– Notas sobre relatório publicado pela Escola de Guerra Económica,
de Paris
Daniel Vaz de Carvalho
*1 - O desígnio imperial dos EUA*
Em outubro de 2021, a /Ecole de Guerre Economique/
<https://www.ege.fr/>, uma escola superior de referência em França que
tem recebido sucessivos prémios pelo seu programa MBA Strategie et
Inteligence Economique, publicou um relatório intitulado /"Comment les
Etats-Unis contribuent-ils à affaiblir l’économie française"?/
<https://www.ege.fr/sites/ege.fr/files/media_files/rapport_alerte_usa_2021.pdf>, no qual participaram 25 académicos, sob a coordenação do diretor da EGE, Christian Harbulot.
John Perkins no seu /Confessions of an Economic Hitman/
<https://resistir.info/livros/john_perkins_confessions_of_an_economic_hit_man.pdf> descreveu as estratégias militares e políticas, em sentido estrito, do imperialismo norte-americano. Neste texto, "Comment les États-Unis contribuent-ils à affaiblir l’économie française?" a análise incide sobre os planos económicos, sociais e, de uma forma abrangente, também políticos. O seu interesse reside em que tudo o que o se nele se expressa, embora visando situações e casos ocorridos em França, tem aplicação global. Trata-se de uma aprofundada análise sobre as estratégias dos EUA, para garantirem o domínio sobre as outras nações.
A Europa é um dos pilares vitais de uma grande estrutura colocada sob a
égide dos EUA e que pretende abranger toda a Eurásia. Os americanos não
veem as nações europeias como parceiras, mas como "vassalos", para usar
palavras de Brzezinski. (8) Um exemplo das escolhas estratégicas dos EUA
foi o cancelamento do contrato de submarinos franceses para a Austrália,
revertido para os EUA, fazendo com que a França perdesse o maior
contrato de armas de sua história, impondo estas questões no debate
público" (8)
Cada sociedade é construída sobre mitos compartilhados. No caso dos
Estados Unidos, as narrativas que lhes conferem um papel histórico no
mundo, são um elemento-chave do seu imaginário coletivo e estruturante.
As ações dos EUA são apresentadas como parte de uma “luta pelo bem"
tendo o objetivo de cumprir uma missão histórica (divina) pela
humanidade, perspetiva que justifica o uso todos os meios. Esta visão
coloca-os como uma nação à qual outros são chamados a se alinhar. Com o
fim da União Soviética, anunciou-se o fim da história e a americanização
completa do mundo em que qualquer refratário é neutralizado militarmente
ou por meio de leis extraterritoriais. (10)
*2 - Estruturação da ordem mundial*
Os EUA estruturaram a ordem mundial de acordo com a uma ideologia
estabelecida ao serviço dos seus interesses. O texto salienta como um
dos principais "slogans" da mobilização americana o Make the World Safe
for Democracy. Além disto, o seu domínio no campo económico serviu-se da
livre circulação de bens e da redução dos limites ao comércio,
nomeadamente alfandegários." (13)
No campo militar a NATO representou a defesa europeia controlada pelos
Estados Unidos. (14) Com o fim do Bloco de Leste, a NATO deixava de ter
a sua razão de ser original, mas foi reforçada pelos EUA, que a usam
para o domínio militar da sua nova "ordem mundial". A NATO constitui
também um meio importante para a venda de armas dos EUA aos países
membros. (15) Com estes meios, mais o dólar, que passou a dominar a
nível mundial o sistema financeiro do capitalismo, os EUA puderam
arvorar-se em "policias do mundo" (18) impondo a sua ideologia,
combatendo tudo que dela se afaste.
O chamado Plano Marshall, instituído em 1947 em 16 países da Europa
capitalista representou, sem as possibilidades que este plano trouxe na
altura, os condicionamentos das futuras "ajudas" noutros continentes:
aceite a ajuda e fique do lado americano ou recuse-a e fique do lado
soviético. O Plano Marshall fez parte do grande plano americano para
moldar a economia a seu favor. No entanto, a ajuda americana não foi
altruísta. A sua economia era então excedentária devido ao esforço de
guerra e precisava de escoamento. (21)
Do GATT (1947) à OMC (1994) os EUA estabeleceram um comércio livre
assimétrico, em grande medida moldado pelos Estados Unidos, aproveitando
as carências devido às destruições da Segunda Guerra Mundial e forte
procura financiada pelo plano Marshall. No entanto a criação de
"exceções de segurança" protegeram os interesses essenciais da soberania
dos Estados Unidos (Artigo XXI do GATT), deixando a possibilidade de uso
do dólar como arma comercial e política. Os EUA, contornaram
repetidamente as regras do GATT quando seus interesses foram ameaçados,
utilizando nomeadamente embargos e dispositivos de barreira comercial. O
alargamento a 160 países, representando 95% do comércio mundial, trouxe
um reequilíbrio de poder dentro da organização. Este desenvolvimento, em
detrimento dos EUA, levou-os a contornarem tanto o GATT como a OMC por
meio da proliferação de acordos regionais e bilaterais. (22)
Organizações internacionais como o FMI, BM, OCDE, etc, moldadas
ideologicamente pelos EUA fazem também parte das suas dinâmicas de
estruturação da ordem mundial.
*3 - Estratégias informais e ilícitas*
Estas estratégias são atividades agressivas, subversivas, informais, no
ambiente político, económico e informacional para maximizar os
interesses de uma entidade em detrimento de outra. Incluem o boicote, a
manipulação de informações e espionagem económica. (30)
Com a queda do Muro de Berlim, uma verdadeira mudança ocorreu no âmbito
da espionagem que do chamado interesse "estratégico" se voltou mais para
a espionagem económica. O Advocacy Center foi o ponto de partida para
esta reorganização funcional. (26) O Patriot Act de 2001, seguido das
revelações de Edward Snowden, ilustra perfeitamente o processo de coleta
de informações públicas e privadas estrangeiras, sob o pretexto do
combate ao terrorismo. (34) O programa PRISM, revelado por Edward
Snowden em 2013, permite visualizar a vasta coleção de informações
obtidas (e, portanto, disseminadas) pela espionagem americana por todo o
espectro económico e político europeu. (42)
Além da espionagem económica, foi estabelecido sistematicamente o
boicote, como entrave à atividade económica, obstruindo a circulação de
produtos ou serviços do país ou entidade visada, com o objetivo de
desestabilizá-lo socialmente e/ou atacá-lo economicamente. O boicote
pode ser "territorial" aplicado diretamente a empresas ou pessoas em
solo americano; pode ser "internacional", por exemplo, impedindo que
certos produtos de subsidiárias estrangeiras controladas por empresas
americanas saiam do país visado. Pode também pode ser acompanhado de
sanções enquadradas na extraterritorialidade do direito americano. Pode
também impedir investimentos em países sob embargo americano, sob pena
de retaliações económicas. (35)
*4 - Dinâmicas jurídicas ofensivas*
Nas dinâmicas jurídicas ofensivas incluem-se os embargos unilaterais, a
extraterritorialidade e os meios normativos ofensivos. Os embargos visam
proibir ou limitar as transações financeiras e comerciais com
determinados Estados, impedindo a livre circulação de mercadorias ou
proibir a saída de navios mercantes de um porto, etc. É portanto, uma
forma de restringir as opções económicas, jurídicas ou políticas de
entidades nacionais e internacionais sobre um determinado território ou
temática. Os embargos dos EUA são decididos pelo International Emergency
Economic Act, lei federal que autoriza o Presidente a restringir as
relações comerciais com determinados países, aprovada em 1977. (38)
Quanto às sanções o US Office of Foreign Asset Control (OFAC) é
responsável por conceder licenças, estabelecer regras e fazer cumprir as
leis dos EUA relativas a sanções económicas, incluindo países
estrangeiros, pessoas físicas ou jurídicas que figurem em lista
específica emitida pela OFAC. (38) No texto é apresentada uma cronologia
dos embargos unilaterais dos EUA. (39)
Com a extraterritorialidade os EUA aplicam a sua legislação nacional a
pessoas físicas ou jurídicas para além das suas fronteiras. É um ato
político, uma vez que sua aplicabilidade a terceiros Estados resulta de
lógicas de influência e coerção. As multas aplicadas, com base na lei
extraterritorial, seguem uma curva exponencial. Em 2004, o total de
multas pagas foi de 10 milhões de dólares, atingindo 2,7 mil milhões em
2016 e 6,4 mil milhões em 2020. (41)
A extraterritorialidade do direito americano tornou-se um componente
importante da estratégia de guerra económica dos EUA, um vetor de
conservação do poder, que ajuda a manter os aliados sob controlo e evita
que adversários em potencial aumentem de poder. Usando meios subversivos
e sabotando qualquer tentativa adversa de posicionamento económico no
cenário mundial, os Estados Unidos moldaram estas estruturas da forma
mais adequada à sustentabilidade de seu poder. (43)
A batalha em torno da normalização é um dos desafios contemporâneos. A
normalização consiste no estabelecimento de regras, processos e padrões
que descrevem e regem determinadas atividades. Procurar ganhar
influência através de normas é uma ação ofensiva considerada como uma
arma estratégica da guerra económica, tornando possível moldar e
produzir novos padrões internacionais para determinados mercados. (45)
Por exemplo, a promoção e disseminação de uma norma americana num campo
que apresenta um "vazio jurídico", num dado país, no texto a França,
naturalmente levará a um efeito bola de neve onde as essas entidades por
medo de uma "falta de conformidade ou competitividade" se alinharão com
o padrão americano considerado "superior", mesmo se um equivalente
nacional existir. (45)
O estabelecimento de dinâmicas jurídicas ofensivas é um elemento de
discórdia para muitas entidades face ao quadro mais global do direito
internacional e os princípios de soberania. A multiplicação de sanções
internacionais impostas pelos Estados Unidos nos últimos anos estão na
origem do insatisfação em muitos países, principalmente europeus, cujas
empresas são as mais prejudicadas. Essas dinâmicas jurídicas ofensivas
enfraquecem os agentes económicos que competem com os EUA, são, porém,
prerrogativa exclusiva dos Estados Unidos dado os consideráveis meios
necessários para projetar, coordenar e controlar a sua aplicação às
entidades estrangeiras visadas. (47)
*5 - Dinâmicas de confrontação económica*
O poder dos Estados Unidos pode ser medido em relação ao nível de
liberdade de ação que possui, à sua capacidade de coagir e de
influenciar as ações de outros agentes económicos. Para Christian
Harbulot e Didier Lucas: “Os Estados Unidos já não consideram o mundo
composto de aliados, neutros, adversários e inimigos, mas de públicos
estrangeiros mais ou menos diferenciados que manipulam e influenciam”. (49)
Outro meio de influir incide nas restrições fiscais e alfandegárias.
Neste sentido são elaboradas listas de retaliação com o objetivo de
maximizar o nível de dano aos interesses económicos do parceiro
comercial visado. (51) Trata-se de uma abordagem insidiosa, favorecendo
as empresas transnacionais americanas. Estas empresas contribuem
decisivamente para o poder financeiro e capitalista dos EUA em todo o
mundo e constituem uma extraordinária ferramenta de predação para o
enfraquecimento das economias concorrentes, nomeadamente, através da
aquisição participações e compra de empresas estratégicas ou de alto
potencial, bem como o repatriamento de suas tecnologias para os EUA. O
fim justifica os meios segundo a doutrina americana, assim todos os
meios do Estado (económicos, políticos, de espionagem, militares ...)
são mobilizados para defender os seus interesses no mundo. (52)
O texto expressa também grandes preocupações sobre a capacidade de os
EUA acederem aos dados das nuvens informáticas /(clouds)/ soberanas
europeias.
A computação em nuvem é o acesso a serviços informáticos (servidores,
armazenamento, rede, software) através da internet de um provedor. Por
exemplo, uma nuvem é qualificada como “soberana francesa” quando "o
alojamento e todo o processamento de um serviço cloud é efetuado
fisicamente dentro dos limites do território nacional, por uma entidade
de domínio francês e na aplicação das leis e normas francesas”. Uma
nuvem soberana visa, portanto, proteger os dados de um território,
colocando-os sob legislação exclusiva do território em questão escapando
à extraterritorialidade da lei americana sobre dados hospedados em
servidores distribuídos em todo o planeta. No contexto de uma guerra
económica atual baseada na coleta e processamento de dados, há uma
consciência crescente da necessidade de criar uma nuvem europeia
soberana. (53)
Neste âmbito há também a considerar os ataques informáticos, ações
deliberadas e limitadas no tempo contra um adversário escolhido. O
ataque pode assumir diversas formas e ser realizado direta ou
indiretamente, por meio media, redes sociais, ONG que se apropriam do
conteúdo do ataque e da divulgação. Os ataques informáticos podem ser
baseados em factos reais e verificáveis, mas também serem apenas boatos
ou calúnias. Ou seja, um corpo de informação, que pode ser em parte
verificável e no qual existem informações que se assemelham mais a
opiniões e suposições do que factos. Independentemente da veracidade é
garantia do sucesso a quantidade de informações e de canais de
disseminação. (63) Não referido no texto, recordamos os ataques
informáticos contra a rede elétrica venezuelana, por exemplo.
*6 - Dinâmicas de "soft power"*
O "soft power" tem uma dupla vocação: cuidar da imagem dos Estados
Unidos e constituir uma rede de influência. Parte importante desta
estratégia são as ações de intensa propaganda para ser globalmente
adotado o "American Way of Life". Durante a Guerra Fria, a CIA também
financiou redes de intelectuais pró-americanos, de esquerda e de
direita, reativados sob o governo Bush. Os Estados Unidos dominam também
os académicos por meio do controle de periódicos científicos e com
universidades no topo do ranking mundial. Isso permite-lhes exportar o
seu modelo de mestrados, doutoramentos e Business Schools, impondo novos
conceitos educacionais, moldando o pensamento dos países influenciados,
em particular pela autocensura, e atraindo académicos estrangeiros, com
altos salários, benefícios familiares, "sonho americano". (23)
As principais empresas americanas de consultoria em estratégia fizeram
investimentos nas sete principais escolas francesas (71) Este domínio
possibilita exportar seu modelo e impor novos conceitos educacionais,
moldando o pensamento dos países influenciados. (72)
Através da sua imagem, de prestígio económico, social, cultural, militar
e científico, é produzido um cerco cognitivo e exportado o "modo de vida
americano" como um ideal. Promove-se a imagem do soldado, do herói,
impondo a sua visão única de felicidade e sucesso ao resto do mundo.
(66). Um imaginário que as produções Hollywood, os serviços de vídeo sob
assinatura e o controlo dos media promovem.
Um outro meio de influenciar são as empresas de consultoria, uma forma
de tornar as empresas dependentes, permanecendo ainda questões relativas
à posse de informação. (74) Outro meio de influenciar e tomar posse de
dados são as empresas de auditoria, ditas independentes, mas vinculadas
à ideologia dominante e critérios dos EUA.
Outro instrumento ao serviço dos EUA são os think tanks, instituições de
pesquisa e grupos de pressão cuja vocação é influenciar um determinado
ambiente, em particular por meio da produção de estudos. Estes estudos e
a promoção do discurso político que os sustentam desempenham um duplo
papel: por um lado, apoiar a tomada de decisões dos poderes executivos,
por outro, influenciar a opinião pública através de vários canais. O
financiamento dos think tanks é geralmente privado, determinando a sua
orientação no sentido dos seus interesses diretos ou indiretos. (75)
As dinâmicas "soft power, projetadas e coordenadas para apoiar
interesses específicos dos Estados Unidos, desempenham um papel
subversivo na coesão social. Subversivo ao afirmarem a presença
americana e apontarem as contradições do discurso político nos casos em
que as políticas públicas nacionais, sobretudo sociais e educacionais,
não conhecem a tradução esperada pelas populações. Subversivo sobre a
governança do país e, portanto, sobre a coesão nacional, por meio de
agentes de influência estrangeiros que se substituem politicamente na
relação entre os intelectuais e a população. Este posicionamento é
determinante para a capacidade de orientar significativamente o país na
direção dos interesses americanos. (78)
*7 - Conclusão*
De 2001 a 2017, os EUA afastaram-se gradualmente das estruturas
(reconhecidamente a seu favor) que regiam as relações entre aliados.
Desde 2017, temos observado um recuo, um questionamento sistemático dos
acordos de livre comércio, da ordem mundial estabelecida, um
endurecimento das relações com seus aliados, um etnocentrismo assumido. (78)
A desindustrialização dos Estados Unidos, seus défices comerciais, sua
liderança contestada pela China, a rutura tecnológica são fatores
preponderantes. País construído por guerras de conquista, os Estados
Unidos encontram sentido no confronto e na adversidade. Os Estados
Unidos estão atualmente em numa posição de equilíbrio particularmente
instável, que põe em questão a realidade de seu poder. Nesta situação
eles têm de reafirmar imperativa e sistematicamente o seu poder a fim de
lembrar a todos que são os donos do jogo. (79)
Da afirmação de força vem a ilusão de força. Mas a China destrói a
ilusão de dominação mundial dos EUA. A própria nação americana não
encontra mais a sua unidade senão na construção do inimigo, fazendo da
China uma formidável oportunidade para a sustentabilidade da coesão
social americana, uma extensão da longa ladainha de outros: comunistas,
muçulmanos, etc. Uma construção do inimigo que é também uma ilusão
quanto à desintegração social do país, à sua fragmentação social,
ideológica e económica. O exercício da força tem por vocação e efeito a
construção de uma narrativa do seu poder. (79)
Tornar visíveis estas dinâmicas de alienação, desconstruindo-as para
compreendê-las na sua motivação e desenvolvimento, é essencial para
formar a consciência, que possa gerar uma ação esclarecida e pertinente.
(79)
O texto incorpora ainda seis anexos onde são descritos e analisados os
casos e as manobras dos EUA para o enfraquecimento da economia francesa.
Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/v_carvalho/estrategias_imperiais_09dez21.html
10/12/2021
sexta-feira, 10 de dezembro de 2021
As estratégias imperiais dos EUA e como enfraquecem os outros países
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