sexta-feira, 15 de novembro de 2019

RELAÇÕES DE PRODUÇÃO EDUCACIONAIS E A PEDAGOGIA DO MST




Candido G. Vieitez
Introdução
            O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tem uma proposta pedagógica própria, diferente da pedagogia oficial. Essa proposta encontra-se sinteticamente expressa nas seguintes matrizes pedagógicas: pedagogia da luta social; pedagogia da organização coletiva; pedagogia do trabalho e da produção; pedagogia da cultura; pedagogia da história; pedagogia da terra; pedagogia da alternância; pedagogia da escolha[1].
Inequivocamente, a mais importante atividade pedagógica do MST decorre da existência e atividade do próprio Movimento. No entanto, transcendendo esse acontecimento pedagógico imanente, o MST desenvolve atividades educacionais mais formalizadas, dentre as quais destacamos: os vários cursos de livre formação que o Movimento propicia a seus membros e; a atividade escolar propriamente dita, ou seja, aquela habilitada a oferecer certificados ou diplomas legais segundo os critérios do sistema escolar[2].
Neste estudo examinamos essa última variante educacional. Duas são as vertentes de atividade educacional escolar praticada pelo MST: a que se desenvolve nas escolas que pertencem ao Movimento, e a que tem lugar nas escolas estatais, que, basicamente, são aquelas situadas nos assentamentos da reforma agrária.
Nenhuma proposição de pedagogia alternativa à dominante pode ser levada a cabo em termos absolutos, vale dizer, abstraindo completamente as determinantes presentes na sociedade. Contudo, distintas atividades educacionais apresentam diferentes graus de liberdade tanto em relação à ordem social quanto à sua pedagogia característica.
Nos cursos livres, abstraídas as determinações sociais de fundo, o MST organiza a atividade pedagógica segundo seu livre arbítrio. Nos cursos escolares, entretanto, a legislação educacional tem de ser contemplada[3]. No entanto, nas escolas próprias do Movimento a liberdade de organização pedagógica é significativamente maior do que nas escolas do Estado[4].
A maior parte dos estudos realizados sobre a educação do MST, seguindo uma tendência geral dos estudos pedagógicos, tomam como objeto os princípios pedagógicos. Esta abordagem decorre em parte do fato de que a gestão ou administração escolar, que toca mais imediatamente o tema das relações de produção pedagógicas, é usualmente vista pela pesquisa apenas como atividade meio. Divergindo dessa impostação, uma linha de pesquisa da qual fazemos parte, defende que a gestão ou administração escolar, mais diretamente ligada às relações sociais existentes na escola, é um currículo oculto, o qual, no que diz respeito ao quesito estratégico da socialização, é tão importante quanto os conteúdos curriculares propriamente ditos[5]. Sob essa perspectiva temos estudado uma categoria que é bastante cara à pedagogia do MST, a gestão democrática da escola (DAL RI; VIEITEZ, 2013).
A temática da gestão democrática examina basicamente a parte das relações de produção pedagógicas relativa à micropolítica escolar, à forma assumida pela autoridade escolar. Nesta pesquisa, sem pretensão sistêmica, ampliamos esse escopo para incluir outras dimensões daquelas relações. E para tanto tomamos como referência para a análise o que metaforicamente podemos denominar de as instâncias da economia política escolar: a produção pedagógica estrito senso, a distribuição a circulação e o consumo escolares.
   Antes de chegarmos a esses pontos, no entanto, nos detemos para examinar a base social do MST, sua formação, as suas características organizacionais, seu programa e, também, a escola enquanto componente estratégico do mecanismo de reprodução social. Os quatro primeiros temas estão contemplados pelas pesquisas (FERNANDES, 2000). Porém, os retomamos aqui sucintamente para chamar a atenção sobre certos aspectos. Pois, esses contribuem para o esclarecimento de questões tais como: como é que uma organização que na maior parte de sua trajetória defendeu – e em parte ainda defende- uma reforma agrária como distribuição de terras entre pequenos agricultores (camponeses), apresenta entre seus princípios filosóficos educacionais as proposições “educação para o trabalho e a cooperação”,ou, “educação com e para valores humanistas e socialistas” (DAL RI; VIEITEZ, 2013).
As relações de produção dominantes na sociedade burguesa são as relações mercantis. E o hardcore desse universo mercantil é constituído pela compra e venda da mercadoria força de trabalho. Neste estudo sustentamos que a escola, embora não apareça como um arsenal de mercadorias[6], encontra-se determinada e transfixada pelas relações mercantis dominantes. Na escola/empresa/privada de modo ostensivo, imediato. E na escola estatal de modo mediado. Sustentamos também que, a pedagogia do MST não tem como neutralizar cabalmente o poder dessas determinações sociais. E no entanto, conforme procuramos demonstrar, um dos efeitos práticos do exercício dessa pedagogia é a de tomar certa distância das típicas relações sociais capitalistas, bem como de induzir a constituição de relações de produção pedagógicas novas. Como isso é possível, quanto isso é possível, e qual sua resultante é o que tentamos apresentar nesta reflexão.  
1.A base social do MST
            A imagem pública ou pelo menos a mais difundida do MST é a de que este é uma organização de camponeses. Isto é certo, até certo ponto. Ainda assim, a denominação de camponês requer um esclarecimento, uma vez que ela pode significar, simplesmente, o homem que trabalho no campo. Mas, o homem que trabalha no campo pode ser tanto um assalariado quanto um agricultor que explora seu pequeno lote de terra com o auxílio da família.
O MST encontra-se vinculado, sobretudo, ao campesinato constituído por pequenos agricultores[7]. Mas, aqui também cabe uma explicação. Sinteticamente podemos dizer que a base social do MST é constituída por dois segmentos: os acampados e os assentados da reforma agrária[8].
Os assentados formam uma classe de pequenos proprietários rurais que, ao que parece, constituem hoje a base mais ampla do Movimento. Observemos, no entanto, que essa base não é constituída simplesmente por pequenos proprietários em geral, mas por pequenos proprietários que, independentemente de sua trajetória pregressa, prosseguem apoiando a luta pela reforma agrária e, de modo geral, o programa de ação do MST.
Completamente distinta é a situação dos acampados. Estes estão acampados porque almejam ter acesso à terra. Contudo, isto não faz deles camponeses proprietários. Objetivamente, constituem uma fração do proletariado porque destituídos de propriedade móvel ou imóvel propiciadora de condições autônomas de subsistência. De fato, nem todos foram algum dia trabalhadores rurais, e muito menos proprietários, e uma parte deles é originária do meio urbano onde eram assalariados ou desempregados. (FERNANDES, 2000).
A situação de acampamento frequentemente se estende por anos. Só que, paradoxalmente, a vida no acampamento é praticamente a antítese da vida propiciada pela pequena propriedade privada agrária. Enquanto a pequena propriedade é naturalmente particularista e individualista, o acampamento é comunitário, coletivista e radicalmente democrático,  características que são uma condição sine qua non de sua persistência no tempo.      
A rigor, portanto, o MST não é simplesmente uma organização de camponeses/pequenos proprietários. Mas uma organização de proletários, ainda que na expectativa de virem a ser proprietários, e de pequenos proprietários que apresentam a peculiaridade de serem partidários da reforma agrária[9].
2.A formação do MST
            O MST constituiu-se formalmente em 1984 num momento peculiar de nossa história. A ditadura militar, que esmagara o movimento operário popular (MOP) anterior a 1964, a contar dos anos 1970 começara a ser confrontada pelo reaparecimento do MOP.
            O novo movimento não retornou cabalmente às consignas da revolução brasileira anteriores a 1964, e nem tinha a mesma composição sócio-política daqueles anos. Quem mais se aproximou daquelas posições talvez tenha sido o MST. Pois este, ao arvorar a bandeira da luta pela reforma agrária, colocou-se de certo modo como herdeiro do legado das Ligas Camponesas. A luta pela reforma agrária havia sido asfixiada pela ditadura, mas pelo visto não havia desaparecido.
3.A organização do MST
            A reforma agrária clássica (RAC) foi o programa republicano e democrático do MST na maior parte de sua trajetória. Enfatizemos, porém, que o MST se constituiu como uma variante de organização popular, ou, organização coletiva de massas. Este tipo de organização manchesteriano (THOMPSON, 1977), diverge frontalmente das organizações burguesas por ser composta exclusivamente por trabalhadores e contemplar valores operacionais democráticos e coletivistas. É plausível que esta característica esteja relacionada com sua base social assimétrica, que tem de um lado os acampamentos comunitários e de outro os pequenos proprietários dos assentamentos. Provavelmente, também teve – e tem-  ligação com as peculiaridades políticas e ideológicos de seus ativistas de vanguarda, dentre os quais pontificaram cristãos e marxistas[10].
            Seja como for, essas determinantes parecem consoantes com o fato de que, embora o programa do Movimento seja pela pequena propriedade agrária, o seu que fazer  contempla também a presença de ideias e ações voltadas para a promoção de práticas coletivistas, comunitárias ou protosocialistas. Isto é observável em seu empenho em organizar os assentados em coletivos tendo em vista a auto-organização ou a intervenção política, no esforço em induzir a formação de cooperativas, em especial, as de trabalho associado, e em várias dimensões de sua pedagogia, como por exemplo, o empenho em promover a gestão democrática e também a formação de coletivos de estudantes na escola. 
4.Da reforma agrária tradicional à reforma agrária popular. 
            Em 2014, no seu sexto Congresso, o MST enunciou uma nova carta programática. Com ela, deixou para trás a concepção de reforma agrária clássica que norteara suas atividades na maior parte de sua trajetória, passando a postular a reforma agrária popular (RAP). A concepção de reforma agrária como democratização da propriedade agrária nascera no contexto mundial do capitalismo de Estado, quando os estados nações dependentes podiam flertar com a ideia de desenvolvimento nacional e alguma variante, mesmo que periférica, de welfare state. A RAP formulou-se no quadro completamente diferente do capitalismo monopolista transnacional (CARVALHO, 2016; PATNAIK, 2015). É dado como marco mundial desta viragem o ano de 1970 quando é lançada a política neoliberal. Sob esta política “A lei do valor [...] passa a realizar-se ao nível global, controlada pelas transnacionais com nítido prejuízo para os trabalhadores envolvidos e com o poder de Estado capturado nesta lógica” (CARVALHO, 2016).  Mas, no Brasil, os seus efeitos começaram a se sentir mais acentuadamente nos anos 1990, culminando ao que tudo indica no golpe palaciano que depôs a presidente Rousseff em maio de 1916.
Na agricultura, a contar da segunda metade dos anos 1990 e, sobretudo, da crise de 2008, os latifúndios brasileiros foram bandeando-se para o agronegócio, que opera sob a égide do capitalismo monopolista transnacional. No agronegócio, grandes corporações transnacionais, articuladas ao capital financeiro, incrustam-se na agricultura brasileira de modo autônomo, comprando e explorando terras, ou, em articulações com os latifúndios previamente existentes. Dentre os seus objetivos estão a expansão territorial ininterrupta, o controle das águas e sementes, a produção e industrialização de alimentos, a utilização massiva de agrotóxicos, o monopólio da comercialização agrícola e o controle ambiental predatório dentre outras características.
            Em fevereiro de 2015, no Encontro Regional de Educação do Campo, realizado em Itapeva, São Paulo, preparatório ao II ENERA, Delvechio, um dirigente do MST, falando a um público formado por pessoas do Movimento e professores e funcionários da rede de ensino, explicou porque o Movimento passou para a RAP. Eis um excerto de sua alocução no pé de página[11].
               A RAP não abandona a luta pela distribuição de terras ou a reforma agrária. Mas esta muda de natureza. De fato, o conceito de RAP não parece estar suficientemente clarificado, o que aflorou nas entrevistas com membros do MST realizadas por esta pesquisa. De qualquer modo, nos arriscamos a enumerar o que nos parecem os seus eixos principais: a) agro-ecologia como preservação da saúde do trabalhador e da higidez do meio ambiente; b) o estabelecimento de alianças com outros movimentos dos trabalhadores, do campo ou da cidade; c) a transformação dos empreendimentos do agro-negócio em cooperativas agrárias; d) a ampliação do esforço educacional inclusive com a possível recomposição do modelo pedagógico em comum acordo com os movimentos aliados.
            Em suma, a RAP, parece supor um enfrentamento direto com o agro-negócio e outros institutos capitalistas, o que não estava previsto, salvo indiretamente, na RAC. Assim sendo, este programa, se nossa percepção estiver correta, significa uma radicalização da crítica à propriedade capitalista agrária, e por extensão, à propriedade capitalista em geral.   
5.A escola oficial
            Conforme indicamos, as relações de produção mercantis são dominantes na sociedade burguesa. Dentre elas encontra-se a compra/venda da força de trabalho, mercadoria imprescindível sem a qual o capitalismo não teria ao menos se constituído. Basicamente, os membros da classe trabalhadora são os que vendem ao capital sua força de trabalho. O Direito burguês criou a ficção jurídica (DOMÈNECH, 2004) de que a força de trabalho é uma mercadoria igual às outras. No entanto, isso corresponde aos fatos apenas em parte. Ao ser negociada, a mercadoria comum perde imediatamente qualquer vínculo com o seu vendedor, sendo integralmente apropriada pelo comprador. Isso não acontece, porém, com a força de trabalho. O capital não compra o trabalhador, em corpo e alma, como faziam os regimes escravistas, compra apenas a força de trabalho. Porém, a extração de seu valor de uso requer a presença in corpore sano do trabalhador no campo de trabalho, o que aparece à sociedade como trabalho assalariado. E em que condições sociais se encontra o trabalhador nesse campo de trabalho? Encontra-se na única condição compatível com a alienação de sua força de trabalho, a de subordinação e exploração (DEMICHELIS, 2016).
            Relações de subordinação e exploração são inerentemente conflitivas e às vezes explosivas. E a burguesia teve de adotar medidas para manter o conflito sob controle, o que implicou convencer os trabalhadores de que o assalariamento, é não só natural como desejável[12]. Concomitantemente, teve de cuidar para que a força de trabalho apresentasse as características adequadas à sua utilização no processo de trabalho.  Historicamente, a classe burguesa se valeu de vários meios. No entanto, na segunda parte do século XIX criou uma agência especializada, a escola, com a finalidade de equacionar os dois problemas[13]: o do consentimento da classe trabalhadora e o da aquisição de certas habilidades e conhecimentos.
            A escola passa então a propiciar aos estudantes futuros trabalhadores ou já trabalhadores a habilitação requerida. Para efeito apenas didático podemos decompô-la em três instâncias: a) a habilitação linguística, científica, técnica e artística; b) a habilitação político-ideológica e; c)  a habilitação psíquico-física.    Esta última tem muito a ver com a introjeção de um tipo de disciplina pessoal, um habitus que favorece a adaptação ao campo de trabalho, como por exemplo, a observação de horários rígidos, o confinamento prolongado, a aceitação automática da disciplina hierárquica. A habilitação política ou ideológica visa sobretudo fazer com que o estudante adira à concepção do mundo da burguesia, ao instituto do assalariamento, ao autoritarismo hierárquico, etc[14]. A habilitação científica ou técnica - e com uma amplitude e escopo menor, artística – mune o estudante futuro trabalhador dos conceitos necessários à sua utilização produtiva no campo concreto do trabalho[15].
            Com o tempo a escola na sociedade burguesa adveio a habilitadora universal da força de trabalho. Essa função é garantida pelo sistema de certificação[16] ou diplomação, que demarca o escalonamento da habilitação escolar. A certificação é fundamental para o universo do trabalho. Contudo, as suas implicações vão muito além do campo de trabalho, uma vez que a burguesia conseguiu generalizar na sociedade- particularmente na classe média-  a crença de que os postos na sociedade capitalista são ocupados por mérito, que tem sua referência e base no sistema de certificação. 
             Como indicado, o ensino-aprendizagem se dá pela via manifesta do programa curricular, e pela via imanente do currículo oculto constituído pelas relações sociais vigentes na escola. 
Se o currículo oculto decorre das relações sociais escolares, qual é a natureza dessas relações? Antes de tudo o sistema escolar encontra-se determinado, via a legislação estatal, pelas necessidades de reprodução do mercantilismo capitalista que tem como uma pedra angular a adequada reprodução da força de trabalho assalariada. Numa palavra, o sistema escolar, estatal ou privado é organizado visando atender à reprodução das relações capitalistas mercantis. Concomitantemente, em si mesma a escola também opera, em maior ou menor extensão, mediante a prática de relações sociais mercantis capitalistas ou análogas às do capitalismo. A escola estatal que cobra mensalidades de seus alunos exemplifica o último caso e a escola-empresa o primeiro. 
6.A pedagogia do MST frente à pedagogia oficial dominante
            A pedagogia propositivo-alternativa do MST, que atua no terreno da educação certificadora ou escolar, seja em suas escolas próprias ou alheias, encontra-se em maior ou menor grau tangida pelas relações sociais dominantes. Isso decorre da necessidade de observar a legalidade escolar vigente. Mas, não só por isto. Em parte, decorre também das necessidades da reforma agrária, ou por outra, da situação da pequena propriedade agrária ou das cooperativas que se encontram insertas na tessitura das relações de produção mercantis. Não obstante, um efeito da ação pedagógica do Movimento é o de, em certa medida, fazer aflorar na vida escolar relações sociais de um outro signo.
Como isso ocorre sempre mais ou menos em contraposição às relações dominantes, utilizamos como revelador o contraste decorrente da análise comparativa. No decurso da análise temos de ter em mente a base social do MST, a natureza orgânica do Movimento, bem como o seu programa de ação. Com o objetivo de proporcionar um marco de referência à análise do tema proposto seguimos o esquema de examinar os elementos da economia política da escola inerentes à produção pedagógica em seus diversos momentos: a produção pedagógica estrito senso considerada, a distribuição, o intercâmbio e o consumo. Mas indicando apenas os aspectos que consideramos mais importantes, sem qualquer pretensão de um exame sistemático.
6.1. A organização do ensino
A função social fundamental da escola é a habilitação da força de trabalho com  o objetivo propiciar a reprodução do capital e da própria força de trabalho como mercadoria.
            Essa função é realizada espontaneamente pela escola estatal devido à subordinação burocrática dos funcionários do sistema escolar às autoridades estatais e à legislação educacional. Na escola-empresa, entretanto, podem se estabelecer desencontros entre o burguês coletivo encarnado no Estado e o burguês particular da escola empresa, uma vez que o objetivo prioritário deste é a valorização do capital. Desta aporia decorre que a legislação estatal normativa é provavelmente mais premente no campo da escola privada do que no do Estado. 
            Como toda produção, a produção pedagógica tem um  produto. Este, contudo, não é nada palpável na escola uma vez que consiste em transformações subjetivas ocorridas na estrutura intelectual-psíquico-física dos alunos. No entanto, a pedagogia oficial, como convém a uma sociedade de traficantes de mercadorias, encontrou na certificação um método para coisificar essa subjetividade[17]. Como consequência, na operacionalização escolar cotidiana a habilitação da força de trabalho aparece na forma de um produto prosaico, o diploma ou certificação.
O ensino-aprendizagem é realizado pelo trabalhador coletivo (MARX, 1972) escolar formado por professores, funcionários e estudantes. Uma característica iniludível deste trabalhador coletivo é que opera sob a coordenação direta do capital ou um de seus prepostos.
 Os professores e funcionários integram o trabalhador coletivo na condição de força de trabalho assalariada. O alunado o integra como força de trabalho estudantil[18], sujeito/objeto da aprendizagem.
 Os estudantes não são remunerados por sua atividade. E os estudantes da escola-empresa ou da escola estatal mercantilizada têm de comprar sua certificação. 
A necessidade da presença do alunado no campo de trabalho[19] pedagógico é iniludível. Este é um fato ao mesmo tempo análogo e inverso à necessidade da presença da força de trabalho numa fábrica, por exemplo. E decorre diretamente do trabalho como parte da essencialidade humana.  Na escola a força de trabalho estudantil absorve conhecimentos, habitus e habilidades, e constrói uma condição psicofísica essencialmente histórica, ou, como diz certa literatura, assimila os conhecimentos acumulados pela humanidade. Na fábrica, diferentemente, a força de trabalho dispõe, despliega esses conhecimentos a ela incorporados à medida que trabalha.  
Ao colocar sua força de trabalho à disposição do proprietário da escola -empresário ou Estado-, tanto o trabalhador estrito senso quanto o aluno, alienam a utilização da força de trabalho, o que implica necessariamente sua subordinação como indivíduos à autoridade proprietária, bem como, a   seus desígnios sociais.
Na escola estatal em que encontramos a presença atuante de militantes pedagógicos do Movimento, essas determinantes estão igualmente postas. A diferença em relação à escola comum está na luta desses militantes para implementar aí sua concepção pedagógica. Bem realizada essa empreitada ocorre uma modificação parcial, ainda que mais ou menos importante, da alienação (MÉSZARÓS, 2005) do trabalho escolar.
 As situações escolares são diversas e os métodos e resultados também. Por exemplo, na agrovila do Assentamento 25 de maio, em Abelardo Luz, Santa Catarina, há duas escolas praticamente contíguas. Em uma delas, de ensino fundamental, não há traço da pedagogia do Movimento. Na outra, de ensino Médio, denominada Semente da Conquista, a pedagogia do MST é presente e eficaz (VIEITEZ; DA RI, 2015). Também é necessário considerar que em uma escola estatal o corpo de professores e funcionários é de procedência diversa e dificilmente há uma unanimidade quanto à pedagogia do Movimento. Assim, a implementação dessa pedagogia, mesmo que parcialmente, demanda articulações políticas várias com o âmbito do coletivo, e nem sempre é possível evitar o conflito.
            A  autogestão democrática é uma referência estratégica dessa ação pedagógica. Isto porque ela envolve tanto o currículo explícito quanto o oculto. De um lado, ela incide sobre as relações sociais oficiais modificando-as. Do outro, possibilita que os professores ministrem suas disciplinas com liberdade, como por exemplo, discutindo com os alunos o Movimento ou a reforma agrária. No plano meramente lógico, não quanto às formas empíricas, podemos dizer que a gestão democrática do MST consiste em colocar alunos, professores, funcionários e pais em assembleias para decidirem livremente, com direitos iguais de expressão e voto, tudo que puder ser decidido a respeito da gestão da escola. Como exemplificação apresentamos um fragmento do relatório de pesquisa (ALANIZ;VIEITEZ) sobre uma reunião de representantes de alunos, gestores e pais de alunos realizada na Escola Estadual Iraci Salete Strozak, localizada em assentamento da Reforma Agrária no Município de Rio Bonito de Iguaçu, Estado do Paraná com data de 12 a 15 de dezembro de 2014[20].   
            Neste ponto devemos mudar algo do que já afirmamos sobre a habilitação escolar oficial. Mesmo esta não um fenômeno absoluto. Por mais que a burguesia o deseje, o controle sobre a vida escolar nunca é completo. Isto decorre de que na escola há também oposições e contradições que derivam da situação de classe de trabalhadores e estudantes, da estrutura escolar e também dos campos das ciências e das artes (BROOKS, 2016). A pedagogia do movimento problematiza a habilitação oficial na medida em que agrega concepções ligadas ao movimento operário popular, como por exemplo, a defesa da reforma agrária. No que examinamos aqui especificamente, as relações sociais objetivas, contrapõe em alguma medida a autogestão[21] democrática do trabalhador coletivo à gestão hierárquico-burocrática usual da escola, o que obviamente resulta entre outros efeitos, num contra-exemplo que poderá influenciar a concepção de mundo dos alunos.
As condições operacionais da escola própria do MST propiciam um grau de liberdade de ação bem maior do aquele que os militantes poder ter em uma escola do Estado. Vejamos, pois, como se organiza aí o trabalho pedagógico.  
A escola própria do MST também habilita seus estudantes para participarem do mercado de trabalho, assim como os habilita para o sistema escolar. Portanto, o seu produto também aparece como certificação. Contudo, não é a teleologia da certificação que aí pontifica.  Juntamente com o propósito certificador, que é seguramente fundamental para a juventude do MST, encontramos os seguintes outros objetivos que para o Movimento são, possivelmente, ainda mais importantes que a certificação. Esses objetivos são: a) atender às necessidades técnicas e sociais específicas dos assentamentos da reforma agrária não contemplados pela escola comum; b) preparar quadros políticos para o Movimento; c) apoiar a reprodução da propriedade camponesa e impulsionar a formação de cooperativas.
 De qualquer modo, para a pedagogia do Movimento poder emitir diplomas legais tem seu ônus.  A certificação, com sua lógica capitalista inerente adere à praxis educativa da escola competindo com a concepção pedagógica alternativa almejada, mesmo que isso se mantenha em estado latente. Além disso, a certificação exige que a escola cumpra com as determinações da legislação educacional, o que constitui um outro fator importante de aderência relativa ao sistema educacional oficial.  Numa palavra, o legalmente exigido para à certificação[22] implica apreciável constrangimento para as liberdades autonômicas reais ou virtuais da pedagogia do Movimento em sua própria escola.  
A escola própria do MST, como a oficial, organiza seu trabalho pedagógico segundo o princípio do trabalhador coletivo, articulando professores, alunos e funcionários.
As escolas não utilizam professores assalariados. Os professores são muitas vezes militantes do movimento que cumprem uma tarefa. Em outros casos há uma espécie de voluntariado. Devido a isto, as disciplinas dos cursos são ministradas de modo muito concentrado ou seus conteúdos são subdivididos por vários professores. Esta concentração é facilitada pela denominada pedagogia da alternância, pela qual os alunos passam três meses na escola em regime de internato e três meses nos assentamentos ou acampamentos.  Em compensação, não é incomum vermos professores universitários, inclusive dos programas de pós-gradução, ministrando aulas em um curso de nível médio, por exemplo. Por outro lado, a maioria dos docentes não permanece na escola. E o pequeno número de professores fixos tem também tarefas ligadas à gestão.
Tampouco há nessas escolas a categoria que usualmente denominamos como funcionários. As pessoas que executam tarefas mais ou menos próximas àquelas dos funcionários são de fato muito poucas, mas ao contrário dos docentes são fixas na escola. Esses funcionários encontram-se frequentemente no cumprimento de uma tarefa transitória indicada pelo Movimento, e não raro estão aguardando a adscrição de seu lote de terra. Eles recebem retribuição em espécie (moradia, alimentos, etc.) ou em dinheiro, mas não sob o formato salarial. Portanto, tal como os professores não se encontram na escola na condição de vendedores de sua força de trabalho. 
A quase totalidade dos alunos são provenientes dos acampamentos ou assentamentos, portanto, proprietários virtuais ou reais de um lote da RA.  Mas, também não são os alunos como usualmente os conhecemos, pois, além disso, devido ao princípio pedagógico de união da educação com o trabalho têm de repartir seu tempo entre o estudo e o trabalho real. Em geral as escolas contam com uma área agrícola e pequena agro-indústria, cuja finalidade é tanto pedagógica quanto a de ajudar a custear a escola.  Esse trabalho, bem como o de manutenção da escola é realizado cooperativamente por alunos e funcionários.
O Movimento espera que os formandos se integreme nos assentamentos ou sejam ativistas do Movimento. Na prática, entretanto, não é assim porque a terra apropriada é insuficiente e são muitos os jovens que não querem ficar no campo. Assim, embora o propósito mais recôndito da escola não seja o de formar a futura força de trabalho assalariada, a existência da certificação possibilita que uma fração desses estudantes venha a se inserir no mercado de trabalho, com o que, embora parcialmente, a escola também contribui para a reprodução da força de trabalho.
A autogestão democrática é também neste caso a categoria que nos permite sintetizar esquematicamente os efeitos da prática da pedagogia do Movimento no plano das relações sociais. A diferença em relação à ação nas escolas do Estado é que neste tipo de escola a liberdade é muito mais ampla, como indicado. E isto se reflete numa superior concretização da micropolítica da autogestão democrática, embora tanto quanto pudemos apurar, o MST não tenha até o momento sistematizado a fenomenologia de utilização dessa técnica política.
O resultado dessa condição é intuitivamente visualizável. No plano programático, a RAC no passado recente, e nos dias de hoje a RAP [23], tem curso franco e, de fato, constitui o leitmotiv da atividade pedagógica. No plano mais inclusivo das relações sociais endógenas à escola a (des)alienação do trabalho em geral, e do estudantil em particular,   embora continue a ser um acontecimento social relativo,  chega a um patamar de eficácia insólito no contexto das instituições ou organizações sociais de qualquer ordem na sociedade.  
6.2. As relações de distribuição
            Vamos considerar sucintamente a distribuição da riqueza e do poder micropolítico na escola, nessa ordem.
            Na escola-empresa, cujo objetivo primeiro é a valorização do capital, os docentes e funcionários recebem salários cedendo a mais valia. Na escola estatal[24], paga ou gratuita, não há produção de mais valia. Porém, os salários são amiúde solapados pelo empenho do Estado em diminuir custos.
            Os alunos, na escola-empresa, bem como na escola estatal paga, têm como contrapartida de seu trabalho estudantil a certificação, embora devam pagar por ela mediante mensalidades ou anuidades.
            Na escola estatal gratuita, os alunos tampouco recebem nenhuma contrapartida econômica por seu trabalho estudantil pelo motivo anteriormente exposto. Mas, recebem graciosamente a certificação que lhes é concedida a título de direito de cidadania[25].  O capital considera parte da educação um custo inevitável da reprodução. Porém, desde as origens da escola, teve o cuidado de socializar esses custos, financiando a escola gratuita com o dinheiro dos impostos.
            A pedagogia do Movimento na escola estatal em nada modifica o acima exposto. Mas, em suas escolas próprias esse quadro se altera.
            Os professores, salvo exceções, não têm contrapartida econômica por seu trabalho. Os funcionários podem perceber uma modesta contrapartida em dinheiro e ou em espécie. Mas, não no quadro do assalariamento ou de qualquer outro tipo de relação trabalhista propiciadora de exploração econômica.
            Os alunos da escola própria do Movimento não pagam taxas ou mensalidades. E a certificação é também aqui a contrapartida pelo trabalho estudantil. Entretanto, como os alunos se encontram na escola não só pela certificação, mas também pelas necessidades do Movimento ou de sua economia política, eles têm na especificidade dos conhecimentos e habilidades recebidos uma contrapartida suplementar por seu trabalho estudantil. Agreguemos a isso que enquanto internos recebem gratuitamente alimentação, alojamento e algum equipamento escolar. Por outro lado, imediatamente contribuem para a manutenção da escola com seu trabalho real (manutenção da escola, comercialização de bens produzidos, etc.) e, mediatamente, através do aporte feito à escola por suas comunidades de origem.  Vejamos em seguida a distribuição do poder na escola.
Um divisor de águas fundamental quanto à distribuição do poder na escola encontra-se na propriedade. Na escola oficial temos a propriedade estatal ou a propriedade privada. E na sociedade burguesa a propriedade dos meios de produção conta  com uma espécie de soberania relativa, o que lhe permite, por exemplo, comprar força de trabalho e, em seguida, no processo de trabalho, submetê-la à exploração econômica e à subordinação.
Portanto, de um lado temos a propriedade e suas personificações. E de outro, em posição subalterna temos os demais sujeitos da educação, os trabalhadores assalariados e os sujeitos-objetos da produção pedagógica, os alunos.
A condição de propriedade privada típica da escola-empresa dispensa considerações. A condição proprietária da escola estatal requer uma ponderação porque essa se apresenta à sociedade como pública, assim como se imposta como público o Estado. Este efetivamente desempenha funções de normatização e regulação impositivas sobre os trabalhadores e sobre a própria classe burguesa, ou seja, sobre a sociedade. Mas, isso não faz dele uma res pública, muito ao contrário, embora tenhamos a República. O Estado burguês é o burguês coletivo. E a sua tarefa precípua é a de garantir as condições sociais para o funcionamento e reprodução do capital. Portanto, o ente estatal, aí incluída a escola, autodenominado público, é de fato um ente privado, uma forma de manifestação da propriedade burguesa, do seu poder de classe dominante (BROWN, 2009; NICOLAUS, M.)  
            A questão aqui é que tanto a força de trabalho assalariada, quanto a força de trabalho estudantil, encontram-se em situação de subordinação em relação à força proprietária. Certamente os estudantes que provém dos setores médios endinheirados, e que estudam em escolas privadas, conseguem condições de estudo mais favoráveis e inclusive facilitações. Mas estas são dadas a título pessoal, mediante compra, nunca como direito, uma vez que a propriedade não abre mão de suas prerrogativas[26].  Em suma, a distribuição do poder (e da riqueza) na escola espelha as relações de produção gerais dominantes na ordem burguesa.
Essa relação na escola, entre proprietários e não proprietários é um dos elementos fundamentais do currículo oculto nunca mencionado.  Podemos talvez resumir o seu efeito pedagógico afirmando que essa relação se incorpora à psique dos estudantes como um componente que reifica a supremacia da propriedade sobre o trabalho, seja este trabalho estrito senso ou trabalho estudantil.
            Vejamos a escola do Estado sob influência da pedagogia do Movimento. Do ponto de vista estrutural as relações são as mesmas acima descrita. Porém, se aquela pedagogia tiver uma ascendência significativa na organização da vida escolar, como é o caso de várias escolas examinadas in loco por esta pesquisa, o efeito de coisificação da distribuição assimétrica pode estar variavelmente contrabalançado pelo exercício da autogestão democrática[27].
            Situação diferente é a distribuição na escola própria, gratuita, do MST. Não sendo estatal poderia ser considerada privada, mas esta classificação não é apropriada. O mais razoável é classifica-la como uma escola do MST, ou seja, de uma organização coletiva de massas. Mas, mesmo esta figura sugere uma situação um tanto unilateral, uma vez que essas escolas funcionam pela confluência colaborativa e solidária de diversos sujeitos sociais: assentamentos, Movimento, professores, funcionários, alunos, outras organizações sociais e inclusive o Estado.  
            E quem são os alunos dessas escolas?  Em geral são alunos provenientes dos assentamentos e acampamentos, alguns dos quais podem ser também ativistas do Movimento. Aqui o conceito de propriedade torna-se incerto, e as relações decorrentes da supremacia da propriedade esfumam-se numa espécie de fusão. A escola são os alunos, e os alunos são a escola. Ainda assim convém não imaginarmos que desaparecem todas as diferenciações e todas as hierarquias. Certamente os efeitos da estratificação social endógena ao MST - acampados não proprietários, pequenos proprietários rurais, cooperativas, vanguarda política do movimento – se fazem sentir na dinâmica da micropolítica escolar. No entanto, a grande clivagem entre propriedade capitalista e trabalhadores subalternas não está presente. O resultado é uma autogestão democrática mais avançada.  No Instituto de Educação Josué de castro, situado em Veranópolis, RGS, que seguramente foi o paradigma da autogestão democrática para os ativistas pedagógicos do Movimento, AD era levada a cabo mediante a reprodução  mensal da gestão,  que reunia em assembleia geral professores, gestores, alunos e funcionários para deliberarem sobre a totalidade dos assuntos da escola.
6.3. Intercâmbio e consumo
            Vejamos como a escola integra o sóciometabolismo social, encaixando-se na divisão do trabalho. Começamos pelo produto escolar, a certificação.
            Na escola-empresa e na escola estatal paga, o produto chega às mãos do consumidor, o aluno, mediante um ato mercantil de compra e venda[28]. O certificado, expressão coisificada de um fenômeno subjetivo – a aprendizagem- e de anos de trabalho assume a forma social de uma mercadoria.  Convém observar que a certificação é uma mercadoria de curso restrito, uma vez que ela só interessa imediatamente à força de trabalho virtual ou já real. Mas isto não muda em nada o fato de ser conseguida por meio de uma relação mercantil. Por outro lado, essa mercadoria enquanto valor de uso contribuirá de modo estratégico à produção da mercadoria fundamental da sociedade, a força de trabalho.
            Evidentemente, este tipo de relação não é o praticado pela escola estatal gratuita, embora o seu certificado cumpra idêntica função à do certificado mercantilizado no que diz respeito à viabilização da força de trabalho. Como já indicado, a atribuição da certificação ao aluno é realizada em nome do direito de cidadania. O direito de cidadania, ao determinar a transferência gratuita do diploma ao cidadão-aluno, inviabiliza o tráfico mercantil. Esse tipo de direito é uma decorrência da luta histórica da classe trabalhadora. Porém, como indicamos, o mais provável é que na origem tenha emergido socialmente como um custo inevitável de reprodução frente à impossibilidade da maior parte da classe trabalhadora pagar pela educação da nova geração.
            Se por um verso a escola vende seu produto, ou o entrega mais ou menos graciosamente com vistas a viabilizar a mercadoria mais importante do capitalismo, por outro ela compra produtos no mercado para seu consumo produtivo. A escola empresa e a escola estatal, compra no mercado tudo o que precisa para seu funcionamento. Mas, em especial compra sua força de trabalho constituída por docentes e funcionários de diversos tipos.
            Também quanto a este tópico observamos que a condição da escola própria do MST aparece sob uma luz um pouco distinta. A certificação também passa às mãos do aluno gratuitamente. Não em nome do direito cidadão, porém, mas devido a uma transação de tipo solidário e cooperativo que é bastante usual no âmbito do MST.
            No plano da obtenção dos meios de trabalho, a escola do MST tampouco tem como evitar totalmente as compras no mercado. Não obstante, é apreciável a quantidade de meios de trabalho que não são obtidos por esse método. Dentre eles o mais notável é a força de trabalho de professores e funcionários, que atua na escola segundo um misto de voluntariado e ou militância. No entanto, a obtenção não mercantilista dos meios de produção pedagógica abrange possivelmente os seus elementos mais importantes. A terra, os edifícios e as instalações são cedidas ou designadas por algum dos setores do Movimento para a atividade escolar. A alimentação dos alunos, bem como ao menos parte dos materiais de estudo, também são entregues à escola em caráter solidário e colaborativo pelos assentamentos ou outros setores do movimento. Em suma, trabalho em espécie e bens em espécie, com um impacto que estas linhas mal sugerem, possibilitam o funcionamento das escolas do MST, o que por sua vez só é possível devido à economia política do Movimento baseada em cooperativas e pequena propriedade rural familiar.
Conclusão
            A pedagogia do Movimento a que nos referimos aqui é basicamente a que se produziu no período de vigência da RAC, e que subsiste até os dias atuais. O novo programa da RAP por ser muito recente não modificou significativamente o modelo pedagógico até o momento, exceto no que diz respeito à temática da agro-ecologia que a atividade educacional está incorporando com impacto bastante variável. Podemos supor, porém, que se a RAP levar à prática o que hoje parecem ser sobretudo suas potencialidades, é provável que o atual modelo pedagógico venha a sofrer mudanças consideráveis em futuro próximo.
            A escola oficial encontra-se determinada pelas relações mercantis que são dominantes na sociedade, em particular aquelas que dizem respeito à reprodução. Essas relações prevalecem também no âmbito de atuação das escolas, seja no plano de organização da pedagogia, seja no contexto do intercâmbio com a sociedade. Consideramos válida esta afirmação porque, embora o importante setor da escola estatal gratuita não coloque seu produto em circulação mediante uma relação mercantil, todas as escolas operam mediante a utilização de força de trabalho assalariada, a mercadoria determinante em última ratio do modo de produção capitalista.
            Marx (1972) referiu-se aos efeitos provocados na vida social por esse tipo de relações de produção como o fetichismo da mercadoria. Os estudos históricos não parecem ter explorado suficientemente o impacto que esse fenômeno tem sobre a sociedade burguesa, particularmente sobre a classe trabalhadora. Porém, parece seguro afirmar que o fetichismo da mercadoria tem um poderoso efeito mistificador sobre a consciência ou a concepção do mundo da classe trabalhadora - como o demonstra com eficácia Beauvois (2008) em seu Tratado de la servidumbre liberal -; efeito este que é um dos fatores que contribuí para a submissão da classe trabalhadora ao capital.
            Na escola esse efeito decorre do que denominamos neste texto de currículo oculto. Ou seja, do fato inequívoco de que, seguindo a pauta de determinação geral, também nesta instância prevalecem as relações de produção mercantis, fato conspícuo que, no entanto, é rigorosamente ignorado tanto pelos agentes da educação oficial quanto por seus think tanks.
            Um traço essencial da pedagogia do Movimento é que ela entabula uma luta contra a alienação do trabalho ao qual se encontra umbilicalmente ligado o fenômeno do fetichismo. Como seria de esperar, uma vez que atua na vigência das relações capitalistas dominantes, essa pedagogia não tem como se furtar às determinações inerentes à escola ou para além dela, até porque a própria economia política do MST encontra-se organizada em base a relações mercantis simples[29].  Os resultados obtidos são sempre parciais e variáveis quanto a sua eficácia, mas, em todo caso, sempre significativos para a classe trabalhadora.  Na escola do Estado, esse trabalho pedagógico encontra-se naturalmente limitado pela legislação educacional e pela propriedade estatal. Na escola própria do MST, a limitação decorre mais da legislação e também do fato de que devido à natureza da RAC, os alunos também têm que ser preparados para o comércio, o que não deixa de ser uma contradição na pedagogia do Movimento. De qualquer modo, as escolas próprias do MST aplicam a pedagogia do Movimento com uma liberdade incomparável. Não obstante, as escolas próprias do Movimento são muito poucas porque os recursos do Movimento são escassos, e a sua expansão encontra-se na dependência de que se realizasse a revolução agrária que aparece como propositura do novo programa (RAP). Destarte, e um tanto paradoxalmente, as maiores possibilidades de desenvolvimento para a pedagogia alternativa parecem encontrar-se nas escolas do Estado, sobretudo se as alianças com os outros movimentos sociais preconizados pelo novo programa se concretizarem e o movimento operário popular em conjunto resolver partir para a luta por uma pedagogia alternativa em todo o sistema escolar.
Referências
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[1] - Estas matrizes ficam mais claras ao examinarmos os correlatos princípios pedagógicos e filosóficos. Ver DAL RI, NM; VIEITEZ, C.G. Educação democrática e trabalho associado no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e nas fábricas de autogestão. SP, Ícone, 2008, p. 301.
[2] - Costumamos denominar de escola qualquer estabelecimento que ministre cursos de tipo acadêmico. No entanto e a rigor, na ordem social atual, escola propriamente dita é aquela que se encontra habilitada a oferecer certificados dos cursos realizados segundo os parâmetros legais do sistema escolar, que são a chave tanto para o prosseguimento dos estudos, quanto para o acesso ao mercado de trabalho.
[3] -Como veremos, os pedagogos do MST buscam adaptar essa legislação a seu projeto pedagógico com sucesso maior ou menor, ainda que sempre relativo. 
[4] -A escolas do Estado, para afirmar o óbvio, pertencem ao Estado. Em várias delas, porém, dependendo de circunstâncias diversas, os partidários militantes da pedagogia do MST conseguem desenvolver ação pedagógica significativa ou mesmo converterem-se no vetor dirigente in situ. 
[5] - Por socialização entendemos aquele fenômeno pelo qual a sociedade, com seus valores e características históricas, é interiorizada pelos estudantes no processo de aprendizagem.
[6] - “La riqueza de las sociedades em que impera el régimen capitalista de producción se nos aparece como um ‘inmenso arsenal de mercancías’ y la mercancia como su forma elemental”. MARX, C. El Capital. México: Fondo de Cultura Económica, 1972, p.3.
[7] -Encontra-se, também, vinculado a diversos tipos de cooperativas, embora, sejam poucas as de trabalho associado, que transcendem o âmbito conceptivo da pequena propriedade familiar.
[8] -Nunca houve uma reforma agrária no país. O que há é uma certa distribuição de terras realizada em seu nome.
[9] - A adesão à reforma agrária atenua o particularismo imanente à pequena propriedade agrária, mas não tem o condão de suprimi-lo.
[10] - Segundo observação do prof. Fernandes - estudioso do Movimento - em entrevista concedida aos pesquisadores (2014), os militantes de vanguarda mais ativos eram de extração cristã e marxista, prevalecendo nos dias de hoje a última corrente.  
[11] - A RAC tinha por objetivo o desenvolvimento do capitalismo industrial. Defendemos isso durante 30 anos. Aí entramos na globalização neoliberal. [...] Para o capitalismo o agronegócio resolvia a questão do campo. Para nós não. Então a partir de 1990 começamos a substituir a RAC por outro modelo. [...]. Ou seja, anteriormente a burguesia tinha interesse variável pela RA [...]. Mas agora não, o agronegócio resolve o problema para a burguesia. Muita tecnologia, pouca mão de obra. O pessoal vai para a cidade que sabemos como fica. Ambiente tóxico. O  Brasil é o maior consumidor de venenos do mundo.[...]. Esse modelo não interessa para nós no campo. Então, qual reforma para nós? A reforma agrária popular. E a educação tem aí um papel muito importante (DELVECHIO, 2015).

[12] - Gregos e romanos consideravam a condição assalariada como uma variante da escravidão.
[13] - Outras instâncias desempenharam e desempenham funções análogas. Porém, nenhuma com o grau de precisão e organicidade atribuída à escola.
[14] - Aqui nos remetemos precipuamente para o campo de trabalho. No entanto a habilitação escolar transcende o âmbito desse campo, abrangendo o que usualmente é referido pelos educadores como o universo da cidadania.
[15] - A formação de uma boa parte da juventude trabalhadora, ainda hoje, não vai muito além da assimilação mais ou menos elaborada do universo conceitual alfanumérico, o qual é imprescindível tanto no âmbito do trabalho quanto da sociabilidade em geral. A utilidade da educação escolar para as pessoas numa sociedade letrada não carece de explicações. Não obstante, é certo que as pessoas não podem viver do uso pessoal que fazem da educação. Para que esta sirva como um meio de vida é necessário socializa-la, es os trabalhadores praticamente só conseguem fazer isso mediante a venda de sua força de trabalho.
[16] - A certificação oficial correspondente aos diversos níveis de ensino tornou-se praticamente uma
conditio sine qua non para se aceder aos empregos.     
[17] - A preocupação com a coisificação da atividade de ensino-aprendizagem é uma obsessão na escola oficial. Ela mede os conhecimentos assimilados. Mas, antes de tudo, mede a quantidade de horas que foram necessárias à obtenção de certo grau de certificação.
[18] - Temos de atentar para o trabalho enquanto categoria física e o trabalho enquanto categoria social. Enquanto categoria física, humana, o trabalho é certo gasto de energia muscular e nervosa. Enquanto categoria social é uma definição social. No atual regime social o professor é definido como um trabalhador, enquanto o estudante não. No entanto, é evidente que como sujeito-objeto da produção pedagógica, o estudante também trabalha.

[19] - O campo de trabalho pode se expressar numa concentração de pessoas no mesmo local de trabalho ou pode estar disperso como na educação à distância. O característico é que ele se encontra dominado e articulado diretamente pelo capital ou por uma forma equivalente. Em qualquer caso, o trabalhador coletivo segue presente, embora com diferenciações apreciáveis. 
[20] -  O local estava cheio. Estavam pais, mães, crianças pequenas e etc. Uns 6 ou 7 alunos, de ambos os sexos, estavam falando para os pais munidos de anotações numa folha de papel. E estavam apresentando reivindicações à direção da escola. O principal foi: a) muitos professores faltavam excessivamente; b) problema com transporte (ônibus) que é propiciado pela prefeitura. Os alunos reclamavam de certas “arbitrariedades” dos motoristas, o que prejudicava seu acesso à escola. [..]. A assembleia foi realizada em perfeita ordem. Mas, os pais falaram com desenvoltura expondo os seus pontos de vistas sobre vários assuntos. A assembleia era bastante informal e descontraída embora fossem respeitadas a ordem de inscrição etc. Não houve votações. Todos os assuntos já eram conhecidos e pelo visto todos esperavam que alguma providência fosse tomada. [...]. Observamos uma completa desinibição tanto por parte dos alunos quanto dos pais. Eles apresentaram os problemas com franqueza e os discutiram.  Concomitantemente, a diretora mais [outra gestora] iam expondo e colocando os problemas existentes em torno às questões apresentadas. [..]. [A reunião terminou com as gestoras afirmando que tentariam medidas mais enérgicas para solucionar os problemas apresentados].



[21] - Usamos a expressão autogestão no sentido genérico de autogoverno. Mesmo neste sentido devemos tomá-la cum grano salis. 
[22] - O MST não é um exclusivo de ativistas, mas uma organização de massas. Nos acampamentos e assentamentos muitas vezes não há escolas ou o acesso a estas é muito dificultoso, sobretudo para as crianças. É nesse contexto que surge originariamente a necessidade de o Movimento oferecer também uma educação certificada, de curso universal na sociedade.       
[23] - RAC, reformam agrária clássica. RAP, reforma agrária popular
[24] - Estamos considerando a escola estatal tradicional.  Portanto, abstraindo as formas mais recentes de privatizações mascaradas das escolas do Estado.
[25] - Até os anos 1970 estava estendida na sociedade a ideia de que a educação era efetivamente um direito da cidadania em progresso irremissível. Porém, com o advento das políticas neoliberais, a classe dominante lembrou a todos que essa ideia era uma falácia política, e nos dias atuais, até mesmo as escolas estatais mais humildes encontram-se sob risco de sofrerem alguma forma de privatização.
[26] - A massa estudantil é composta por estratos sociais diversos. A maioria provém de famílias assalariadas. A ideologia escolar (meritocrática) proclama que as possibilidades futuras dos estudantes dependem dos seus dons individuais. Mas, de fato, a maior parte dos estudantes está predestinada a integrar o baixo clero do salariato. 
[27] - A gestão democrática é uma cláusula da Constituição de 1988 e, em princípio, por força da lei rege ou deve reger o funcionamento da escola estatal. Contudo, a sua existência é na maioria dos casos meramente formal. E onde é aplicada de fato sofre das restrições inerentes à técnica política liberal sob a qual foi concebida, a qual zela pela supremacia da propriedade também na esfera da micropolítica escolar.   Portanto, encontram-se em contraposição, ainda que relativa, a gestão democrática oficial e a autogestão democrática preconizada pelo Movimento. Sobre a gestão democrática oficial ver Vieitez (2015). 
[28] -Naturalmente, não nos referimos aqui à aquisição da certificação de modo criminoso, mas simplesmente à aquisição normal desse bem.
[29] - As relações mercantis simples, de compra e venda de bens ou serviços, não implicam necessariamente a exploração  e a submissão da força de trabalho como ocorre com as relações mercantis capitalistas. 

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