Manuel Raposo
O jargão parlamentar e comunicacional impôs na opinião pública uma
identificação das forças partidárias segundo critérios de tipo
topográfico (esquerda, direita, centro) ou de tipo comportamental
(extremista, radical, moderado) que na verdade pouco ou nada nos dizem
sobre a sua natureza política. Importa lembrar que os partidos, todos
eles, representam classes sociais, mesmo quando a ligação entre aqueles
e estas se mostra obscura e difícil de estabelecer. Apagar esta matriz
significa esconder os interesses de classe que se alinham nas políticas
das diversas forças partidárias, não apenas no que por elas é proposto,
mas também no que respeita à sua acção prática.
As ideias políticas avançadas por cada partido só parcialmente permitem
identificar esses interesses, que se apresentam, na maior parte das
vezes, revestidos por uma roupagem de “interesse geral” pretensamente
dirigido a qualquer classe social. “O país”, “os cidadãos”, “os
portugueses” são termos que identificam essa roupagem enganadora. O
primeiro elemento de demagogia das campanhas de propaganda partidárias
está exactamente aqui: no obscurecimento da raiz de classe de um
partido, dos interesses que defende por debaixo das palavras que usa,
das propostas que faz, ou do público a que se dirige.
De um modo geral, numa sociedade que não atravesse uma situação
revolucionária, os partidos dominantes são os partidos das classes
dominantes. As classes trabalhadoras, massacradas pela propaganda
oficial, são convidadas a escolher entre eles sem alternativa. Torna-se
difícil, nessas situações, que uma via política de classe, independente
e radical, obtenha o apoio da maioria dos trabalhadores. Mas pode sempre
mobilizar uma minoria significativa de trabalhadores combativos.
Como as campanhas eleitorais são terreno propício para o adensamento
daquele tipo de nevoeiro, aqui se deixa uma contribuição para
identificar, em cada força partidária do espectro parlamentar, a
natureza de classe dos interesses que defende e que ligação isso tem com
as formulações políticas que avança.
*Chega*
É o partido dos despolitizados. Capta abstencionistas de longa data,
gente que está farta de viver mal e de ser ignorada, que nutre justo
desprezo pelo sistema dominante (político, social, económico, cultural)
mas que não tem visão política de como sair da situação, e decide
apostar às cegas.
As opiniões políticas e outras destas camadas sociais não resultam de
uma análise racional da realidade, mas sim de sentimentos de raiva e
inveja. Raiva contra os responsáveis pela sua má vida e inveja dos bem-
sucedidos cujo nível sentem nunca poder atingir. Por ignorância, são
facilmente levadas a identificar erradamente os culpados dos seus males:
viram-se contra os imigrantes que acusam de “roubar o nosso trabalho” e
de viverem “à pala do subsídio”, ou contra “os comunas” e “os xuxas” que
acusam de destruir a economia e os bons costumes, ou contra os grevistas
que acusam de “querer ganhar sem fazer nenhum”.
O Chega cumpre o papel histórico de todo o fascismo: arrastar para o
campo da burguesia a pequena burguesia arruinada, amedrontada e
desorientada, procurando colmatar a brecha que a decadência do
capitalismo abriu entre uma e outra. Atrás desta, seguem franjas das
classes populares. As promessas de “mudança”, com demagogia a rodos,
procuram colocar os que pouco ou nada têm a reboque dos que estão bem na
vida.
A despolitização da população trabalhadora abre campo e fornece apoios a
este novo fascismo. A sua política é uma amálgama de estatismo para
atrair a massa empobrecida e de liberalismo para contentar o capital e
suscitar o seu apoio. Os seus líderes vociferam contra “o sistema” para
ganharem um lugar no sistema. Os apoios financeiros que vão recebendo
mostram a quem servem. A crise da democracia burguesa parlamentar que
acompanha a falência do capitalismo fornece-lhes espaço de manobra e
argumentos.
O seu campo de recrutamento é a pequena burguesia desesperada, as forças
repressivas (às quais um poder “forte” beneficia), o proletariado mais
miserável empurrado para fora do regime do salariado, franjas dos
trabalhadores que não vêem ou desesperaram de ver soluções próprias da
sua classe. Cativa ainda faixas da população jovem que não se encaixam
numa única classe social – “a malta nova”, igualmente despolitizada,
atraída pela vozearia “anti-sistema” e pela rebeldia teatral do líder do
partido. Tem pés assentes em sectores da alta burguesia, bem
identificáveis pelos resultados obtidos em mesas eleitorais das
freguesias mais ricas.
O capital espera para ver o êxito da manobra. Entretanto, financia-a. A
burguesia acolhe sempre as organizações fascistas e de extrema-direita
como forças políticas de reserva.
*Iniciativa Liberal*
São os apóstolos da liberdade total para o capital. Representam os
interesses monopolistas arvorando a “iniciativa individual” como
bandeira. Defendem (com atraso de 40 anos) a ideia de que quanto mais
ricos forem os de cima, mais poderá sobrar para os de baixo. A prática
já mostrou que, por tal via, nem crescimento económico, nem diminuição
da pobreza – mas isso não lhes interessa. São os paladinos da
desigualdade de classes como motor da economia.
Constituem a resposta extremada da direita e do capital ao marasmo dos
negócios capitalistas: privatizar tudo o que possa dar lucro para que o
capital tenha mais pasto. Daí, transferir as verbas sociais do Estado
para bolsos privados. Daí, o favorecimento do negócio privado da saúde à
custa do SNS. Daí, a privatização da CGD, para as mãos da banca
espanhola e europeia. Daí, a privatização da TAP, para as mãos das
grandes transportadoras europeias.
Apoiam-se numa média burguesia urbana (universitários, quadros
qualificados de empresas privadas). A IL faz junto das classes altas e
dos quadros do capital politizados aquilo que o Chega faz junto das
camadas populares despolitizadas e desesperadas. Completam-se.
*PS e PSD*
São os dois grandes partidos da burguesia. Separa-os a forma de conduzir
a política do capital, particularmente difícil numa situação de crise
geral dos negócios que se prolonga sem fim à vista. A alternância de um
e outro no poder, sem que nada de essencial mude, prova o serviço comum
que prestam ao capitalismo e às classes dominantes.
São, por igual, serventuários do poder imperialista, sejam os monopólios
da UE, sejam os monopólios mundiais liderados pelos EUA. São
responsáveis por amarrarem o país aos propósitos bélicos dos EUA, da
NATO e da UE. As garantias que ambos dão de aumentar os gastos militares
vão traduzir-se num ataque ruinoso às políticas de apoio social.
*O PS*baseou a sua política dos últimos nove anos num tripé: 1) pagar a
dívida do Estado (na maioria, dívida do capital privado assumida pelo
Estado) com os recursos de todos; 2) distribuir migalhas aos
pensionistas e aos trabalhadores assalariados; 3) canalizar as colossais
verbas europeias (nomeadamente, do PRR) para reforço do capital. Assim,
a dívida do capital (que não tem fim) vai sendo saldada pela massa do
povo, que em troca recebe pequenos benefícios que lhe calam a boca.
O governo do PS beneficiou da devastação causada pela troika entre 2011
e 2014. Diante da brutalidade das medidas antipopulares do governo PSD-
CDS, qualquer pequena melhoria passou por ser um grande alívio. Não foi:
os desníveis sociais continuaram a aumentar, a pobreza avançou, o
trabalho precário proliferou, as medidas sociais pautaram-se pela busca
de um “equilíbrio” que não pusesse em causa os negócios privados (na
saúde, na habitação, na política salarial, na legislação laboral).
De 2015 a 2019, o PS tirou partido do apoio dado pelo BE e pelo PCP. As
lutas sociais (sindicais, etc.) em vez de crescerem, na sequência da
derrota da direita, foram amortecidas. Alimentou-se a esperança vã de
que o Governo resolveria os males dos trabalhadores pela via parlamentar
e negocial. Em vez de se ver apertado pelo movimento popular e laboral
(que tinha encurralado o governo da troika), o governo do PS ficou de
mãos livres. Resultado: a recuperação das perdas vindas do tempo da
troika não foi feita, nem na totalidade, nem no que era essencial. Por
exemplo, a legislação laboral permaneceu intocada na questão decisiva da
contratação colectiva, retirando poder negocial aos sindicatos.
No final de quatro anos, o PS obteve maioria absoluta à custa dos seus
apoiantes, canibalizando-os. O baixo nível das lutas sociais,
nomeadamente operárias, durante esses quatro anos explica o sucedido. E
vem igualmente daí – da falta de oposição popular de massas com voz
política própria – o à-vontade com que crescem a direita e a extrema-
direita.
O PS é o principal partido das camadas médio-burguesas e pequeno-
burguesas reformistas, o que lhe permite apresentar-se diante do
capital, grande e pequeno, como o partido da “estabilidade” e das
medidas “equilibradas”. Consegue, com este estatuto, neutralizar grande
parte da massa trabalhadora, a qual deposita esperanças no reformismo
que o PS apregoa abdicando da sua independência política. É isto que faz
dele o melhor instrumento político do sistema capitalista em momentos de
crise social – como se viu no verão de 1975 e recentemente com a
política terrorista da troika.
*O PSD*é o outro actor para a mesma política de fundo. Com uma
particularidade na situação presente: tira partido do marasmo das lutas
operárias e populares e da despolitização geral da população
trabalhadora. Acha por isso possível ir mais longe que o PS: privatizar
empresas estatais rentáveis, libertar de impostos o capital e diminuir
os apoios sociais, beneficiar abertamente o negócio privado da saúde,
sacrificar as políticas sociais de habitação aos interesses
imobiliários, agravar sempre que possível a legislação laboral dando
mais liberdade de manobra ao capital.
O seu modelo é a IL, só que um passo atrás. Admite abertamente uma
coligação com a IL e não a põe de lado com o Chega se isso for
necessário para formar governo.
Apoia-se no grande capital, nas classes médio-burguesas e pequeno-
burguesas proprietárias, urbanas e rurais, em quadros de empresas, nas
camadas assalariadas dos serviços com maiores rendimentos. A sua base de
apoio social e eleitoral cruza-se em larga medida com a do PS, e daí
serem intermutáveis para efeitos de governo.
*BE e PCP*
São a esquerda do regime político vigente. Ambos estão integrados no
sistema capitalista. É na qualidade de esquerda institucional que levam
a cabo a sua crítica dos males do regime. Criticam-no pelos seus
excessos e injustiças, mas não pela sua natureza de classe, não pela sua
natureza de sistema de exploração que deva ser abolido. A luta política
parlamentar, no quadro das instituições, é o centro da sua actividade.
Mobilizar as massas trabalhadoras contra o sistema capitalista numa
acção política independente está fora dos seus horizontes.
Vivem na dependência estratégica do PS. Qualquer uma das fórmulas de
“governo de esquerda” avançadas pelo BE ou o PCP depende inteiramente de
uma posição hegemónica do PS no eleitorado popular. O acordo governativo
de 2015 foi disso exemplo.
*O BE*tornou-se um simples apêndice de esquerda do PS, o grilo falante
que aponta os males que continuam por debelar. Sem bases seguras na
massa popular e trabalhadora – sindicatos, comissões de trabalhadores,
autarquias, que perdeu progressivamente ao privilegiar a acção eleitoral
e parlamentar – não tem hoje outra via de intervenção que não seja
constituir-se como a consciência crítica do reformismo (mal) corporizado
pelo PS.
Abandonou qualquer demarcação face à UE enquanto formação imperialista
do capital europeu. Abandonou igualmente a crítica à NATO enquanto braço
armado do imperialismo. O alinhamento pelo Ocidente na guerra da Ucrânia
coloca-o ao arrasto da política guerreira do imperialismo EUA-UE, a par
dos partidos da burguesia capitalista.
Pôs de lado qualquer ideia de luta pelo socialismo em favor de uma via
de “melhoramentos” do sistema capitalista. As causas sociais parcelares
a que se dedica não constituem, todas somadas, uma linha política
anticapitalista. Esqueceu que é a luta das massas populares pela
transformação social radical que dá sentido a cada luta particular e a
cada reivindicação.
A sua base de apoio cruza-se em parte com a do PS. Recruta entre as
camadas pequeno-burguesas reformistas mais à esquerda, principalmente
urbanas, meios universitários, sectores de trabalhadores precários,
trabalhadores que abandonaram a perspectiva da revolução social, camadas
de classe que pugnam por causas sectoriais (ambiente, direitos de
minorias, etc.). Muitas destas camadas, pela posição de classe e pela
ideologia, oscilam entre o BE e o PS, como se viu nas eleições de 2022.
*O PCP*é o único partido que mantém bases na classe operária, em
diversos outros sectores de trabalhadores assalariados, nos sindicatos e
noutras organizações de massas. Esta influência está em perda. Cada vez
mais, a intervenção do partido se reduz ao parlamento e à actividade
sindical. A sua política definha por isso mesmo.
Operou, sobretudo nos últimos anos, o que se pode chamar uma
sindicalização da actividade política – justamente o que Lenine apontou
como um sinal da secundarização da luta política, de classe, junto dos
trabalhadores. Reduzir a luta de massas à acção sindical e
reivindicativa conduz em linha recta à despolitização dos trabalhadores.
Esse efeito está hoje bem à vista: a maioria absoluta do PS obtida há
dois anos e o crescimento da direita são também resultado dessa
despolitização.
Na propaganda do PCP, o 25 de Abril é uma bandeira puramente
democrática, sem referência ao seu lado popular-revolucionário,
anticapitalista. A luta no quadro da Constituição é o limite a que as
acções de massas se subordinam. Aqui reside uma das principais razões da
perda de apoio eleitoral do partido, da degradação da sua política, do
seu esgotamento ideológico, do apagamento das suas palavras de ordem, da
perda de quadros, da dificuldade em recrutar apoios jovens.
Mantém, em relação à guerra na Ucrânia, uma demarcação das posições
oficiais que é única no quadro das forças parlamentares. Mas a sua
posição a respeito do papel da NATO e da atitude das autoridades
portuguesas sobre o assunto manifesta-se em surdina, limitando-se a
lembrar o preceito constitucional de dissolução dos blocos militares e a
clamar pela paz – apagando a crítica política directa aos desmandos do
imperialismo na situação concreta.
O PCP apoia-se em sectores do proletariado (operários e outros
trabalhadores assalariados), nos activistas sindicais, em estratos da
pequena burguesia mais pobre (assalariada ou proprietária), em camadas
democráticas saudosas do 25 de Abril sem ambições revolucionárias.
*Livre e PAN*
São o que se pode chamar adereços do regime político. Não cumprem nenhum
papel que seja distinto do dos demais partidos, apesar da especificidade
que reivindicam para si.
A aposta do*Livre*no “projecto europeu” e no “aperfeiçoamento” do regime
democrático não o diferencia dos partidos que promovem a mesma utopia
sem atacarem a natureza imperialista da UE e sem encararem uma alteração
radical do regime social. A sua base de apoio não se distingue da do BE
ou da esquerda do PS.
O *PAN*cultiva a aparência de partido insubstituível no que toca às
causas “do planeta”. Ignora que, sem tocar na raiz do problema, a
natureza predatória do capitalismo, nada no planeta se resolverá.
Afirmando-se nem de esquerda nem de direita, assume o papel oportunista
de buscar alianças sem princípios, em qualquer azimute político, numa
via de protagonismo fácil. Colhe apoios residuais em camadas pequeno-
burguesas “apartidárias”, principalmente urbanas.
*Abstenção e abstencionismo*
A abstenção atinge mais de metade do eleitorado nominal, mas não
constitui uma força política, como por vezes se pretende. É uma mistura
que reúne tanto simples desinteressados da política de todas as classes,
como estratos burgueses que acham desnecessário votar porque sentem o
regime seguro, como estratos proletários e populares que não se sentem
representados por nenhum partido. Reúne num mesmo saco tanto adeptos
passivos do regime político como opositores que o desprezam mas não lhe
vêem alternativa.
Deste saco podem sair votantes para qualquer força partidária quando as
circunstâncias os fazem decidir, como acontece em períodos de grande
agitação social ou quando uma força política nova parece abrir caminho.
Nessas alturas, o aparente bloco da abstenção divide-se segundo as
clivagens de classe ou as ilusões do momento.
A ideia, presente em alguma esquerda anticapitalista, de que uma
abstenção elevada “retira legitimidade” ao regime político burguês
esquece as razões muito diversas e as origens de classe distintas da
abstenção. Se a abstenção tivesse em si mesma tal virtude, há muito que
a maioria dos regimes parlamentares teria caído.Neste sentido, o
abstencionismo é uma outra forma de apoliticismo, directamente
resultante da fraqueza e da desorganização da esquerda anticapitalista.
Em
JORNAL MUDAR DE VIDA
https://www.jornalmudardevida.net/2024/02/26/para-uma-identificacao-dos-partidos-como-forcas-de-classe/
26/2/2024
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024
Para uma identificação dos partidos como forças de classe
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