sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Um discurso devastador no Conselho de Segurança da ONU

 



    Sergei Lavrov [*]

Sr. Presidente,
Senhor Secretário-Geral,
Colegas

A atual ordem internacional foi construída sobre as ruínas e na
sequência da colossal tragédia da Segunda Guerra Mundial. Baseou-se na
Carta das Nações Unidas
<https://www.un.org/en/about-us/un-charter/full-text>, uma fonte
fundamental do direito internacional moderno. Em grande parte graças à
ONU, foi possível evitar uma nova guerra mundial, prenhe de uma
catástrofe nuclear.

Infelizmente, após o fim da Guerra Fria, o "Ocidente coletivo", liderado
pelos Estados Unidos, arrogou-se arbitrariamente o lugar de árbitro dos
destinos de toda a humanidade e, dominado por um complexo de
exclusividade, começou a ignorar cada vez mais o legado dos pais
fundadores da ONU.

Hoje em dia, o Ocidente refere-se às normas e aos princípios
estatutários de forma seletiva, de tempos a tempos, exclusivamente em
função das suas necessidades geopolíticas egoístas. Isto conduz
inevitavelmente ao enfraquecimento da estabilidade global, à exacerbação
das atuais e ao incitamento de novos focos de tensão. Os riscos de
conflito global também estão a aumentar. É precisamente para os travar,
para encaminhar os acontecimentos numa direção pacífica, que a Rússia
insistiu e insiste em que todas as disposições da Carta das Nações
Unidas sejam respeitadas e aplicadas, não de forma seletiva, mas na sua
totalidade e interligação, incluindo os princípios da igualdade soberana
dos Estados, da não ingerência nos seus assuntos internos, do respeito
pela integridade territorial e do direito dos povos à autodeterminação.
As ações dos Estados Unidos e dos seus aliados indicam um desequilíbrio
sistemático dos requisitos consagrados na Carta.

Desde o colapso da URSS e a formação de Estados independentes no seu
lugar, os Estados Unidos e os seus aliados têm interferido de forma
grosseira e aberta nos assuntos internos da Ucrânia. Como a secretária
de Estado Adjunta dos EUA, Victoria Nuland, admitiu publicamente e até
com orgulho no final de 2013, Washington gastou 5 mil milhões de dólares
para alimentar políticos obedientes ao Ocidente em Kiev.

Todos os factos da "engenharia" da crise ucraniana são conhecidos há
muito tempo, mas eles estão a tentar de todas as formas possíveis
silenciar, "cancelar" toda a história até 2014. Por conseguinte, o tema
da reunião de hoje, proposto pela Presidência albanesa, é muito oportuno
e permite-nos recuperar a cadeia cronológica dos acontecimentos, e
insere-se no contexto da atitude dos principais atores em relação à
implementação dos princípios e objetivos da Carta das Nações Unidas.

Em 2004-2005, o Ocidente, com o objetivo de levar um candidato
pró-americano ao poder, sancionou o primeiro golpe de Estado em Kiev,
forçando o Tribunal Constitucional da Ucrânia a tomar uma decisão ilegal
de realizar uma terceira volta de eleições não prevista na Constituição
do país. Uma ingerência ainda mais descarada nos assuntos internos
manifestou-se durante a segunda Maidan, em 2013-2014, quando toda uma
série de voyageurs ocidentais encorajaram diretamente os participantes
nas manifestações anti-governamentais a ações violentas. A mesma V.
Nuland discutiu com o embaixador dos EUA em Kiev a composição do futuro
governo, que será formado pelos golpistas. Ao mesmo tempo, indicou à
União Europeia o seu verdadeiro lugar na política mundial, do ponto de
vista de Washington. Todos nos lembramos da sua frase escabrosa de duas
palavras. É significativo que a União Europeia a tenha "engolido".

Em fevereiro de 2014, as personagens selecionadas pelos americanos
tornaram-se participantes-chave na sangrenta tomada do poder,
organizada, recordo, um dia depois do acordo alcançado entre o
Presidente legitimamente eleito da Ucrânia, Viktor Yanukovych, e os
líderes da oposição, sob as garantias da Alemanha, Polónia e França. O
princípio da não ingerência nos assuntos internos foi repetidamente
espezinhado.

Imediatamente após o golpe, os golpistas declararam que a sua prioridade
absoluta era restringir os direitos dos cidadãos ucranianos de língua
russa. E os habitantes da Crimeia e do sudeste do país, que se recusaram
a aceitar os resultados da tomada inconstitucional do poder, foram
declarados terroristas, tendo sido lançada uma operação punitiva contra
eles. Em resposta, a Crimeia e o Donbass realizaram referendos em plena
conformidade com o princípio da igualdade de direitos e da
autodeterminação dos povos, consagrado no nº 2 do artigo 1.

Os diplomatas e políticos ocidentais, em relação à Ucrânia, fecham os
olhos a esta norma mais importante do direito internacional, num esforço
para reduzir todo o contexto e a essência do que está a acontecer à
inadmissibilidade de violar a integridade territorial. A este respeito,
gostaria de recordar que a Declaração das Nações Unidas de 1970 sobre os
Princípios do Direito Internacional relativos às Relações Amistosas e à
Cooperação entre os Estados
<https://digitallibrary.un.org/record/202170>, em conformidade com a
Carta das Nações Unidas, adotada por unanimidade, estipula que o
princípio do respeito pela integridade territorial é aplicável aos
"Estados que observam nas suas ações o princípio da igualdade de
direitos e da autodeterminação dos povos (...) e, consequentemente, têm
governos que representam (...) todas as pessoas que vivem no
território". O facto de os neonazis ucranianos que tomaram o poder em
Kiev não representarem a população da Crimeia e do Donbass não precisa
de ser provado. E o apoio incondicional das capitais ocidentais às ações
do regime criminoso de Kiev não é mais do que uma violação do princípio
da autodeterminação na sequência de uma interferência grosseira nos
assuntos internos.

Na sequência do golpe de Estado durante o reinado de Petr Poroshenko e
depois de Vladimir Zelensky, a adoção de leis racistas que proibiam tudo
o que era russo – educação, meios de comunicação social, cultura,
destruição de livros e monumentos, proibição da Igreja Ortodoxa
Ucraniana e confiscação dos seus bens – constituiu uma violação
desafiadora do n.º 3 do artigo 1.º da Carta das Nações Unidas sobre o
respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos –
sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. Para não falar do facto
de estas ações contradizerem diretamente a Constituição da Ucrânia, que
consagra a obrigação do Estado de respeitar os direitos dos russos e de
outras minorias nacionais.

Quando ouvimos apelos à aplicação da "fórmula de paz" e ao regresso da
Ucrânia às fronteiras de 1991, coloca-se a questão: será que aqueles que
apelam a esta medida estão familiarizados com as declarações dos
dirigentes ucranianos sobre o que vão fazer com os habitantes dos
respectivos territórios? Ameaças de extermínio legal ou físico são-lhes
repetidamente dirigidas publicamente, a nível oficial. O Ocidente não só
não reprime os seus protegidos em Kiev, como também encoraja
entusiasticamente as suas políticas racistas.

Aliás, de forma semelhante, os membros da UE e da NATO têm vindo a
encorajar, há décadas, as ações da Letónia e da Estónia para derrotar os
direitos de centenas de milhares de residentes de língua russa que foram
apelidados de "não cidadãos". Agora, estão a discutir seriamente a
introdução da responsabilidade penal pela utilização da língua materna.
Altos funcionários declaram oficialmente que a divulgação de informação
sobre a possibilidade de os estudantes locais passarem nos programas de
ensino à distância em russo deve ser considerada quase como uma ameaça à
segurança nacional e requer a atenção das autoridades policiais.

Voltando à Ucrânia. A conclusão dos acordos de Minsk, em fevereiro de
2015, foi aprovada por uma resolução especial do Conselho de Segurança -
em total conformidade com o artigo 36º da Carta, que apoia "qualquer
procedimento de resolução de litígios que tenha sido aceite pelas
partes". Neste caso, Kiev, a DPR e a LPR. No entanto, no ano passado,
todos os signatários dos Acordos de Minsk, exceto Vladimir Putin (Angela
Merkel, François Hollande e Petr Poroshenko), admitiram publicamente e
até de bom grado que, quando assinaram este documento, não tinham
qualquer intenção de o cumprir. Apenas procuravam ganhar tempo para
reforçar o potencial militar da Ucrânia e enchê-la de armas contra a
Rússia. Durante todos estes anos, a UE e a NATO apoiaram diretamente a
sabotagem dos acordos de Minsk, pressionando o regime de Kiev a resolver
o "problema do Donbass" pela força. Isto foi feito em violação do artigo
25º da Carta, segundo o qual todos os membros da ONU são obrigados a
"obedecer às decisões do Conselho de Segurança e a executá-las".

Recordo que, no pacote dos acordos de Minsk, os líderes da Rússia,
Alemanha, França e Ucrânia assinaram uma declaração em que Berlim e
Paris se comprometeram a fazer bastante, incluindo ajudar a restaurar o
sistema bancário no Donbass. Mas não mexeram um dedo. Acabámos de ver
como, contrariamente a todas estas obrigações, Pavel Poroshenko anunciou
um bloqueio comercial, económico e de transportes ao Donbass. Na mesma
declaração, Berlim e Paris comprometeram-se a promover o reforço da
cooperação trilateral no formato UE-Rússia-Ucrânia para uma solução
prática para as preocupações comerciais da Rússia, bem como a promover
"a criação de um espaço humanitário e económico comum do Atlântico ao
Oceano Pacífico". Esta declaração foi também aprovada pelo Conselho de
Segurança e estava sujeita a implementação de acordo com o já referido
artigo 25º da Carta das Nações Unidas. Mas este compromisso dos
dirigentes da Alemanha e da França revelou-se uma "farsa", mais uma
violação dos princípios estatutários.

O lendário ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS, A.A. Gromyko,
observou, com razão, mais do que uma vez: "dez anos de negociações são
melhores do que um dia de guerra". Seguindo este preceito, negociámos
durante muitos anos, procurámos acordos no domínio da segurança
europeia, aprovámos o Ato Fundador NATO-Rússia, adotámos as declarações
da OSCE sobre a indivisibilidade da segurança ao mais alto nível em 1999
e 2010 e, desde 2015, insistimos na aplicação incondicional dos acordos
de Minsk resultantes das negociações. Tudo isto está em plena
conformidade com a Carta das Nações Unidas, que exige "proporcionar
condições para a justiça e o respeito pelas obrigações decorrentes de
tratados e outras fontes do direito internacional". Os nossos colegas
ocidentais espezinharam este princípio quando assinaram todos estes
documentos, sabendo de antemão que não os iriam cumprir.

Falando de negociações. Continuamos a não as abandonar. O Presidente da
Rússia, Vladimir Putin, falou sobre isso muitas vezes, inclusive muito
recentemente. Gostaria de recordar ao ilustre secretário de Estado que o
Presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, assinou um decreto que proíbe
as negociações com o Governo de Vladimir Putin. Se os Estados Unidos
estão tão interessados nelas, penso que não será difícil "dar a ordem"
para que a ordem executiva de Vladimir Zelensky seja cancelada.

Atualmente, na retórica dos nossos adversários, só ouvimos slogans:
"invasão, agressão, anexação". Nem uma palavra sobre as causas profundas
do problema, sobre como durante muitos anos alimentaram o regime
abertamente nazi, reescrevendo abertamente os resultados da Segunda
Guerra Mundial e a história do seu próprio povo. O Ocidente evita uma
conversa substantiva baseada em factos e no respeito por todos os
requisitos da Carta das Nações Unidas. Aparentemente, não tem argumentos
para um diálogo honesto.

Há uma forte impressão de que os representantes ocidentais têm medo de
discussões profissionais que exponham a sua demagogia. Proferindo
encantamentos sobre a integridade territorial da Ucrânia, as antigas
metrópoles coloniais calam-se perante as decisões da ONU sobre a
necessidade de Paris devolver o Mayotte "francês" à União das Comores, e
de Londres abandonar o arquipélago de Chagos e iniciar negociações com
Buenos Aires sobre as ilhas Malvinas. Estes "campeões" da integridade
territorial da Ucrânia fingem agora que não se lembram do significado
dos acordos de Minsk, que consistiam na reunificação do Donbass com a
Ucrânia, com garantias de respeito pelos direitos humanos fundamentais,
principalmente o direito à sua língua materna. O Ocidente, que impediu a
sua aplicação, é diretamente responsável pelo colapso da Ucrânia e pelo
incitamento à guerra civil no país.

Entre outros princípios da Carta das Nações Unidas, cujo respeito
poderia evitar uma crise de segurança na Europa e contribuir para
harmonizar as medidas de confiança baseadas num equilíbrio de
interesses, gostaria de referir o artigo 2º do capítulo VIII da Carta.
Este artigo consagra a necessidade de desenvolver a prática da resolução
pacífica de litígios com a ajuda de organizações regionais.

De acordo com este princípio, a Rússia, juntamente com os seus aliados,
tem defendido consistentemente o estabelecimento de contactos entre a
CSTO
<https://en.wikipedia.org/wiki/Collective_Security_Treaty_Organization>
e a NATO, a fim de facilitar a implementação prática das decisões acima
mencionadas das cimeiras da OSCE de 1999 e 2010 sobre a indivisibilidade
da segurança, que estipulam, em particular, que "a nenhum Estado, grupo
de Estados ou organização pode ser atribuída a responsabilidade primária
pela manutenção da paz e da estabilidade na área da OSCE ou considerar
qualquer parte desta região como sua esfera de influência". Todos sabem
que era exatamente isto que a NATO estava a fazer – a tentar criar a sua
vantagem total na Europa e agora na região da Ásia-Pacífico. No entanto,
foram ignorados numerosos apelos dos mais altos órgãos da CSTO à Aliança
do Atlântico Norte. A razão para uma posição tão arrogante dos Estados
Unidos e dos seus aliados, como toda a gente pode ver hoje em dia, é a
falta de vontade de conduzir um diálogo igualitário com quem quer que
seja. Se a NATO não tivesse rejeitado as propostas de cooperação da
CSTO, talvez isso tivesse evitado muitos dos processos negativos que
conduziram à atual crise europeia, devido ao facto de a Rússia se ter
recusado a ouvir ou ter sido enganada durante décadas.

Hoje, quando estamos a discutir o "multilateralismo efetivo" por
sugestão da Presidência, não devemos esquecer os numerosos factos da
rejeição genética do Ocidente a qualquer forma de cooperação
igualitária. Que pérola a de Josep Borrell de que a Europa é "um jardim
florido rodeado de selva". Trata-se de um síndroma puramente neocolonial
que despreza a igualdade soberana dos Estados e as tarefas de "reforço
dos princípios da Carta das Nações Unidas através de um multilateralismo
efetivo" que estão hoje em dia em evidência no nosso debate.

Numa tentativa de impedir a democratização das relações interestatais,
os Estados Unidos e os seus aliados privatizam cada vez mais, de forma
aberta e sem cerimónias, os secretariados das organizações
internacionais, contornando os procedimentos estabelecidos para as
decisões sobre a criação de mecanismos subordinados com mandatos não
consensuais, mas com a pretensão de se arrogarem o direito de culpar
aqueles que, por qualquer razão, não agradam a Washington.

A este respeito, gostaria de vos recordar a necessidade de uma aplicação
rigorosa da Carta das Nações Unidas, não só pelos Estados membros, mas
também pelo Secretariado da nossa organização. Nos termos do artigo 100º
da Carta, o Secretariado deve atuar com imparcialidade e não deve
receber instruções de nenhum governo.

Já falámos do artigo 2º da Carta. Gostaria de chamar a atenção para o
seu ponto-chave 1: "A Organização baseia-se no princípio da igualdade
soberana dos Estados de todos os seus membros". Desenvolvendo este
princípio, a Assembleia Geral da ONU, na Declaração de 24 de outubro de
1970 que mencionei, reafirmou "o direito inalienável de cada Estado de
escolher o seu próprio sistema político, económico, social e cultural
sem interferência de qualquer parte". A este respeito, temos sérias
dúvidas quanto às declarações do Secretário-Geral António Guterres, de
29 de março, segundo as quais "o regime autocrático não garante a
estabilidade, é um catalisador do caos e do conflito", mas "as
sociedades democráticas fortes são capazes de se auto-corrigir e de se
auto-aperfeiçoar. Podem estimular mudanças, mesmo radicais, sem
derramamento de sangue ou violência". Involuntariamente, lembramo-nos
das "mudanças" provocadas pelas aventuras agressivas das "democracias
fortes" na Jugoslávia, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria e
em muitos outros países.

Mais adiante, o estimado António Guterres afirmou que: "Elas (as
democracias) são centros de ampla cooperação enraizados nos princípios
da igualdade, da participação e da solidariedade". É digno de nota que
todos estes discursos foram proferidos na "cimeira para a democracia"
convocada pelo Presidente Joe Biden fora da ONU, cujos participantes
foram selecionados pela administração dos EUA com base na lealdade – e
não tanto a Washington como ao Partido Democrata no poder nos Estados
Unidos. As tentativas de utilizar esses fóruns de encontro para discutir
questões de natureza global contradizem diretamente o nº 4 do artigo 1º
da Carta das Nações Unidas, que afirma a necessidade de "assegurar o
papel da Organização como centro de coordenação de ações para atingir
objetivos comuns".

Contrariamente a este princípio, há alguns anos, a França e a Alemanha
proclamaram uma "aliança de multilateralistas", para a qual também
convidaram apenas os obedientes, o que, por si só, reafirma a
inevitabilidade da mentalidade colonial e a atitude dos iniciadores em
relação ao princípio do "multilateralismo efetivo", hoje na ordem do
dia. Ao mesmo tempo, foi implantada uma "narrativa" sobre a União
Europeia como o ideal desse mesmo "multilateralismo". Bruxelas apela
agora a que se alargue o mais rapidamente possível o número de membros
da UE, incluindo, em particular, os países dos Balcãs. Mas o pathos
principal não é o da Sérvia, nem o da Turquia, que há décadas conduz
negociações de adesão sem esperança, mas o da Ucrânia. Afirmando-se como
o ideólogo da integração europeia, Josep Borrell não hesitou
recentemente em pronunciar-se no sentido de que o regime de Kiev deveria
ser admitido na União Europeia tão logo quanto possível. Digamos que, se
não fosse por causa da guerra, teria demorado anos, e desse modo– é
possível e necessário sem quaisquer critérios. A Sérvia, a Turquia e
outros ficarão à espera. Mas os nazis são aceites nas fileiras da UE sem
entrar na fila.

Aliás, na mesma "cimeira para a democracia", o Secretário-Geral
proclamou: "A democracia tem origem na Carta das Nações Unidas. As
primeiras palavras da Carta – "Nós, os povos" – refletem uma fonte
fundamental de legitimidade: o consentimento dos governados. É útil
correlacionar esta tese com o "historial" do regime de Kiev, que
desencadeou uma guerra contra uma grande parte do seu próprio povo –
contra os milhões de pessoas que não aceitaram serem controladas pelos
neonazis e russófobos que tomaram ilegalmente o poder no país e
enterraram os acordos de Minsk aprovados pelo Conselho de Segurança da
ONU, minando assim a integridade territorial da Ucrânia.

Aqueles que, contrariamente à Carta das Nações Unidas, dividem a
humanidade em "democracias" e "autocracias", fariam bem em responder à
pergunta: a que categoria atribuem o regime ucraniano? Não estou à
espera de uma resposta.

Falando dos princípios da Carta, coloca-se a questão da relação entre o
Conselho de Segurança e a Assembleia Geral. O "coletivo ocidental" tem
promovido agressivamente e há muito tempo o tópico do "abuso do direito
de veto" e conseguiu – através de uma pressão não muito correta sobre
outros membros da ONU –uma decisão de considerar o tópico relevante na
Assembleia Geral após cada aplicação deste direito, o qual o Ocidente
está a provocar cada vez mais deliberadamente. Isto não é um problema
para nós. As abordagens da Rússia a todas as questões da ordem do dia
são abertas, não temos nada a esconder e não é difícil voltar a afirmar
esta posição. Além disso, o recurso ao veto é um instrumento
absolutamente legítimo, previsto na Carta, para evitar a adoção de
decisões que poderiam provocar uma cisão na Organização. Mas, uma vez
que o procedimento para discutir o uso do veto na Assembleia Geral foi
aprovado, por que não pensar nas resoluções do Conselho de Segurança que
não foram vetadas, que foram adotadas, inclusive há muitos anos, mas que
não foram implementadas, apesar das disposições do artigo 25º da Carta.
Porque é que a Assembleia Geral não considera as razões para este estado
de coisas – por exemplo, no que diz respeito às resoluções do Conselho
de Segurança sobre a Palestina e sobre toda a gama de problemas do Médio
Oriente e Norte da África, sobre o JCPOA, bem como a Resolução 2202, que
aprovou os acordos de Minsk sobre a Ucrânia.

O problema associado aos regimes de sanções também requer atenção. Já se
tornou a norma: o Conselho de Segurança, após longas negociações – em
estrita conformidade com a Carta – aprova sanções contra um país
específico e, em seguida, os Estados Unidos e os seus aliados impõem
restrições unilaterais "adicionais" contra o mesmo Estado que não foram
aprovadas pelo Conselho de Segurança e não estão incluídas na sua
resolução como parte do "pacote" acordado. Na mesma série, outro exemplo
flagrante é a decisão que Berlim, Paris e Londres acabam de tomar,
através das suas legislações nacionais, de "prorrogar" as restrições ao
Irão que expiram em outubro e que estão sujeitas a um termo legal, de
acordo com a Resolução 2231 do Conselho de Segurança da ONU
<https://www.un.org/securitycouncil/content/2231/background>. Ou seja,
os países europeus e o Reino Unido declaram que a decisão do Conselho de
Segurança expirou, mas não se preocupam com isso, têm as suas próprias
"regras".

Tudo isto torna ainda mais urgente considerar a questão de que, após a
adoção pelo Conselho de qualquer resolução de sanções, nenhum dos
membros da ONU teria o direito de a desvalorizar, impondo as suas
próprias restrições ilegítimas contra o mesmo país.

É igualmente importante que todos os regimes de sanções do Conselho de
Segurança sejam limitados no tempo, uma vez que o seu carácter
indefinido priva o Conselho de flexibilidade em termos de influência
sobre as políticas dos "governos sancionados".

O tema dos "limites humanitários das sanções" também requer atenção.
Seria correto que quaisquer sanções a submeter ao Conselho de Segurança
fossem acompanhadas de avaliações das suas consequências para os
cidadãos através das agências humanitárias da ONU, em vez de exortações
demagógicas dos nossos colegas ocidentais [a dizerem] que "as pessoas
comuns não sofrerão".

Caros colegas,
Os factos falam da mais profunda crise nas relações internacionais e da
falta de desejo e vontade por parte do Ocidente para ultrapassar esta crise.

Espero que ainda exista e seja encontrada uma saída para esta situação.
Para começar, todos têm de assumir a responsabilidade pelo destino da
nossa Organização e do mundo – num contexto histórico, e não do ponto de
vista de alinhamentos eleitorais oportunistas e momentâneos nas próximas
eleições nacionais de um Estado-Membro. *Permitam-me que vos recorde
mais uma vez: há quase 80 anos, ao assinarem a Carta das Nações Unidas,
os líderes mundiais concordaram em respeitar a igualdade soberana de
todos os Estados – grandes e pequenos, ricos e pobres, monarquias e
repúblicas. Por outras palavras, já nessa altura, a humanidade
reconhecia a necessidade de uma ordem mundial igualitária e policêntrica
como garantia da estabilidade e da segurança do seu desenvolvimento.*

Por isso, hoje não se trata de nos submetermos a uma qualquer "ordem
mundial baseada em regras", mas sim de cumprirmos com todas as
obrigações assumidas aquando da assinatura e ratificação da Carta na sua
totalidade e interligação.


        21/Setembro/2023


    [*] Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa.

EM
resistir.info
https://www.resistir.info/russia/lavrov_onu_21set23.html
21/9/2023


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