Cláudia Maria Bernava Aguillar
Elementos de contraposição à cidadania burguesa nas práticas pedagógicas do MST
Marília: Lutas anticapital, 2019
Prefácio
Vivemos
em uma época assombrosa. A tecnologia não cessa de aportar maravilhas. O fim do
trabalho preponderantemente físico parece estar próximo, e as grandes potências
já anunciam a ocupação da lua e de marte. Ao mesmo tempo, posicionando-se numa
trajetória reversa, a classe dominante está determinada a remeter os
trabalhadores às condições de vida e trabalho manchesterianas do século XIX. Como tal inflexão histórica é potencialmente
explosiva, ela busca o apaziguamento das massas trabalhadoras. Para tanto, os
seus aparatos ideológicos estão empenhados em saturar a mente da população com
uma visão do mundo que combina teorias, dados empíricos, fantasias
destrambelhadas, meias verdades, omissões, distorções dos fatos ou simplesmente
falsificações da realidade. Por paradoxal que pareça, essa metodologia vem
tendo sucesso apreciável em atrair uma parcela de trabalhadores para o campo político
burguês, inclusive para sua variante ressurgida mais grotesca, a fascista.
No entanto, devemos estar cientes de
que a “lumperização” da comunicação mais imediata não impede, muito ao
contrário, que a classe dominante opere também com conceitos consistentes. Com efeito, em instâncias pautadas por um modus operandi mais mediado, como a do
direito ou da educação, por exemplo, encontramos aquelas categoriais sociais conspícuas
com as quais os intelectuais orgânicos recriam a concepção burguesa do mundo.
O que significa isso para os
trabalhadores que se propõe mudar o rumo dos acontecimentos? Significa que é necessário fazer a crítica das
categoriais sobre as quais se apoia a ordem social. Do mesmo modo que, também é
necessário estudar judiciosamente aqueles outros conceitos que se apresentam
com o propósito de se antepor a essa ordem.
Esse é o procedimento que adota Cláudia
M.B. Aguillar neste trabalho ao erigir como seu objeto de investigação o
conceito de cidadania em sua relação com a pedagogia. A ideia de cidadania está
por toda parte, mas na escola, soa como um mantra. “Na nossa experiência como
docente”, afirma a autora, “principalmente nas últimas três décadas, a
categoria cidadania fez-se presente no planejamento político e pedagógico das
escolas com o propósito de contribuir para a formação cidadã dos alunos”. No
entanto, complementa, “algumas questões de ordem descritiva e explicativa
apareceram: o que é cidadania?”. “O que é formar para a cidadania?”. “Existe no
Brasil alguma pedagogia que rompe ou que procura romper com a formação cidadã oficializada pelo Estado?”.
Para Aguillar, o momento
privilegiado para essa investigação apresentou-se quando a UNESP, a CEETEP e o
MST estabeleceram uma parceria para ministrar um curso técnico em agroecologia.
O MST, organização dos trabalhadores demonizada pela propaganda oficial, tem
uma pedagogia própria. Estaria essa pedagogia igualmente orientada para a
formação cidadã dos alunos?
O cotejamento das ementas
curriculares para esse curso não apresentou contradições. No entanto, a
pesquisadora, não se deteve nas narrativas pedagógicas formalizadas. Em vez
disso, empreendeu um estudo mais trabalhoso, histórico-empírico, que consistiu
de um repasse da trajetória do conceito cidadania, bem como da observação das
práticas pedagógicas nas duas escolas escolhidas para ministrar o curso - uma
pública e outra do MST- mediante
observação presencial e coleta de materiais de fontes escritas e orais.
Os resultados da investigação nos
mostram que cidadania, seja como conceito, seja como categoria vigente na sociedade,
teve uma trajetória cambiante.
No mundo antigo, onde supostamente
surgiu, a cidadania era apanágio de um grupo minoritário da população formado
por homens adultos, que eram detentores de um conjunto de privilégios exclusivos, que iam do monopólio do poder estatal ao
controle da família.
Passando à modernidade (burguesa), a autora
verifica que a cidadania aparece agora
como acontecimento universal. No entanto, verifica também que os direitos
inerentes a esta nova concepção de cidadania são em grande parte formais. Isto porque, tal como no
passado, a cidadania efetiva, ou seja, o poder de Estado e o poder de
exploração da força de trabalho, segue sendo privilégio de um segmento
minoritário da população, a classe dos capitalistas. A grande mudança ocorreu na forma de exploração
da força de trabalho que é realizada agora basicamente por meio do trabalho
assalariado denominado livre.
Uma vez tendo contextualizado
historicamente seu objeto, a autora responde à sua indagação inicial respeitante
ao significado do que é formar para a cidadania na escola oficial. Sintetizando
sua narrativa podemos dizer que educar para a cidadania é, em última análise:
a) qualificar a força de trabalho para que esta possa vir a ser explorada de
modo produtivo nas unidades de trabalho segundo o cânone da sociedade
tecnológica; b) produzir nos estudantes, futuros trabalhadores assalariados,
uma aderência intelectual, psíquica e afetiva às categorias constitutivas da
ordem social.
Quanto ao MST, a pesquisa de
Aguillar corrobora o suposto de que este Movimento conta efetivamente com uma
concepção própria de educação. Essa concepção encontra-se enunciada em
princípios praticamente antitéticos aos princípios da pedagogia oficial.
Mencionamos os mais sugestivos: gestão democrática efetiva da escola,
articulação do trabalho pedagógico com o trabalho real, orientação primária
para o exercício de atividades propiciadas pela reforma agrária como trabalho
coletivo em cooperativas ao invés de venda individual da força de trabalho no
mercado, e estudo e valorização do movimento operário e popular (MOP) ausente
da escola oficial. Numa perspectiva mais ampla, nos cabe notar que esses
princípios não se somam a uma cidadania concreta, que é inexistente, mas
apontam para uma possível cidadania
futura em acorde com a utopia política do MST. Essa utopia seria o
socialismo, que está enunciada em muitos de seus documentos, embora de modo
ainda indeterminado.
No entanto, a autora observou também
que, em que pese o empenho dos educadores, na prática pedagógica do Movimento
há uma duplicidade. Esta decorre do fato de que ao se exercer uma atividade
pedagógica numa escola habilitada para emitir certificados, não é possível
ignorar as normas pedagógicas oficiais formuladas pelo Estado. A consequência é
que, em parte, a ação educativa do MST na escola estrito senso considerada, também
é relativamente funcional à cidadania vigente. Posto em outros termos, um aluno
formado na pedagogia do MST pode ser muito crítico com relação à ordem social.
No entanto, está habilitado a vender sua força de trabalho no mercado
assalariado, o que não raro ocorre.
Antes de tudo porque é portador da certificação que é um pré-requisito da
empregabilidade. E depois porque, do ponto de vista científico-técnico, se
encontra adequadamente preparado.
Seja como for, Aguillar considera
que, medindo-se a prática pedagógica do MST pelo que ele se propõe fazer em
termos de educação, o saldo da atividade pedagógica do Movimento deve ser
considerado bastante positivo. Segundo os indicadores levantados pela
autora, a maior parte dos alunos que passaram por essa pedagogia são portadores
de uma forte crítica ao trabalho alienado, ou seja, à sociedade burguesa e seus
valores. Dizendo o mesmo de modo menos
abstrato, esses alunos ou ex-alunos encontram-se inclinados a valorizar
atividades econômicas que possibilitem aos trabalhadores meios de subsistência autônomos nas quais se respeite a natureza
(agroecologia), tais como as propiciadas, real ou virtualmente, pela reforma
agrária popular: a pequena produção agrária familiar e as cooperativas de
trabalho associado dentre outras. Em
outro plano, mas não menos importante, a dimensão alternativa da pedagogia do
MST, na qual o movimento popular aparece como protagonista meritório e de
estatura histórica, e não como o vilão da versão ideológica escolar oficial,
contribui para a reprodução do Movimento, agregando quadros, militantes ou
simpatizantes.
A educação autônoma da classe
trabalhadora sempre foi uma preocupação dos clássicos do materialismo
histórico, assim como de outras correntes críticas ao capital. E também tem
sido preocupação do MOP, de modo que a história está pontilhada por ações
pedagógicas alternativas. Contudo, na contemporaneidade, abstraindo o MST, a
experiência do Movimento Operário Popular na luta pelo controle do processo de produção pedagógica na
escola, -aí incluído o movimento da educação - não parece ser extensa. Assim, se supusermos
que o inverso dessa situação seria o desejável, este trabalho da professora Aguillar
apresenta-se aos movimentos sociais como uma contribuição preciosa. Primeiro,
por seu potencial de socialização de uma prática educativa que provavelmente
devirá importante nas lutas contra o capital, em geral, e a educação
capitalista em particular. E depois, porque trata-se de uma reflexão
conscienciosa, muito bem documentada e ilustrada; que apresenta exuberância de
dados os quais só a pesquisa histórico-empírica pode propiciar; que não se
detém ante quiméricas pretensões de neutralidade axiológica; e que, ao mesmo
tempo, tampouco se deixa intimidar diante do repto de expor as aporias da vida
social.
Candido
G. Vieitez
Abril, 2019.
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