terça-feira, 9 de dezembro de 2014
A guerra pelos media e o triunfo da propaganda
por John Pilger [*]
Por que tão grande parte do jornalismo sucumbiu à propaganda? Por que a
censura e a distorção são a prática padrão? Por que a BBC é tão
frequentemente uma porta-voz do poder rapinante? Por que o New York Times
e o Washington Post enganam os seus leitores?
Por que não ensinam os jornalistas jovens a entender as agendas dos media
e a desafiar as afirmações altissonantes e os baixos objectivos da falsa
objectividade? E por que não lhes ensinam que a essência de grande parte
do que se publica nos media de referência não tem a ver com informação e
sim com poder?
Estas são questões urgentes. O mundo está a enfrentar a perspectiva de uma
grande guerra, talvez nuclear – com os Estados Unidos claramente
determinados a isolar e provocar a Rússia e finalmente a China. Esta
verdade está a ser invertida e posta às avessas por jornalistas, incluindo
aqueles que promoveram as mentiras que levaram ao banho de sangue no
Iraque em 2003.
Os tempos que vivemos são tão perigosos e tão distorcidos na percepção
pública que a propaganda já não é, como a denominou Edward Bernays, um
"governo invisível". Ela é o governo. Ele domina directamente sem receio
de contradição e seu principal objectivo é a conquista de nós próprios: do
nosso sentido do mundo, da nossa capacidade para separar verdade de
mentiras.
A era da informação é realmente uma era dos media. Temos guerra pelos
media; censura pelos media; demonologia pelos media; retaliação pelos
media; diversionismo pelos media – uma linha de montagem surreal de
clichés obedientes e pressupostos falsos.
O poder de criar uma nova "realidade" tem estado em construção há muito
tempo. Quarenta e cinco anos atrás, um livro intitulado The Greening of
America provocou sensação. Na capa constavam estas palavras: "Há uma
revolução que se aproxima. Ela não será como revoluções do passado. Ela
terá origem com o indivíduo".
Eu era correspondente nos Estados Unidos naquele tempo e recordo a
elevação ao status de guru do seu autor, um jovem académico de Yale,
Charles Reich. A sua mensagem era que dizer a verdade e a acção política
haviam fracasso e só a "cultura" e a introspecção podiam mudar o mundo.
Dentro de poucos anos, conduzido pelas forças do lucro, o culto do
"eu-ismo" quase havia esmagado nosso sentido de actuação conjunta, nosso
sentido de justiça social e de internacionalismo. Classe, género e raça
eram separados. O pessoal era a política e os media era a mensagem.
Depois da guerra fria, a fabricação de novas "ameaças" completou a
desorientação política daqueles que, 20 anos antes, teriam constituído uma
oposição veemente.
Em 2003, filmei em Washington uma entrevista com Charles Lewis, distinto
jornalista de investigação americano. Discutimos a invasão do Iraque uns
poucos meses antes. Perguntei-lhe: "E se os media mais livres do mundo
tivessem desafiado seriamente George Busch e Donald Rumsfeld e investigado
suas afirmações, ao invés de canalizar o que se revelou como propaganda
bruta?" Ele respondeu que se nós jornalistas tivéssemos feito o nosso
trabalho "haveria uma possibilidade muito boa de não termos ido à guerra
no Iraque".
Trata-se de uma declaração chocante e que é partilhada por outros
jornalistas famosos a quem fiz a mesma pergunta. Dan Rather, anteriormente
da CBS, deu-me a mesma resposta. David Rose do Observer e jornalistas e
produtores antigos da BBC, que pediram para permanecer anónimos, deram-me
a mesma resposta.
Por outras palavras, tivessem jornalistas cumprido a sua tarefa, tivessem
eles questionado e investigado a propaganda ao invés de ampliá-la,
centenas de milhares de homens, mulheres e crianças podiam hoje estar
vivos, e milhões podiam não terem fugido dos seus lares; a guerra sectária
entre sunitas e xiitas podiam não ter sido desencadeada e o infame Estado
Islâmico podia agora não existir.
Mesmo agora, apesar dos milhões que foram às ruas em protesto, a maior
parte do público nos países ocidentais mal faz ideia da escala absoluta do
crime cometido pelos nossos governos no Iraque. Mesmo com poucos
conscientes disso, nos 12 anos que precederam a invasão, os governos
estado-unidense e britânico activaram um holocausto ao negarem meios de
vida à população civil do Iraque.
Estas são as palavras do alto responsável britânico pelas sanções ao
Iraque na década de 1990 – um assédio medieval que provocou as mortes de
meio milhão de crianças com menos de cinco anos, informou a UNICEF. O nome
do responsável é Carne Ross. No Foreign Office em Londres ele era
conhecido como "Sr. Iraque". Hoje é alguém que conta a verdade sobre como
governos enganam e como jornalistas propagam o engano de bom grado. "Nós
alimentávamos jornalistas com factóides de inteligência expurgada",
contou-me, "ou nós os congelávamos do lado de fora".
O principal denunciante durante este período terrível e mudo foi Denis
Halliday. Então secretário-geral assistente das Nações Unidas e o alto
responsável da ONU no Iraque, Halliday preferiu renunciar a implementar
políticas que descreveu como genocidas. Ele estima que as sanções mataram
mais de um milhão de iraquianos.
O que aconteceu a seguir a Halliday foi instrutivo. Ele foi camuflado. Ou
foi vilipendiado. No programa Newsnight da BBC, o apresentador Jeremy
Paxman sussurrou-lhe: "Não será você um apologista de Saddam Hussein?" O
Guardian recentemente descreveu isto como um dos "momentos memoráveis" de
Paxman. Na semana passada, Paxman assinou um contrato de £1 milhão para um
livro.
Os serviçais do silenciamento (suppression) fizeram bem o seu trabalho.
Considerem os efeitos. Em 2013, um inquérito ComRes descobriu que a
maioria do público britânico acreditava que o número de baixas no Iraque
era de menos de 10 mil – uma minúscula fracção da verdade. Um rastro de
sangue que vai desde o Iraque até Londres foi lavado até quase ficar
limpo.
Diz-se que Rupert Murdoch é o padrinho da mafia dos media e ninguém
deveria por em dúvida o poder acrescido dos seus jornais – 127 ao todo,
com uma circulação somada de 40 milhões, e da sua rede Fox. Mas a
influência do império Murdoch não é maior do que o seu reflexo da
generalidade dos media.
A propaganda mais eficaz não se encontra no Sun ou na Fox News – mas
debaixo de um halo liberal. Quando o New York Times publicou afirmações de
que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa, suas provas falsas
foram acreditadas porque não era a Fox News; era o New York Times.
O mesmo é verdadeiro em relação ao Washington Post e ao Guardian, ambos
os quais desempenharam um papel crítico para condicionar os seus leitores
a aceitar uma nova e perigosa guerra fria. Todos estes três jornais
liberais adulteraram acontecimentos na Ucrânia como actos malignos da
Rússia – quando, de facto, o golpe fascista na Ucrânia foi obra dos
Estados Unidos, ajudados pela Alemanha e pela NATO.
A inversão da realidade é tão predominante que o cerco militar de
Washington e a intimidação da Rússia não é contestada. Isso não é sequer
notícia, mas silenciado por trás de uma campanha de difamação e medo da
espécie a que assistíamos durante a primeira guerra fria.
Mais uma vez, o império do mal está a vir apanhar-nos, liderado por um
outro Staline ou, perversamente, um novo Hitler. Nomeie o seu demónio e
dispare.
O silenciamento da verdade acerca da Ucrânia é um dos mais completos
blackouts noticiosos de que me posso lembrar. A maior acumulação militar
do ocidente no Cáucaso e na Europa oriental desde a segunda guerra mundial
é censurada. A ajuda secreta de Washington a Kiev e suas brigadas
neo-nazis responsáveis por crimes de guerra contra a população do Leste da
Ucrânia são censurados. Evidências que contradigam a propaganda de que a
Rússia foi responsável pelo derrube um avião da Malaysian são censuradas.
E, mais uma vez, os media supostamente liberais são os censores. Sem
mencionar factos, sem prova, um jornalista identificou um líder pró Rússia
na Ucrânia como o homem que derrubou o avião de carreira. Este homem,
escreveu ele, era conhecido como O Demónio. Ele era um homem amedrontador
que assustou o jornalista. Essa era a prova.
Grande parte dos media ocidentais tem-se esforçado por apresentar a
população de etnia russa da Ucrânia como intrusos (outsiders) no seu
próprio país, quase nunca como ucranianos à procura de uma federação
dentro da Ucrânia nem como cidadãos ucranianos a resistirem a um golpe
orquestrado no estrangeiro contra o seu governo eleito.
O que o presidente russo tem a dizer não tem consequência; ele é um vilão
de pantomina que pode ser maltratado com impunidade. Um general americano
que encabeça a NATO é um sucessor directo do Dr. Strangelove – um general
Breedlove – afirma rotineiramente invasões russos sem nem um fragmento de
prova visual. A sua personificação do general Jack D. Ripper, de Stanley
Kubrick, é uma caracterização perfeita.
Quarenta mil ruskies estavam a amontoar-se na fronteira, segundo
Breedlove. Isso foi suficiente para o New York Times, o Washington Post e
o Observer – este último tendo anteriormente distinguido-se com mentiras e
falsificações que apoiavam a invasão de Blair do Iraque, como revelou seu
antigo repórter David Rose.
Há quase a joie d'esprit de uma reunião de classe. Os tocadores de tambor
do Washington Post são exactamente os mesmos editorialistas que declararam
a existência de armas de destruição em massa de Saddam como "factos
indiscutíveis".
"Se quiser saber", escreveu Robert Parry, "como o mundo poderia afundar
numa terceira guerra mundial – tal como aconteceu com a primeira guerra
mundial um século atrás – tudo o que precisa fazer é olhar para a loucura
que envolveu virtualmente toda a estrutura política e dos media dos EUA
sobre a Ucrânia onde uma falsa narrativa de chapéus brancos contra chapéus
pretos desencadeou-se a princípio e demonstrou-se impermeável a factos ou
à razão".
Parry, o jornalista que revelou o [escândalo] Irão-Contra, é um dos poucos
que investiga o papel central dos media neste " game of chicken ", como o
chamou o ministro russo dos Estrangeiros. Mas será um jogo? Quando escrevo
isto, o Congresso dos EUA vota a Resolução 758 a qual, em poucas palavras,
diz: "Vamos nos preparar para a guerra com a Rússia".
No século XIX, o escritor Alexander Herzen descreveu o liberalismo laico
como "a religião final, embora a sua igreja não seja do outro mundo mas
sim deste". Hoje, este direito divino é muito mais violento e perigoso do
que qualquer coisa que o mundo muçulmano vomite, apesar de o seu maior
triunfo ser talvez a ilusão da informação livre e aberta.
Nos noticiários, países inteiros são desaparecidos. A Arábia Saudita, a
fonte de extremismo e de terror apoiado pelo ocidente, não é notícia,
excepto quando ela deita abaixo o preço do petróleo. O Iémen aguentou doze
anos de ataques de drones americanos. Quem sabe disso? Quem se importa?
Em 2009, a University of the West of England publicou os resultados de um
estudo de dez anos de cobertura da Venezuela feita pela BBC. Das 304
reportagens difundidas, apenas três mencionavam qualquer das políticas
positivas introduzidas pelo governo de Hugo Chavez. O programa de
alfabetização da história humana mal recebeu uma referência de passagem.
Na Europa e nos Estados Unidos, milhões de leitores e telespectadores não
sabem quase nada acerca das notáveis mudanças, vivificantes, implementadas
na América Latina, muitas delas inspiradas por Chavez. Tal como a BBC, a
reportagens do New York Times, do Washington Post, do Guardian e do resto
dos respeitáveis media ocidentais eram notoriamente de má fé. Chavez foi
ridicularizado mesmo no seu leito de morte. Como é que isto é explicado,
pergunto, nas escolas de jornalismo? Por que é que milhões de pessoas na
Grã-Bretanha são persuadidas de que é necessária uma punição colectiva
chamada "austeridade"?
Na sequência do crash económico de 2008 revelou-se um sistema apodrecido.
Durante uma fracção de segundo os bancos foram alinhados como vigaristas
com obrigações para com o público que haviam traído.
Mas dentro de poucos meses – com excepção de algumas pedras lançadas sobre
os excessivos "bónus" corporativos – a mensagem mudou. As fotos dos
banqueiros culpados desvaneceram-se dos tablóides e algo chamado
"austeridade" tornou-se o fardo de milhões de pessoas comuns. Houve alguma
vez um truque de prestidigitação tão descarado?
Hoje, muitas das condições básicas de vida civilizada na Grã-Bretanha
estão a ser desmanteladas a fim de reembolsar uma dívida fraudulenta – a
dívida de vigaristas. Dizem que os cortes da "austeridade" montam a £83
mil milhões. Essa é quase exactamente o montante do imposto evitado pelos
mesmos bancos e por corporações como a Amazon e a News UK de Murdoch. Além
disso, aos bancos vigaristas é concedido um subsídio anual de £100 mil
milhões em seguro gratuito e garantias – um número que financiaria todo o
Serviço Nacional de Saúde.
A crise económica é pura propaganda. Políticas extremistas dominam agora a
Grã-Bretanha, os Estados Unidos, grande parte da Europa, Canadá e
Austrália. Quem defende os interesses da maioria? Quem está a contar a sua
história? Quem está a manter o registo claro? Não é isso o que os
jornalistas deveriam fazer?
Em 1977, Carl Bernsein, que ganhou fama com o Watergate, revelou que mais
de 400 jornalistas e executivos dos noticiários trabalhavam para a CIA.
Neles incluíam-se jornalistas do New York Times, da Time e de redes de TV.
Em 1991, Richard Norton Taylor, do Guardian, revelou algo semelhante neste
país.
Nada disto é necessário nos dias de hoje. Duvido que alguém pague o
Washington Post e muitos outros media para acusar Edwar Snowden de ajudar
o terrorismo. Duvido que alguém pague aqueles que rotineiramente enlameiam
Julian Assange – embora outros prémios possam ser abundantes.
Para mim está claro que a principal razão porque Assange atraiu tanto
veneno, despeito e inveja é que a WikiLeaks destruiu a fachada de uma
elite política corrupta mantida a flutuar por jornalistas. Ao anunciar uma
era extraordinária de revelações, Assange fez inimigos por iluminar e
envergonhar os porteiros dos media, inclusive no jornal que publicou e
apropriou-se do seu grande furo de reportagem. Ele tornou-se não só um
alvo como uma galinha dos ovos de ouro.
Contratos de livros lucrativos e filmes de Hollywood foram feitos e
carreiras nos media lançadas ou avançadas nas costas do WikiLeaks e do seu
fundador. Pessoas ganharam muito dinheiro, enquanto a WikiLeaks tem lutado
para sobreviver.
Nada disto foi mencionado dia 1 de Dezembro em Estocolmo quando o editor
do Guardian, Alan Rusbridger, partilhou com Edward Snowden o Right
Livelihood Award, conhecido como o Prémio Nobel da Paz alternativo. O
chocante neste evento foi que Assange e a WikiLeaks foram vaporizados.
Eles não existiam. Eles eram não pessoas.
Ninguém levantou a voz pelo homem que foi o pioneiro da denúncia digital e
forneceu ao Guardian um dos maiores furos da história. Além disso, foi
Assange e sua equipe da WikiLeaks quem efectivamente – e brilhantemente –
resgatou Edward Snowden de Hong Kong e enviou-o para a segurança. Nem uma
palavra.
O que tornou esta censura por omissão tão irónica, pungente e desgraçada
foi o facto de que cerimónia se realizou no parlamento sueco – cujo
silêncio covarde sobre o caso Assange tem sido conivente com um grotesco
aborto de justiça em Estocolmo.
"Quando a verdade é substituída pelo silêncio", disse o dissidente
soviético Yevtushenko, "o silêncio é uma mentira".
É esta espécie de silêncio que nós jornalistas precisamos romper.
Precisamos olhar ao espelho. Precisamos prestar contas quanto aos media
que não as prestam e que servem poder e [alimentam] uma psicose que ameaça
uma guerra mundial.
No século XVIII, Edmund Burke descreveu o papel da imprensa como um Quarto
Estado controlando os poderosos. Será que isto era verdade? Ela certamente
já não faz isso. O que precisamos é de um Quinto Estado: um jornalismo que
monitore, desconstrua, faça contra-propaganda e ensine os jovens a serem
agentes do povo, não do poder. Precisamos do que os russos chamavam
perestroika – uma insurreição do conhecimento subjugado. Eu chamaria a
isto jornalismo real.
Fazem agora 100 anos desde o início da Primeira Guerra Mundial. Repórteres
então foram premiados e condecorados pelo seu silêncio e conivência. Na
altura da carnificina, o primeiro-ministro britânico David Lloyd George
confidenciou a C.P. Scott, editor do Manchester Guardian: "Se o povo
realmente soubesse [a verdade] a guerra seria travada amanhã, mas
naturalmente eles não sabem e não podem saber".
É tempo de saberem.
[*] O texto acima é a transcrição do discurso de John Pilger no Logan
Symposium, "Building an Alliance Against Secrecy, Surveillance &
Censorship", organizado pelo Centre for Investigative Journalism, Londres,
5-7/Dezembro/2014.
O original encontra-se em
www.globalresearch.ca/war-by-media-and-the-triumph-of-propaganda/5418152
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://www.resistir.info/pilger/pilger_05dez14.html
09/Dez/14
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