações, dependendo das
taxas de juros e das expectativas de inflação.

Dependendo do nível de juros, abre-se a possibilidade da poupança ser
canalizada para investimentos em infra-estrutura e para setores
portadores de futuro, além de permitir o financiamento do capital de
giro e o amparo às pequenas e micro empresas.

Para a recuperação da economia, é necessário que essa conjuntura seja
completada por uma política monetária regrada, com taxas básicas
civilizadas e uma articulação na economia real, junto aos atores econômicos.


    Princípios fundadores

Erros e acertos de políticas de desenvolvimento legaram o seguinte
conhecimento de políticas bem sucedidas.


      Compras públicas

É um ponto essencial. Seja na forma de bens de consumo para políticas
públicas (saúde, educação, alimentos), no acesso de micro, pequenas e
médias empresas não apenas a crédito e financiamento, mas a compras
públicas. A única garantia de sobrevivência de novas empresas e novos
setores é a garantia de demanda.


      Políticas sistêmicas

Não é mais possível política de um tiro só. Minha Casa Minha Vida não
pode continuar a ser  uma mera política de financiamentos e subsídios,
mas levar em conta a questão imobiliária, a mobilidade dos
trabalhadores, os impactos sobre custo de terras e aluguel.

O exemplo maior é o Programa de Desenvolvimento Produtivo (PDP) que,
embora tenha ficado incompleto, contemplava o setor como um todo,
pensando nas necessidades do SUS, dos pacientes, o poder de barganha com
multinacionais etc.


    Peça 2 – diagnóstico e ação

Não se deve pensar políticas setoriais individualmente, nem as ações de
cada MInistério de forma isolada.

Por exemplo, no auge do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento)
tentou-se uma articulação entre governo, a área social e a ABIC
(Associação Brasileira da Indústria da Construção), visando utilizar a
base de dados social para identificar trabalhadores nas áreas
contempladas com construção e utilizar o sistema S para treinamento.

Outra iniciativa inteligente – mas que não foi adiante – consistia em
definir um mínimo de previsibilidade para as grandes obras públicas e
acertar com a ABIMAQ (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e
Equipamentos) um planejamento dando tempo para a fabricação dos
equipamentos que seriam requeridos.

Para tanto, tem que haver um diagnóstico amplo e uma ação articulada
entre Ministérios e associações civis. Não dá mais para pensar em
políticas públicas com cada agente jogando no seu campo e definindo sua
estratégia.

O primeiro passo é entender o estágio atual da economia brasileira e
definir setores prioritários, aqueles com maior capacidade de
disseminação, maior afinidade com as novas tecnologias, dentro de uma
visão sistêmica, da qual o maior exemplo é o complexo industrial da saúde.

A visão sistêmica consiste em entender todas as implicações de uma
política industrial, tendo como foco central o atendimento das
necessidades da população e a utilização do poder de compra do Estado
para estimular o desenvolvimento de setores industriais.

Diagnósticos com tal grau de complexidade precisam ser montados com a
participação de muitos atores:

  * Uma orquestração liderada pelo Ministério da Fazenda, e mobilizando
    demais Ministérios – Planejamento, Indústria e Comércio,
    Agricultura, Trabalho, Saúde etc. Os Ministérios atuariam como pivôs
    de uma estrutura nacional envolvendo atores, mas dentro de uma
    lógica central.
  * Instituições acadêmicas, Universidades, IPEA (Instituto de Pesquisa
    Econômicas Aplicadas), setores técnicos do BNDES. Em 2014, o
    Ministério de Ciência e Tecnologia preparou um belíssimo plano de
    políticas públicas para o segundo governo Dilma, contando com a
    colaboração das universidades. Mofou em uma gaveta;
  * Confederações e federações empresariais, sistema S.
  * Fóruns de discussão, como o Conselhão, a ABDI (Agência Brasileira de
    Desenvolvimento Industrial) e Apex (Agência de Promoção das
    Exportações).
  * Sistema de financiamento da pesquisa, como CNPQ, Fundações de Amparo
    à Pesquisa, Finep (Financiadora de Pesquisas e Projetos).

Articulação dessa ordem evitaria sobreposição e voluntarismos, como essa
ideia de criar uma MIT para a Amazônia, sabendo que existem
universidades federais por lá, com especialistas estudando o tema. Mesmo
porque o autor da ideia, o cientista Carlos Nobre é respeitabilíssimo na
sua área, a climatologia, não em biociência.


    Peça 3 – os problemas

No ano passado, pintou um ciclo benéfico. Foi desperdiçado pelo
oportunismo, curto prazismo e pela falta de visão estruturante do
Ministro da Economia Paulo Guedes.

Houvesse um mínimo de estratégia, essa poupança teria sido canalizada
para obras de infraestrutura, com aporte da União, e enormes reflexos na
cadeia produtiva nacional.

Em vez disso, permitiu-se a constituição de bolhas em ações de empresas,
fundos imobiliários, securitização de recebíveis. Com a guerra da
Ucrânia, houve uma explosão nos preços da energia, dos alimentos e
fertilizantes, impactando a inflação interna, com a elevação mais que
proporcional da Selic.

Agora, tem-se uma bomba de efeito retardado prestes a explodir. E o
governo Bolsonaro deixou duas heranças terríveis: a estabilidade da
diretoria do Banco Central, nas mãos de diretores que pensam
exclusivamente no mercado; e a estabilidade do Conselho de Administração
da Petrobras, que cometeu o ato mais irresponsável possível, a
distribuição de dividendos em valor superior a todo o lucro contábil da
Petrobras.

O primeiro segura a Selic a 13,75%. O segundo impede a revogação do PPI
(Preço do Petróleo Importado) como parâmetro para os preços internos de
combustíveis.

Com Selic a 13,75% ao ano e custo do crédito em percentuais muito
maiores – para uma inflação anual de apenas 5,77% e em queda consistente
desde abril de 2022 – já havia uma crise de crédito na economia. As
empresas passaram a recorrer ao chamado crédito corporativo – que
responde por 10% do PIB. Com o golpe das Americanas, houve novo
movimento de restrição de oferta, aumento no custo do dinheiro e a
expectativa de uma crise gigante. Ou seja, há um tsunami a caminho.

Ao mesmo tempo, a necessidade de devolver aos estados a arrecadação
perdida levou a Fazenda a reinstituir o imposto sobre combustíveis, mas
sem condições de compensar com redução dos preços do petróleo, através
da revogação do PPI, devido à resistência do Conselho de Administração
da Petrobras – que só será trocado em maio.

Definitivamente, é impossível pensar em qualquer hipótese de recuperação
da economia com taxas de juros nesses níveis. Não haverá investimento
novo, não haverá condições de reativar o mercado de crédito nem mesmo a
reativação de obras públicas, que esbarrará no custo do capital de giro.


    Peça 4 – a estratégia de Haddad

Haddad tem recorrido a uma estratégia gradual, que tem lhe permitido
conquistar a confiança do mercado.A ideia é aproximar-se de Campos Neto,
confiando em conquistar sua boa vontade, sem colocar em risco nenhum dos
dogmas do mercado.

 1. Apresentar um substituto para a Lei do Teto. E preparar o orçamento
    do próximo ano, acenando com orçamento equilibrado.
 2. Aprovar a reforma tributária.
 3. Avançar o programa de limpar a ficha de pessoas físicas inadimplentes.

Tudo isso para conseguir a boa vontade de Campos Neto na próxima reunião
do Copom (Comitê de Política Monetária).

Há um amplo descompasso entre o ritmo da crise que vem por aí, e o
timing da estratégia Haddad.

Mas há um problema de tempo aí. O Copom reúne-se a cada 45 dias. A
próxima reunião será nos dias 21 e 22 de março. Se tudo der certo, a ata
terá um pouco de boa vontade em relação aos esforços da Fazenda, e
acenará com alguns elogios. A próxima reunião será em maio, com a
possibilidade de uma queda de 0,25 na Selic.

Os mortos pela crise agradecerão penhoradamente a boa vontade.

E qual a alternativa? Se pedir a cabeça de Campos Neto ao Congresso, o
governo corre o risco de ser derrotado e desmoralizado. Entenderam o
tamanho da encrenca?

Por outro lado, de mãos amarradas e com a crise comendo solta, cada dia
de governo nunca é mais, é sempre menos.


    Peça 5 – a estratégia de Mercadante

A única estratégia clara de Mercadante é a de se habilitar a,
futuramente, ocupar o lugar de Haddad. O que de mais meritório fez até
agora foi a preparação de um seminário para analisar as práticas do
Banco Central. No que lhe cabe – discutir linhas de financiamento à
exportação – deixou a Fazenda na mão, precisando recorrer ao Banco do
Brasil para montar a linha de financiamento com a Argentina.

Historicamente, os financiamentos do BNDES tinham como parâmetro o custo
dos financiamentos internacionais, para conferir um mínimo de
competitividade às empresas brasileiras. Por isso, a TJLP (Taxa de Juros
de Longo Prazo) era invariavelmente inferior à Selic, permitindo aos
clientes do BNDES escapar da armadilha da Selic alta. A pretexto de que
esse diferencial significava subsídios – sem levar em conta o que os
financiamentos do BNDES geram em novos impostos, novos postos de
trabalho, novos empreendimentos -, passou-se a utilizar uma taxa de
mercado. Tudo isso para permitir ao mercado faturar em cima desse novo
veio. Deixou-se de lado o personagem principal do jogo – a empresa que
investe – para privilegiar o intermediário.

Mas, para não incorrer na ira do mercado, Mercadante diz que não vai
cobrar juros abaixo da Selic. Mencionou genericamente vários tipos de
operação que poderão ser desenvolvidas, mas sem detalhar nenhuma, porque
todas têm que obedecer ao princípio básico, de não ser inferior à Selic.
Então, esquece!


  Peça 6 – o Senhor Crise

Volta-se ao pré-2008. A política econômica deixa de ser a arte de
resolver problemas concretos da economia real, para ser um vai-da-valsa
em torno dos dogmas do mercado, devido às heranças malditas de Bolsonaro
e à falta atual de condições políticas.

E nem se condene Haddad. Ele joga de acordo com as possibilidades
políticas que têm à mão.

Só quando a crise abrir novamente a bocarra e ameaçar engolir não apenas
o governo, mas qualquer pretensão de recuperação do país civilizado, os
dogmas irão para segundo plano e os problemas reais ganharão novamente
prioridade.

Em
Jornal GGN
https://jornalggn.com.br/coluna-economica/xadrez-dos-nos-da-economia-e-da-volta-do-senhor-crise-por-luis-nassif/
28/2/2023

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