terça-feira, 26 de novembro de 2019

Elementos de contraposição à cidadania burguesa nas práticas pedagógicas do MST (livro)




Cláudia Maria Bernava Aguillar
Elementos de contraposição à cidadania burguesa nas práticas pedagógicas do MST
Marília: Lutas anticapital, 2019



Prefácio

            Vivemos em uma época assombrosa. A tecnologia não cessa de aportar maravilhas. O fim do trabalho preponderantemente físico parece estar próximo, e as grandes potências já anunciam a ocupação da lua e de marte. Ao mesmo tempo, posicionando-se numa trajetória reversa, a classe dominante está determinada a remeter os trabalhadores às condições de vida e trabalho manchesterianas do século XIX. Como tal inflexão histórica é potencialmente explosiva, ela busca o apaziguamento das massas trabalhadoras. Para tanto, os seus aparatos ideológicos estão empenhados em saturar a mente da população com uma visão do mundo que combina teorias, dados empíricos, fantasias destrambelhadas, meias verdades, omissões, distorções dos fatos ou simplesmente falsificações da realidade. Por paradoxal que pareça, essa metodologia vem tendo sucesso apreciável em atrair uma parcela de trabalhadores para o campo político burguês, inclusive para sua variante ressurgida mais grotesca, a fascista.  
            No entanto, devemos estar cientes de que a “lumperização” da comunicação mais imediata não impede, muito ao contrário, que a classe dominante opere também com conceitos consistentes.  Com efeito, em instâncias pautadas por um modus operandi mais mediado, como a do direito ou da educação, por exemplo, encontramos aquelas categoriais sociais conspícuas com as quais os intelectuais orgânicos recriam a concepção burguesa do mundo.
            O que significa isso para os trabalhadores que se propõe mudar o rumo dos acontecimentos?  Significa que é necessário fazer a crítica das categoriais sobre as quais se apoia a ordem social. Do mesmo modo que, também é necessário estudar judiciosamente aqueles outros conceitos que se apresentam com o propósito de se antepor a essa ordem.   
            Esse é o procedimento que adota Cláudia M.B. Aguillar neste trabalho ao erigir como seu objeto de investigação o conceito de cidadania em sua relação com a pedagogia. A ideia de cidadania está por toda parte, mas na escola, soa como um mantra. “Na nossa experiência como docente”, afirma a autora, “principalmente nas últimas três décadas, a categoria cidadania fez-se presente no planejamento político e pedagógico das escolas com o propósito de contribuir para a formação cidadã dos alunos”.  No entanto, complementa, “algumas questões de ordem descritiva e explicativa apareceram: o que é cidadania?”. “O que é formar para a cidadania?”. “Existe no Brasil alguma pedagogia que rompe ou que procura romper com a formação cidadã oficializada pelo Estado?”.
            Para Aguillar, o momento privilegiado para essa investigação apresentou-se quando a UNESP, a CEETEP e o MST estabeleceram uma parceria para ministrar um curso técnico em agroecologia. O MST, organização dos trabalhadores demonizada pela propaganda oficial, tem uma pedagogia própria. Estaria essa pedagogia igualmente orientada para a formação cidadã dos alunos?
            O cotejamento das ementas curriculares para esse curso não apresentou contradições. No entanto, a pesquisadora, não se deteve nas narrativas pedagógicas formalizadas. Em vez disso, empreendeu um estudo mais trabalhoso, histórico-empírico, que consistiu de um repasse da trajetória do conceito cidadania, bem como da observação das práticas pedagógicas nas duas escolas escolhidas para ministrar o curso - uma pública e outra do MST-  mediante observação presencial e coleta de materiais de fontes escritas e orais.
            Os resultados da investigação nos mostram que cidadania, seja como conceito, seja como categoria vigente na sociedade, teve uma trajetória cambiante.
            No mundo antigo, onde supostamente surgiu, a cidadania era apanágio de um grupo minoritário da população formado por homens adultos, que eram detentores de um conjunto de privilégios exclusivos, que iam do monopólio do poder estatal ao controle da família.
             Passando à modernidade (burguesa), a autora verifica que a cidadania aparece agora como acontecimento universal. No entanto, verifica também que os direitos inerentes a esta nova concepção de cidadania são em grande parte formais. Isto porque, tal como no passado, a cidadania efetiva, ou seja, o poder de Estado e o poder de exploração da força de trabalho, segue sendo privilégio de um segmento minoritário da população, a classe dos capitalistas.    A grande mudança ocorreu na forma de exploração da força de trabalho que é realizada agora basicamente por meio do trabalho assalariado denominado livre.
            Uma vez tendo contextualizado historicamente seu objeto, a autora responde à sua indagação inicial respeitante ao significado do que é formar para a cidadania na escola oficial. Sintetizando sua narrativa podemos dizer que educar para a cidadania é, em última análise: a) qualificar a força de trabalho para que esta possa vir a ser explorada de modo produtivo nas unidades de trabalho segundo o cânone da sociedade tecnológica; b) produzir nos estudantes, futuros trabalhadores assalariados, uma aderência intelectual, psíquica e afetiva às categorias constitutivas da ordem social.
            Quanto ao MST, a pesquisa de Aguillar corrobora o suposto de que este Movimento conta efetivamente com uma concepção própria de educação. Essa concepção encontra-se enunciada em princípios praticamente antitéticos aos princípios da pedagogia oficial. Mencionamos os mais sugestivos: gestão democrática efetiva da escola, articulação do trabalho pedagógico com o trabalho real, orientação primária para o exercício de atividades propiciadas pela reforma agrária como trabalho coletivo em cooperativas ao invés de venda individual da força de trabalho no mercado, e estudo e valorização do movimento operário e popular (MOP) ausente da escola oficial. Numa perspectiva mais ampla, nos cabe notar que esses princípios não se somam a uma cidadania concreta, que é inexistente, mas apontam para uma possível cidadania futura em acorde com a utopia política do MST. Essa utopia seria o socialismo, que está enunciada em muitos de seus documentos, embora de modo ainda indeterminado.
            No entanto, a autora observou também que, em que pese o empenho dos educadores, na prática pedagógica do Movimento há uma duplicidade. Esta decorre do fato de que ao se exercer uma atividade pedagógica numa escola habilitada para emitir certificados, não é possível ignorar as normas pedagógicas oficiais formuladas pelo Estado. A consequência é que, em parte, a ação educativa do MST na escola estrito senso considerada, também é relativamente funcional à cidadania vigente. Posto em outros termos, um aluno formado na pedagogia do MST pode ser muito crítico com relação à ordem social. No entanto, está habilitado a vender sua força de trabalho no mercado assalariado, o que não raro ocorre.  Antes de tudo porque é portador da certificação que é um pré-requisito da empregabilidade. E depois porque, do ponto de vista científico-técnico, se encontra adequadamente preparado.
            Seja como for, Aguillar considera que, medindo-se a prática pedagógica do MST pelo que ele se propõe fazer em termos de educação, o saldo da atividade pedagógica do Movimento deve ser considerado bastante positivo.  Segundo os indicadores levantados pela autora, a maior parte dos alunos que passaram por essa pedagogia são portadores de uma forte crítica ao trabalho alienado, ou seja, à sociedade burguesa e seus valores.  Dizendo o mesmo de modo menos abstrato, esses alunos ou ex-alunos encontram-se inclinados a valorizar atividades econômicas que possibilitem aos trabalhadores meios de subsistência autônomos nas quais se respeite a natureza (agroecologia), tais como as propiciadas, real ou virtualmente, pela reforma agrária popular: a pequena produção agrária familiar e as cooperativas de trabalho associado dentre outras.  Em outro plano, mas não menos importante, a dimensão alternativa da pedagogia do MST, na qual o movimento popular aparece como protagonista meritório e de estatura histórica, e não como o vilão da versão ideológica escolar oficial, contribui para a reprodução do Movimento, agregando quadros, militantes ou simpatizantes.
            A educação autônoma da classe trabalhadora sempre foi uma preocupação dos clássicos do materialismo histórico, assim como de outras correntes críticas ao capital. E também tem sido preocupação do MOP, de modo que a história está pontilhada por ações pedagógicas alternativas. Contudo, na contemporaneidade, abstraindo o MST, a experiência do Movimento Operário Popular na luta pelo controle do processo de produção pedagógica na escola, -aí incluído o movimento da educação -  não parece ser extensa. Assim, se supusermos que o inverso dessa situação seria o desejável, este trabalho da professora Aguillar apresenta-se aos movimentos sociais como uma contribuição preciosa. Primeiro, por seu potencial de socialização de uma prática educativa que provavelmente devirá importante nas lutas contra o capital, em geral, e a educação capitalista em particular. E depois, porque trata-se de uma reflexão conscienciosa, muito bem documentada e ilustrada; que apresenta exuberância de dados os quais só a pesquisa histórico-empírica pode propiciar; que não se detém ante quiméricas pretensões de neutralidade axiológica; e que, ao mesmo tempo, tampouco se deixa intimidar diante do repto de expor as aporias da vida social.
Candido G. Vieitez
Abril, 2019.
       
           
           
             
           
           

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