sábado, 6 de dezembro de 2014

Origens organizacionais da educação capitalista no Brasil

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Candido G. Vieitez
A educação moderna no Brasil teve início no começo do século passado com a política educacional republicana (1989-1930). Essa política foi mais efetiva a partir da década de 1920. No entanto, algumas ações foram desencadeadas já nos anos iniciais do século e, dentre essas, se destacou a criação do Grupo Escolar (GE) concebido para abrigar basicamente o ensino primário, conforme a denominação da época.
Na literatura educacional o GE é comumente visto como um aperfeiçoamento educacional. No entanto, antes do que ser simplesmente um aperfeiçoamento, o GE é uma transubstanciação educacional, uma forma de organização que se constituiu como pedra angular do novo sistema educacional. E, cujos princípios operantes, não obstante as mudanças de formas e nomenclaturas permanecem atuantes até hoje. Por que devemos considerar o prosaico GE tão crucialmente importante?
A libertação dos escravos, juridicamente consagrada em 1888, revolucionou a sociedade brasileira. A classe dominante deixou para trás o trabalhador servil e abraçou a exploração do trabalho livre assalariado (TA), ou, dizendo o mesmo por seu anverso, abraçou o capitalismo. A República, em parte consequência de 1888, empreendeu a tarefa de adequar as instituições a essa grande mudança, o que incluía a educação. Destarte podemos dizer que a educação republicana tinha por objetivo precípuo instaurar um sistema educacional escolar adequado ao novo mundo perspectivado pela adoção do trabalho livre e, especialmente do trabalho livre assalariado. O ensino primário foi – e é- a base da nova escola e o Grupo Escolar, embora aparecesse como fenômeno característico desse nível de ensino, foi de fato o protótipo organizacional do sistema em todos os níveis, o aparato escolar que em si mesmo reunia as determinantes da educação republicana.
O conteúdo de uma concepção educativa está dado por suas propriedades manifestas – o que se ensina mais ou menos explicitamente-, e por suas propriedades latentes – o que não está explicitado e deriva, basicamente, de sua forma de organização e funções sociais.
A cidadania, restritíssima sob o regime escravista, foi universalizada sob a República. Isso só foi possível com a liquidação do trabalho escravo e a adoção do trabalho livre, notadamente o assalariado. No que consiste a cidadania? Basicamente no fato de que todos os homens são livres e iguais perante a lei - os direitos civis -, o que permitiu, por exemplo, que
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as crianças frequentassem o GE independentemente de etnia, religião ou propriedade, o que era impensável sob o escravismo colonial ou imperial.
A nova ordem social republicana suprimiu a dimensão mais grotesca da sociedade de classes sociais, mas não suprimiu as classes que são historicamente fontes de conflitos. Um dos problemas é que o novo típico trabalhador, o assalariado, é livre nas esferas do consumo, da distribuição e da circulação, mas não na esfera da produção. Desta liberdade imperfeita decorrem impulsões sociais recorrentemente entrópicas, embora muito variáveis quanto a sua importância social.
Em princípio, as impulsões sociais entrópicas podem ameaçar a higidez da sociedade ou mantê-la em situação de instabilidade. Porém, na prática, isto raramente ocorre, em parte devido à ação da pedagogia escolar da cidadania. O modo de operar dessa pedagogia consiste basicamente em glorificar as virtudes da cidadania omitindo os seus defeitos. O resultado educacional é eficaz, pois, dessa idealização decorre uma mentalidade societária geral que tende a perceber a sociedade como basicamente livre – constituída por pessoas livres. Do mesmo modo, essa visão do mundo propende a ver os defeitos da liberdade vigente - defeitos que não são alheios à sua percepção -, não como regra, se não como exceções que confirmam a regra.
Com o desenvolvimento do capitalismo as crianças que acudiam ao GE eram cada vez mais oriundas de famílias assalariadas, e cada vez mais essas crianças estavam destinadas a encarnar em futuro próximo a massa de trabalhadores assalariados. Portanto, eram os atores sociais que mais razões tinham, em princípio, para questionar a natureza da liberdade para a qual estavam fadados. Mas isto não ocorria, - e segue não ocorrendo hoje mutatis mutandis no ensino fundamental- pela simples razão de que o antídoto para essa possível distonia encontrava-se em parte no próprio GE.
Em condições normais o ensino primário lidava com crianças ainda em fase de socialização básica. E esta socialização, ancorada na categoria de cidadania, deixava um rastro indelével na estrutura psicofísica dos estudantes, os quais, desde tenra idade se habituavam a pensar o futuro em termos da conquista de um bom emprego. A conquista de um bom emprego como perspectiva da classe trabalhadora pode nos parecer uma trivialidade. Mas a trivialidade se dissipa tão pronto ponderamos que essa projeção deixava para trás nada menos que a Colônia e o Antigo Regime. Neste sentido, o GE encenava perfeitamente o tema de um mundo novo. E se olharmos a pedagogia do GE a partir de um foco político,
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constatamos que suas práticas constituíam também um importante aspecto dos mecanismos de legitimação social do novo status quo e, por consequência, do consenso social generalizado em torno ao status quo, o qual é uma premissa da higidez social.
Deixamos agora o terreno da concepção do mundo manifesta para examinarmos alguns aspectos da concepção do mundo embutida na forma de organização corporificada no GE.
A importância educacional dos grupos escolares levou Souza (1998) ao extremo de denominá-los templos de civilização. O elemento mais visível desse templo de civilização diz respeito à sua natureza física. Superando a improvisação que caracterizou o passado, o GE é uma edificação até imponente, construída com a finalidade precípua de servir à atividade de ensino. A segunda característica mais visível do GE é que ele reúne num espaço unificado o que em tempos pretéritos se encontrava disperso: várias salas de aula, muitos professores e funcionários, uma massa de alunos. Esta característica está articulada a um terceiro elemento do GE que, pouco visível, constitui embora um divisor de águas entre a educação do passado e a nova educação. Na sociedade escravista a educação escolar era apanágio de escassas “elites”. Em antítese com esse conceito educacional, a escola republicana inaugura o feito histórico de se colocar como agente de educação destinada não apenas às “elites”, mas também aos trabalhadores. Esta característica explica o formato do GE, pois, para dar conta da escolarização de uma massa de pessoas, eram necessárias grandes edificações, além do que um novo princípio de organização do trabalho pedagógico que examinamos a seguir.
Uma característica exponencial do GE é que nele coabitavam três subcoletivos: o dos professores, o dos funcionários e o dos alunos. Estes três subcoletivos, cada um dos quais com suas funções específicas, eram levados pela ação do Estado a cooperarem entre si tendo em vista a realização do ensino/aprendizagem. Deste modo, a atividade segmentar de cada uma das categorias metamorfoseava-se num trabalhador pedagógico coletivo. Neste ponto nos deparamos com um dos mais recônditos significados do GE, do sistema escolar moderno e, de fato, de toda a organização capitalista do trabalho. Ou seja, o fato de que o trabalhador coletivo, cuja cooperação é agora um princípio de organização geral do trabalho é o modo específico pelo qual o Estado (ou o capital), consegue acessar o trabalho assalariado, consegue torná-lo operativo ou produtivo para seus próprios desígnios. Mas, com a seguinte observação. Essa cooperação no trabalho não é livre porque o seu que fazer encontra-se alienado para o Estado ou o capital, o que tem como consequência, em se tratando de trabalho
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– e de estudo- que as relações sociais apresentam-se rigorosamente como relações hierárquicas em cuja tessitura os trabalhadores ou estudantes situam-se na condição de dependentes/subordinados.
Na escola moderna pública (ou privada), os trabalhadores são homens livres assalariados. E os alunos, que não são trabalhadores embora trabalhem - estudando -, são majoritariamente os assalariados de amanhã. A consequência pedagógica desta situação escolar é que a cidadania, tal como existe na ordem social, não é para os alunos apenas uma referência verbalizada ou ensinada. Muito ao contrário, é também e ao mesmo tempo uma experiência imediata que se realiza na vivência das relações escolares hierárquicas hipostasiadas como meritocráticas.
Em suma, tem razão Souza, em sua eficaz pesquisa, ao denominar o GE de templo de civilização. Muito para além de sua singela situação social, o GE foi de fato aquando da 1ª República, o arauto escolar de uma nova civilização no Brasil, a moderna civilização capitalista.
Referências
SOUZA, R.F. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: UNESP, 1998.

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