quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A vitória do campesinato sobre o imperialismo

 



    Prabhat Patnaik [*]

Manifestação do movimento Kisan.

Batalhas específicas têm frequentemente um significado que vai para além
do contexto imediato, do qual mesmo os combatentes podem não estar
plenamente conscientes na altura. Uma dessas batalhas foi a Batalha de
Plassey <https://en.wikipedia.org/wiki/Battle_of_Plassey> , que nem
sequer foi uma batalha, uma vez que o general de um lado já tinha sido
subornado pelo outro para não liderar as suas tropas contra ela. No
entanto, o que aconteceu no bosque de Plassey nesse dia anunciou uma
época totalmente nova na história mundial.

A batalha entre o movimento kisan [1] <#nt> e o governo Modi insere-se
no mesmo género. Ao nível mais óbvio, tem sido vista como um retrocesso
pelo governo Modi face à notável determinação demonstrada pelos
camponeses agitadores. A outro nível também tem sido visto como um revés
para o neoliberalismo, uma vez que a ascendência corporativa sobre o
sector agrícola, ao tornar a agricultura camponesa subserviente às
corporações, é uma parte crucial da agenda neoliberal que a legislação
agrícola procuva promover.

Estas duas percepções são absolutamente correctas. Mas para além delas
existe um terceiro nível, no qual a vitória do kisan é de grande
significado e que não tem recebido muita atenção. Isto está relacionado
com o facto de a vitória kisan ser um revés para o imperialismo num
sentido muito fundamental. Em consequência, dificilmente deve
surpreender o facto de os media ocidentais terem sido tão críticos em
relação ao governo Modi pelo seu retrocesso.

Assim como o imperialismo quer açambarcar /(corner)/ todas as fontes de
alimentos e matérias-primas em todo o mundo, tal como quer controlar
todas as fontes de combustíveis fósseis no mundo, quer também controlar
todo o padrão de utilização da terra em todo o mundo, especialmente no
terceiro mundo, a maior parte do qual se encontra dentro da zona
tropical e subtropical e, portanto, é capaz de cultivar lavouras que a
região temperada, dentro da qual o capitalismo metropolitano está
localizado, não pode cultivar.

O colonialismo deu às metrópoles um instrumento ideal para controlar a
utilização da terra em todo o mundo em seu próprio benefício. Este
instrumento foi utilizado num país como a Índia de uma forma descarada.
Uma vez que as exigências de receitas do governo colonial tinham de ser
cumpridas pelos camponeses em certas datas fixas (sem o que perderiam
quaisquer direitos que tivessem sobre a terra), eles tomavam
adiantamentos dos comerciantes para cumprirem estas exigências e, por
sua vez, cultivavam as lavouras que os comerciantes queriam, para lhes
serem vendidas a preços pré-contratados. Estes comerciantes, por sua
vez, ditavam a produção das lavouras para as quais havia muita procura
na metrópole (como revelado pelos sinais do mercado). Ou,
alternativamente, como no caso do ópio, os agentes da Companhia das
Índias Orientais obrigavam directamente os camponeses a aceitarem os
adiantamentos ligados ao cultivo dessa lavoura.

O uso da terra era assim controlado pela metrópole, com culturas como o
índigo, o ópio e o algodão a serem cultivadas em terrenos onde nunca
haviam sido cultivadas antes e substituindo a produção de grãos
alimentares. Elas eram obtidas gratuitamente pela metrópole uma vez que
os camponeses eram pagos por eles com as mesmas receitas que eles
próprios haviam entregue ao governante colonial. E entre os países
colonizadores, tais bens, extraídos das suas respectivas colónias, eram
comercializados depois de satisfazerem o que era exigido por cada um,
inclusive para a resolução de défices através do comércio triangular
(como, por exemplo, o ópio cultivado à força na Índia, sendo exportado
para a China que era forçada a consumi-lo, para resolver o défice
comercial da Grã-Bretanha com aquele país). O campesinato era
brutalmente explorado: o drama dos cultivadores de índigo foi tão
pungente e vividamente capturada no século XIX na peça Neel Darpan de
Dinabandhu Mitra que Ishwar Chandra Vidyasagar, o grande reformador
social, que estava na plateia quando a peça estava a ser encenada,
atirou as suas sandálias com raiva para o actor que desempenhava o papel
de plantador-comerciante!

Este mecanismo, de sincronizar rigidamente as receitas dos camponeses,
fazendo com que os comerciantes lhes dessem adiantamentos e assim
influenciassem o padrão de cultivo, e depois comprassem as colheitas com
as mesmas receitas que os camponeses haviam pago, já não está disponível
para a metrópole; e a protecção oferecida à agricultura camponesa pelo
regime dirigista pós-independência, que assumiu a forma de providenciar
apoio aos preços dos cereais alimentares, fez com que os camponeses
ignorassem os ditames da metrópole sobre o mix da produção.

Actualmente, a metrópole não precisa de cereais alimentares, mas não
consegue que os camponeses se afastem da produção dos mesmos para a
produção das culturas de que necessita, porque o governo adquire cereais
alimentares a preços garantidos e pré-anunciados. A redução da procura
interna de cereais alimentares através da compressão dos rendimentos dos
trabalhadores através da austeridade fiscal, que é o que a agenda
neoliberal implica, também não ajuda o imperialismo nesta situação,
porque apenas conduz a uma acumulação de stocks de cereais alimentares
com o governo sem reduzir a produção de cereais e sem alterar o padrão
de utilização da terra. O que o imperialismo precisa, portanto, é de uma
abolição total deste sistema de apoio aos preços e, além disso, de um
mecanismo alternativo para influenciar as decisões de cultivo do
campesinato.

As três leis agrícolas aprovadas pelo governo Modi, as quais promovem os
interesses imperialistas por detrás da sua retórica
"hiper-nacionalista", destinavam-se precisamente a alcançar este
objectivo. Elas deviam anunciar a empresarialização /(corporatisation)/
da agricultura que teria /ipso facto/ estabelecido o controlo
metropolitano sobre o uso do solo: as corporações teriam conseguido que
os camponeses cultivassem as culturas para as quais receberam os sinais
de mercado certos, o que significa fazer com que o uso do solo no
terceiro mundo se ajustasse às exigências metropolitanas. O imperialismo
utilizou todos os meios para atingir este fim, incluindo fazer com que
os seus seguidores no meio académico e nos media subservientes se
induzissem a pensar que seria bom para os camponeses não serem apoiados
pelo governo através da garantia de preços. Mas fracassou.

A resistência tenaz dos camponeses contra as três leis acabou por levar
o governo Modi a capitular. Mas uma mera retirada das leis não assegura
automaticamente a restauração do status quo ante. E agora importa manter
o regime de preços mínimos de apoio, que os camponeses querem agora que
seja legalmente aprovado decorre precisamente desta razão. Mesmo que,
após a revogação das três leis, a comercialização de cereais alimentares
puder ocorrer apenas em locais especificados como anteriormente,
nomeadamente nos /mandis/[2] <#nt> onde os agentes governamentais podem
supervisionar todo o processo, não há nada que garanta que os camponeses
possam obter um preço mínimo para cobrir os seus custos e dar-lhes um
certo lucro, a menos que o regime do preço mínimo de apoio /(minimum
support price, MSP)/ continue.

Por outras palavras, embora permitir a comercialização de cereais
alimentares em locais diferentes dos mandis (de modo a que a supervisão
governamental já não possa ser exercida), implique que o MSP já não pode
ser aplicado mesmo que um MSP continue a ser formalmente anunciado, o
contrário não é verdadeiro: tornar obrigatória a supervisão
governamental (que a revogação das leis asseguraria) não traz ipso facto
de volta um regime de MSP. Um regime de MSP tem de ser especificamente
mantido em vigor. Os camponeses exigem uma aprovação legal para isto, de
modo a que o governo não possa acabar com tal regime sempre que quiser.

Isto torna-se particularmente urgente por causa da chicana generalizada
do governo do BJP. Mesmo quando revoga formalmente as três leis
agrícolas, ele pode continuar a sua tentativa de alcançar os mesmos fins
por outros meios.

Mas na medida que tais actividades nefastas possam ser mantidas
afastadas, os camponeses ganharam uma batalha crucial: a batalha de
manter a substancial massa de terra tropical e subtropical do país longe
do controlo do imperialismo. E duas características desta vitória
merecem uma atenção especial.

A primeira está ligada ao facto de que o neoliberalismo restringe
grandemente o âmbito da acção de massas pela divisão do povo em
elementos atomizados e impedindo, através do controlo que exerce sobre
os media e a academia, a construção de qualquer apoio social
significativo para tal acção. É notável que, em toda esta era, as massas
se tenham geralmente oposto a medidas neoliberais não através de acções
directas, tais como greves prolongadas ou /gheraos/ [3] <#nt>, mas
através de meios políticos indirectos, através da construção de
movimentos políticos alternativos para a captura do poder político, como
na América Latina. E governos opostos ao neoliberalismo, quando chegam
ao poder, têm enfrentado imensos obstáculos, desde crises cambiais a
sanções impostas pelo imperialismo. Muitos destes governos chegaram
mesmo a cair devido a estes obstáculos.

É neste contexto que o movimento kisan na Índia marca uma grande feito:
enquanto utilizava a ameaça política, de trabalhar contra o BJP[4] <#nt>
nas próximas eleições, recorria à acção directa, o que é de extrema
raridade sob o neoliberalismo.

A segunda é a duração da acção directa por parte dos camponeses.
Acamparam nas fronteiras de Deli durante um ano inteiro. Futuros
investigadores irão sem dúvida desvendar como exactamente foram capazes
de realizar esta estupenda proeza. É um feito que precisa ser celebrado.

Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_28nov21.html
28/11/2021

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