sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Reencontro com o Brasil




Miguel Urbano Rodrigues


A alegria do reencontro com um povo que amo profundamente foi neutralizada pela
consciência de que a sociedade brasileira adquiriu características pantanosas. A
violência alastra como flagelo nas grandes cidades. Persistem desigualdades
ofensivas da condição humana. Uma classe dominante repulsiva enfeixa nas mãos o
poder político, compartilhando o económico com o imperialismo.
Mas, imaginando um futuro distante, o povo do Brasil aparece-me como uma
antecipação da humanidade mestiça que nascerá lentamente da actual. Os chocantes
traços negativos do presente acabarão quando as causas sociais que os geram
forem eliminadas numa distante sociedade socialista. A cordialidade, a ternura,
a alegria brasileiras - essas vão permanecer.




Voltei ao Brasil em Novembro. Tinha decidido que seria a minha última visita.

Essa certeza contribuiu para que o reencontro fosse muito doloroso.

Estive em São Paulo e no Rio em 2012. Daí a surpresa.

No breve espaço de dois anos, a atmosfera, o comportamento de parcela importante
de estamentos sociais da burguesia e os media que formam a opinião da maioria da
população mudaram muito. Nesta despedida senti-me num país quase desconhecido.
A alegria do reencontro com um povo que amo profundamente foi neutralizada pela
consciência de que a sociedade brasileira adquiriu características pantanosas.

A miséria absoluta diminuiu durante os governos de Lula e Dilma. Mas,
paradoxalmente, o abismo que separa a minoria privilegiada das grandes maiorias
aumentou. Os ricos enriqueceram prodigiosamente. Segundo o diário O Estado de
S.Paulo o Brasil tem hoje 61 multimilionários cujas fortunas somam mais de 161
mil milhões de dólares.

A tensão social é transparente. Diferente da que conheci nos anos da ditadura
militar. É uma tensão que não anuncia no imediato uma ascensão explosiva da luta
de classes.

As condições objetivas são favoráveis a grandes lutas sociais. As manifestações
de protesto contra o governo no Rio, em São Paulo e noutros estados, algumas
convocadas pela direita, tornaram-se quase diárias. Oposicionistas pediram
inclusive o impedimento de Dilma pelo Congresso e a demissão imediata do
Governo. Em São Paulo, exigiram nas redes sociais «a demissão de toda a classe
politica» e «o fim do financiamento dos partidos políticos». Por si só
transparece dessas reivindicações um espontaneísmo inofensivo.

Na atual conjuntura, a justa indignação dos trabalhadores expressa apenas a
recusa de um sistema apodrecido. A ausência de uma organização revolucionaria
com forte implantação entre as massas favorece a classe dominante e assinala os
limites da contestação popular.
A tensão social crescente não desembocará numa situação pré-revolucionária pela
inexistência de condições subjetivas.

FRAGILIDADE DE DILMA

Dilma foi eleita na segunda volta com 52 % dos votos emitidos apos uma campanha
duríssima, caracterizada por um baixo nível ideológico.

O atual Governo tem 39 ministros, número inimaginável em Executivos europeus, e
tudo indica que o próximo terá uma dimensão semelhante. É intensa a especulação
sobre os nomes, mas Dilma já confirmou que o ministro da Fazenda será Joaquim
Levy, um banqueiro (foi vice-presidente em Washington do Banco Interamericano de
Desenvolvimento) que integrou o governo de Fernando Henrique Cardoso e defende
medidas neoliberais exigidas pelo grande capital. As suas declarações sobre a
necessidade de uma politica de austeridade são esclarecedoras das suas opções
ideológicas.

Katia Abreu, a futura ministra da Agricultura, é uma adversaria da Reforma
Agraria e a indicação do seu nome foi festejada pela «bancada rural» que
representa na Camara dos deputados os interesses do latifúndio e do
agro-negócio.

Durante a campanha, intelectuais progressistas definiram Dilma como «o mal
menor», porque a eleição de Aecio, apoiado por Washington e pela grande
burguesia brasileira, implicaria uma submissão total ao imperialismo
norte-americano e ao grande capital transnacional. O adversário de Dilma, um
político com perfil de playboy, ao abordar o tema da política exterior, foi
muito claro: defendeu uma maior aproximação com os EUA e uma revisão das
relações com Cuba e os governos progressistas da Venezuela, da Bolívia e do
Equador.

UM MAR DE CORRUPÇÃO

A corrupção é um mal endémico na Administração brasileira. Mas nos governos de
Lula e Dilma aumentou desmesuradamente. O escândalo do Mensalão, que levou à
prisão, entre muitos outros, José Dirceu, o ex. chefe da Casa Civil de Lula,
cargo que no Brasil corresponde a primeiro-ministro, foi agora largamente
ultrapassado pelo lamaçal que envolve a Petrobras, a maior empresa do país. O
ex. diretor de Serviços, Renato Duque, dezenas de executivos do gigante
petrolífero (atualmente um dos grandes produtores do mundo) e dirigentes de
algumas das maiores construtoras do Brasil foram já presos por fraudes e crimes
de corrupção cometidos no exercício das suas funções. Muitos senadores e
deputados estão também comprometidos nessas sórdidas negociatas.

Por ora não é possível avaliar o montante da roubalheira. Mas admite-se que o
total das luvas pagas a altos funcionários da Petrobras por contratos ilegais e
fraudes que favoreceram empreiteiras exceda o equivalente a muitos milhares de
milhões de euros.

O povo brasileiro reagiu com satisfação às prisões já realizadas pela Policia
Federal no âmbito da Operação Lava Jato, mais conhecida como Juízo Final.
Dilma, informada dessas prisões em Brisbane, quando na Austrália participava na
Reunião do G- 20, manifestou regozijo pela ação da Justiça. «Elas demonstram –
declarou - que o Brasil está acabando com a impunidade (…) Acho que isto pode de
fato mudar o País para sempre».

A opinião não impressionou a oposição. Nos órgãos de comunicação social mais
influentes chovem críticas à presidente a quem negam credibilidade.
É aliás convicção generalizada que os principais responsáveis pelos crimes que
fizeram cair brutalmente as acções da Petrobras não serão punidos; as
condenações atingirão sobretudo funcionários subalternos.

A decisão de Marta Suplicy de se demitir de ministra da Cultura, anunciada no
auge do escândalo, foi interpretada como prólogo do aprofundamento da crise do
PT com o qual ela, uma oportunista ambiciosa, estaria prestes a romper.

DEMOCRACIA DE FACHADA

Tal como em Portugal, os políticos do sistema abusam no Brasil da palavra
democracia para caracterizar o regime.
Mentem. Na realidade o país está submetido a uma ditadura da burguesia de
fachada democrática.
O funcionamento do sistema tem facetas caricaturais.

As eleições – presidenciais, legislativas e as realizadas para os governos
estaduais - foram disputadas por 28 partidos que elegeram 553 deputados federais
As coligações, regulamentadas por uma legislação absurda, permitiram em alguns
casos a eleição de candidatos de partidos opostos ao do cidadão votante.
Poucos confiam na promessa de Dilma de «reorganizar a sociedade brasileira,
conferindo o papel de direção àqueles eles vivem do seu trabalho e da cultura».

No primeiro mandato ela esqueceu sistematicamente os compromissos assumidos.

Na prática o governo quase neoliberal da PT renunciou há muito ao programa que
levou Lula à Presidência. Na prática acredita que administra melhor o
capitalismo do que a direita tradicional. O populismo de Dilma, como o de Lula,
engana cada vez menos os trabalhadores, mas parcela ponderável do povo
brasileiro, modelada por uma media alienante, ainda não assimilou essa
evidência.

CRISE MULTIPLA

O país caiu em recessão técnica.

Em Outubro a balança comercial apresentou um défice de 1200 milhões de dólares.
A quebra do PIB reflete a diminuição dos preços das matérias-primas, base das
exportações.

A taxa oficial de desemprego carece de credibilidade. Os despedimentos no setor
privado não esbarram com obstáculos legais. Um exemplo: o HSBC, o gigante
britânico – o maior banco do mundo - anunciou para breve o despedimento de
aproximadamente mil trabalhadores das suas agências no país.
Na indústria automóvel, uma das mais importantes do mundo, a produção de
veículos caiu 16% em relação ao ano passado.

A incapacidade das prefeituras (camaras municipais em Portugal) para responder
satisfatoriamente às exigências de moradia digna para as pessoas em busca de
emprego que afluem às grandes megalópolis brasileiras contribui para a vaga de
ocupações.

No centro de São Paulo a atmosfera é hoje muito diferente da que conheci ali nos
meus anos de exilio.

Prédios degradados construídos entre as duas guerras mundiais foram ocupados por
famílias ligadas ao Movimento dos Sem Teto.

Os proprietários e influentes políticos exigem que os ocupantes sejam
desalojados, mas o prefeito não lhes tem atendido os apelos, temendo aumento da
tensão social.

Mais grave é a concentração de drogados em alguns bairros residenciais. No
Jaguaré, a uma centena de metros de um grande supermercado, dezenas de toxico-
dependentes permanecem noite e dia nos passeios, remexendo em montes de lixo. Vi
alguns injetando-se.
O lugar é conhecido como a Cracolandia, nome derivado do crack que consomem.

As favelas também não desapareceram de São Paulo (três milhões vivem em favelas
e cortiços). Mas é no Rio de Janeiro que a sua proliferação impressiona mais o
forasteiro. Semeadas pela cidade, implantadas inclusive em morros que envolvem
bairros de luxo da orla marítima, elas são o rosto de uma tragédia social e
configuram um desafio para o qual os governantes não encontraram ate hoje uma
solução eficaz.

Mais de 80% dos favelados são trabalhadores, cidadãos tranquilos, abertos ao
convívio, refletindo a cordialidade brasileira; mas é a minoria dos marginais,
dos criminosos e drogados que projeta a imagem da favela.

A ocupação militar de algumas nos meses que precederam a Copa do Mundo de
Futebol não resolveu, como se temia, o problema social cuja imagem degradante é
identificável no polo de miséria que são as favelas cariocas, onde o crime
organizado se encontra solidamente instalado, com a cumplicidade de polícias
corruptos.

Que fazer? Aquela terrível realidade dói. Mas não me atrevo sequer a abordar o
tema do inventário dos debates gerados pela chaga social das favelas.
Nas grandes cidades brasileiras - como nas capitais da Colômbia, do Peru, do
México, de San Salvador, entre outras - o problema da violência angustia a
população. Não tem diminuído.

As estatísticas são alarmantes. Em 2013 foram assassinadas no país 53 000
pessoas. A cada 4 minutos uma mulher é estuprada.

Claude Levy Strauss escreveu nos Tristes Trópicos que o Brasil é o país da
decadência do inacabado. Utilizando essa expressão transmitiu a impressão
causada pelo facto de grandes edifícios residenciais e obras monumentais
apresentarem falhas de construção, envelhecendo antes de concluídos.
Nestas semanas, ao revisitar em correria o Brasil, a contradição ostensiva
entre a modernidade e o arcaísmo fez-me recordar o comentário de Levy Strauss
Em múltiplos ramos do sector avançado, o Brasil situa-se na vanguarda mundial
do progresso técnico e científico. Mas essa transformação do país onde vivi
quase duas décadas antes da Revolução Portuguesa coexiste com o outro Brasil,
mesmo em áreas urbanas, nas favelas e cortiços, nomeadamente - onde tive a
sensação do tempo parado.

Na imensidão do gigante sul-americano, à medida que nos afastamos dos grandes
centros do litoral somos projetados no espaço para cenários de estagnação, para
um passado remoto.

Em sertões do Nordeste e na espessura das matas amazónicas, a vida mudou pouco
em enormes regiões; ali os homens e as coisas empurram a memória e a imaginação
para arcaísmos africanos. Um caboclo do alto rio Negro ou do Madeira está
culturalmente mais próximo do morador de um Kimbo do Kuando Kubango que de um
operário paulista ou carioca.

CONTRADIÇÕES

Conheço poucos países onde as contradições marquem tao profundamente o fluir da
vida.

Uma das que mais surpreende os estrangeiros é a que distancia nas chamadas
elites uma intelectualidade brilhante e criativa de uma colmeia de aventureiros
ambiciosos e medíocres (muitos corruptos) que exerce uma influência decisiva no
mundo apodrecido da política.

O Brasil onde surgiram intelectuais como Niemeyer e Florestan Fernandes gerou
figuras públicas sórdidas como Jânio Quadros, Adhemar de Barros e Maluf, produz
em serie deputados e senadores que tipificam admiravelmente aquilo a que Marx
chamou «o cretinismo parlamentar».

O contraste entre esses dois Brasis, coexistentes e antagónicos, é identificável
– mais um exemplo - numa simples visita às grandes livrarias de São Paulo e do
Rio.

Nas estantes encontra-se o que de melhor o homem criou desde a antiguidade nos
domínios do pensamento, da arte, da ciência. As principais editoras lançam
também no mercado, traduzidas, obras inovadoras, recentes, sejam ensaios ou
novelas publicadas na Europa, nos EUA, em diferentes países definidos como
emergentes.

Considero indispensável uma referência especial à Editorial paulista Boitempo,
de Ivana Jinkings, que lançou no Brasil, além de obras dos principais clássicos
do Marxismo, autores contemporâneos tao importantes como o húngaro Istvan
Meszaros e o inglês David Harvey.

Mas, num país onde a contra cultura exportada pelos EUA pesa decisivamente na
mentalidade e nos gostos da pequena burguesia, os livros mais vendidos são
outros: o lixo impresso sobre temas do género como enriquecer, como mudar de
profissão ou personalidade, como conquistar amigos, sobre ocultismo, questões
astrais, religiões exóticas e outras imbecilidades.

ESPERANÇA

Quatro dias em Minas Gerais, revisitando Ouro Preto, Mariana e Congonhas do
Campo, proporcionaram-me uma estranha viagem pela Historia e pela minha vida,
recordando alguém que viveu no meu corpo.

Foi há mais de 40 anos. Andei então pelas serranias e vales onde o bandeirante
Fernão Dias Pais descobriu o ouro que, passando por Portugal, contribuiu para
financiar a revolução industrial inglesa.

Acompanhei nessa visita dois historiadores amigos: o francês Albert Soboul e o
português Barradas de Carvalho.
Muitos dos casarões setecentistas de Ouro Preto ameaçavam na época
desmoronar-se. Foram recuperados e a cidade é hoje um polo turístico onde aflui
gente de todo o mundo.

O Aleijadinho, o arquiteto e escultor que conferiu dimensão internacional ao
barroco mineiro, não teve em vida reconhecido o seu génio. Morreu pobre e quase
ignorado pelos seus contemporâneos.

Meditando sobre o tempo morto nas suas igrejas, ou acariciando a pedra escura
dos Profetas de Congonhas, percorrendo as salas do Museu da Inconfidência em
Ouro Preto atravessei neste inverno da vida a ponte invisível que liga o Brasil
que caminhava para a Independência para o Brasil gigante de hoje, um pais e um
povo então inimagináveis.

Para onde vai esta terra irrepetível, que ainda não se construiu como nação?

Não ouso responder à pergunta.

No Brasil persistem desigualdades ofensivas da condição humana. Uma classe
dominante repulsiva enfeixa nas mãos o poder político, compartilhando o
económico com o imperialismo.

Sendo sombrio o presente e nevoento o futuro imediato, admito que o Brasil está
vocacionado para desempenhar um papel significante no amanhã da humanidade.

Amo profundamente – repito - a gente brasileira. A violência, que hoje alastra
como flagelo nas grandes cidades, vai acabar quando as causas sociais que a
geram forem eliminadas numa distante sociedade socialista. A cordialidade, a
ternura, a alegria brasileiras - essas vão permanecer.
Não identifico no caótico sincretismo brasileiro um prólogo de futuras
desgraças. Pelo contrário.

Imaginando um futuro distante, o povo do Brasil aparece-me como uma antecipação
da humanidade mestiça que nascerá lentamente da atual.

São Paulo, 29 de Novembro de 2014.

In:
O Diário.info
http://www.odiario.info/?p=3481
4/12/2014

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