Candido
G. Vieitez
O
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tem uma proposta pedagógica
própria, diferente da pedagogia oficial. Essa proposta encontra-se
sinteticamente expressa nas seguintes matrizes pedagógicas: pedagogia da luta
social; pedagogia da organização coletiva; pedagogia do trabalho e da produção;
pedagogia da cultura; pedagogia da história; pedagogia da terra; pedagogia da
alternância; pedagogia da escolha[1].
Inequivocamente,
a mais importante atividade pedagógica do MST decorre da existência e atividade
do próprio Movimento. No entanto, transcendendo esse acontecimento pedagógico imanente,
o MST desenvolve atividades educacionais mais formalizadas, dentre as quais
destacamos: os vários cursos de livre formação
que o Movimento propicia a seus membros e; a atividade escolar propriamente
dita, ou seja, aquela habilitada a oferecer certificados ou diplomas legais segundo os critérios do sistema
escolar[2].
Neste
estudo examinamos essa última variante educacional. Duas são as vertentes de
atividade educacional escolar praticada pelo MST: a que se desenvolve nas escolas
que pertencem ao Movimento, e a que tem lugar nas escolas estatais, que,
basicamente, são aquelas situadas nos assentamentos da reforma agrária.
Nenhuma
proposição de pedagogia alternativa à dominante pode ser levada a cabo em
termos absolutos, vale dizer, abstraindo completamente as determinantes
presentes na sociedade. Contudo, distintas atividades educacionais apresentam diferentes
graus de liberdade tanto em relação à
ordem social quanto à sua pedagogia característica.
Nos
cursos livres, abstraídas as
determinações sociais de fundo, o MST organiza a atividade pedagógica segundo
seu livre arbítrio. Nos cursos escolares, entretanto, a legislação educacional
tem de ser contemplada[3]. No entanto, nas escolas
próprias do Movimento a liberdade de organização pedagógica é significativamente
maior do que nas escolas do Estado[4].
A
maior parte dos estudos realizados sobre a educação do MST, seguindo uma
tendência geral dos estudos pedagógicos, tomam como objeto os princípios pedagógicos. Esta abordagem
decorre em parte do fato de que a gestão ou administração escolar, que toca
mais imediatamente o tema das relações de produção pedagógicas, é usualmente
vista pela pesquisa apenas como atividade meio.
Divergindo dessa impostação, uma linha de pesquisa da qual fazemos parte,
defende que a gestão ou administração escolar, mais diretamente ligada às
relações sociais existentes na escola, é um currículo oculto, o qual, no que diz respeito ao quesito
estratégico da socialização, é tão importante
quanto os conteúdos curriculares propriamente ditos[5]. Sob essa perspectiva
temos estudado uma categoria que é bastante cara à pedagogia do MST, a gestão democrática da escola (DAL RI; VIEITEZ,
2013).
A
temática da gestão democrática examina basicamente a parte das relações de
produção pedagógicas relativa à micropolítica escolar, à forma assumida pela
autoridade escolar. Nesta pesquisa, sem pretensão sistêmica, ampliamos esse
escopo para incluir outras dimensões daquelas relações. E para tanto tomamos
como referência para a análise o que
metaforicamente podemos denominar de as instâncias da economia política
escolar: a produção pedagógica estrito senso, a distribuição a circulação e o
consumo escolares.
Antes
de chegarmos a esses pontos, no entanto, nos detemos para examinar a base
social do MST, sua formação, as suas características organizacionais, seu programa e, também, a escola enquanto componente
estratégico do mecanismo de reprodução social. Os quatro primeiros temas estão
contemplados pelas pesquisas (FERNANDES, 2000). Porém, os retomamos aqui
sucintamente para chamar a atenção sobre certos aspectos. Pois, esses
contribuem para o esclarecimento de questões tais como: como é que uma
organização que na maior parte de sua trajetória defendeu – e em parte ainda
defende- uma reforma agrária como distribuição de terras entre pequenos
agricultores (camponeses), apresenta entre seus princípios filosóficos
educacionais as proposições “educação
para o trabalho e a cooperação”,ou, “educação
com e para valores humanistas e socialistas” (DAL RI; VIEITEZ, 2013).
As
relações de produção dominantes na sociedade burguesa são as relações
mercantis. E o hardcore desse
universo mercantil é constituído pela compra e venda da mercadoria força de
trabalho. Neste estudo sustentamos que a escola, embora não apareça como um arsenal de mercadorias[6],
encontra-se determinada e transfixada pelas relações mercantis dominantes.
Na escola/empresa/privada de modo ostensivo, imediato. E na escola estatal de
modo mediado. Sustentamos também que, a pedagogia do MST não tem como
neutralizar cabalmente o poder dessas determinações sociais. E no entanto,
conforme procuramos demonstrar, um dos efeitos práticos do exercício dessa
pedagogia é a de tomar certa distância das típicas relações sociais
capitalistas, bem como de induzir a constituição de relações de produção
pedagógicas novas. Como isso é possível, quanto isso é possível, e qual sua
resultante é o que tentamos apresentar nesta reflexão.
A
imagem pública ou pelo menos a mais difundida do MST é a de que este é uma
organização de camponeses. Isto é certo, até certo ponto. Ainda assim, a
denominação de camponês requer um esclarecimento, uma vez que ela pode
significar, simplesmente, o homem que trabalho no campo. Mas, o homem que
trabalha no campo pode ser tanto um assalariado quanto um agricultor que
explora seu pequeno lote de terra com o auxílio da família.
O
MST encontra-se vinculado, sobretudo, ao campesinato constituído por pequenos
agricultores[7].
Mas, aqui também cabe uma explicação. Sinteticamente podemos dizer que a base
social do MST é constituída por dois segmentos: os acampados e os assentados da
reforma agrária[8].
Os
assentados formam uma classe de pequenos proprietários rurais que, ao que
parece, constituem hoje a base mais ampla do Movimento. Observemos, no entanto,
que essa base não é constituída simplesmente por pequenos proprietários em
geral, mas por pequenos proprietários que, independentemente de sua trajetória
pregressa, prosseguem apoiando a luta pela reforma agrária e, de modo geral, o
programa de ação do MST.
Completamente
distinta é a situação dos acampados. Estes estão acampados porque almejam ter
acesso à terra. Contudo, isto não faz deles camponeses proprietários.
Objetivamente, constituem uma fração do proletariado porque destituídos de
propriedade móvel ou imóvel propiciadora de condições autônomas de
subsistência. De fato, nem todos foram algum dia trabalhadores rurais, e muito
menos proprietários, e uma parte deles é originária do meio urbano onde eram
assalariados ou desempregados. (FERNANDES, 2000).
A
situação de acampamento frequentemente se estende por anos. Só que,
paradoxalmente, a vida no acampamento é praticamente a antítese da vida propiciada
pela pequena propriedade privada agrária. Enquanto a pequena propriedade é
naturalmente particularista e individualista, o acampamento é comunitário, coletivista
e radicalmente democrático, características que são uma condição sine qua non de sua persistência no
tempo.
A
rigor, portanto, o MST não é simplesmente uma organização de camponeses/pequenos
proprietários. Mas uma organização de proletários, ainda que na expectativa de
virem a ser proprietários, e de pequenos proprietários que apresentam a
peculiaridade de serem partidários da reforma
agrária[9].
O
MST constituiu-se formalmente em 1984 num momento peculiar de nossa história. A
ditadura militar, que esmagara o movimento operário popular (MOP) anterior a
1964, a contar dos anos 1970 começara a ser confrontada pelo reaparecimento do MOP.
O novo movimento não retornou
cabalmente às consignas da revolução brasileira anteriores a 1964, e nem tinha
a mesma composição sócio-política daqueles anos. Quem mais se aproximou
daquelas posições talvez tenha sido o MST. Pois este, ao arvorar a bandeira da
luta pela reforma agrária, colocou-se de certo modo como herdeiro do legado das
Ligas Camponesas. A luta pela reforma agrária havia sido asfixiada pela
ditadura, mas pelo visto não havia desaparecido.
3.A organização do MST
A
reforma agrária clássica (RAC) foi o programa republicano e democrático do MST
na maior parte de sua trajetória. Enfatizemos, porém, que o MST se constituiu
como uma variante de organização popular,
ou, organização coletiva de massas. Este
tipo de organização manchesteriano (THOMPSON, 1977), diverge frontalmente
das organizações burguesas por ser composta exclusivamente por trabalhadores e
contemplar valores operacionais democráticos e coletivistas. É plausível que
esta característica esteja relacionada com sua base social assimétrica, que tem
de um lado os acampamentos comunitários e de outro os pequenos proprietários
dos assentamentos. Provavelmente, também teve – e tem- ligação com as peculiaridades políticas e
ideológicos de seus ativistas de vanguarda, dentre os quais pontificaram
cristãos e marxistas[10].
Seja como for, essas determinantes
parecem consoantes com o fato de que, embora o programa do Movimento seja pela pequena
propriedade agrária, o seu que fazer contempla também a presença de ideias e ações
voltadas para a promoção de práticas coletivistas, comunitárias ou protosocialistas.
Isto é observável em seu empenho em organizar os assentados em coletivos tendo
em vista a auto-organização ou a intervenção política, no esforço em induzir a
formação de cooperativas, em especial, as de trabalho associado, e em várias dimensões de sua pedagogia, como
por exemplo, o empenho em promover a gestão democrática e também a formação de
coletivos de estudantes na escola.
Em
2014, no seu sexto Congresso, o MST enunciou uma nova carta programática. Com
ela, deixou para trás a concepção de reforma agrária clássica que norteara suas
atividades na maior parte de sua trajetória, passando a postular a reforma
agrária popular (RAP). A concepção de reforma agrária como democratização da propriedade agrária nascera no contexto mundial
do capitalismo de Estado, quando os
estados nações dependentes podiam flertar com a ideia de desenvolvimento
nacional e alguma variante, mesmo que periférica, de welfare state. A RAP formulou-se no quadro completamente diferente
do capitalismo monopolista transnacional
(CARVALHO, 2016; PATNAIK, 2015). É dado como marco mundial desta viragem o
ano de 1970 quando é lançada a política neoliberal. Sob esta política “A lei do
valor [...] passa a realizar-se ao nível global, controlada pelas
transnacionais com nítido prejuízo para os trabalhadores envolvidos e com o
poder de Estado capturado nesta lógica” (CARVALHO, 2016). Mas, no Brasil, os seus efeitos começaram a se
sentir mais acentuadamente nos anos 1990, culminando ao que tudo indica no
golpe palaciano que depôs a presidente Rousseff em maio de 1916.
Na
agricultura, a contar da segunda metade dos anos 1990 e, sobretudo, da crise de
2008, os latifúndios brasileiros foram bandeando-se para o agronegócio, que opera sob a égide do capitalismo monopolista
transnacional. No agronegócio, grandes corporações transnacionais, articuladas
ao capital financeiro, incrustam-se na agricultura brasileira de modo autônomo,
comprando e explorando terras, ou, em articulações com os latifúndios
previamente existentes. Dentre os seus objetivos estão a expansão territorial
ininterrupta, o controle das águas e sementes, a produção e industrialização de
alimentos, a utilização massiva de agrotóxicos, o monopólio da comercialização
agrícola e o controle ambiental predatório dentre outras características.
Em fevereiro de 2015, no Encontro
Regional de Educação do Campo, realizado em Itapeva, São Paulo, preparatório ao
II ENERA, Delvechio, um dirigente do MST, falando a um público formado por
pessoas do Movimento e professores e funcionários da rede de ensino, explicou
porque o Movimento passou para a RAP. Eis um excerto de sua alocução no pé de
página[11].
A RAP não abandona
a luta pela distribuição de terras ou a reforma agrária. Mas esta muda de
natureza. De fato, o conceito de RAP não parece estar suficientemente
clarificado, o que aflorou nas entrevistas com membros do MST realizadas por
esta pesquisa. De qualquer modo, nos arriscamos a enumerar o que nos parecem os
seus eixos principais: a) agro-ecologia como preservação da saúde do
trabalhador e da higidez do meio ambiente; b) o estabelecimento de alianças com
outros movimentos dos trabalhadores, do campo ou da cidade; c) a transformação
dos empreendimentos do agro-negócio em cooperativas agrárias; d) a ampliação do
esforço educacional inclusive com a possível recomposição do modelo pedagógico em
comum acordo com os movimentos aliados.
Em suma, a RAP, parece supor um
enfrentamento direto com o agro-negócio e outros institutos capitalistas, o que
não estava previsto, salvo indiretamente, na RAC. Assim sendo, este programa,
se nossa percepção estiver correta, significa uma radicalização da crítica à
propriedade capitalista agrária, e por extensão, à propriedade capitalista em
geral.
Conforme
indicamos, as relações de produção mercantis são dominantes na sociedade burguesa. Dentre elas encontra-se a
compra/venda da força de trabalho, mercadoria imprescindível sem a qual o
capitalismo não teria ao menos se constituído. Basicamente, os membros da
classe trabalhadora são os que vendem ao capital sua força de trabalho. O
Direito burguês criou a ficção jurídica (DOMÈNECH, 2004) de que a força de
trabalho é uma mercadoria igual às outras. No entanto, isso corresponde aos
fatos apenas em parte. Ao ser negociada, a mercadoria comum perde imediatamente
qualquer vínculo com o seu vendedor, sendo integralmente apropriada pelo comprador.
Isso não acontece, porém, com a força de trabalho. O capital não compra o
trabalhador, em corpo e alma, como faziam os regimes escravistas, compra apenas
a força de trabalho. Porém, a extração de seu valor de uso requer a presença in corpore sano do trabalhador no campo de trabalho, o que aparece à
sociedade como trabalho assalariado. E
em que condições sociais se encontra o trabalhador nesse campo de trabalho? Encontra-se
na única condição compatível com a alienação de sua força de trabalho, a de subordinação
e exploração (DEMICHELIS, 2016).
Relações de subordinação e
exploração são inerentemente conflitivas e às vezes explosivas. E a burguesia teve
de adotar medidas para manter o conflito sob controle, o que implicou convencer
os trabalhadores de que o assalariamento, é não só natural como desejável[12]. Concomitantemente, teve
de cuidar para que a força de trabalho apresentasse as características adequadas
à sua utilização no processo de trabalho.
Historicamente, a classe burguesa se valeu de vários meios. No entanto,
na segunda parte do século XIX criou uma agência especializada, a escola, com a
finalidade de equacionar os dois problemas[13]: o do consentimento da
classe trabalhadora e o da aquisição de certas habilidades e conhecimentos.
A escola passa então a propiciar aos
estudantes futuros trabalhadores ou já trabalhadores a habilitação requerida. Para
efeito apenas didático podemos decompô-la em três instâncias: a) a habilitação linguística,
científica, técnica e artística; b) a habilitação político-ideológica e; c) a habilitação psíquico-física. Esta
última tem muito a ver com a introjeção de um tipo de disciplina pessoal, um habitus que favorece a adaptação ao
campo de trabalho, como por exemplo, a observação de horários rígidos, o
confinamento prolongado, a aceitação automática da disciplina hierárquica. A
habilitação política ou ideológica visa sobretudo fazer com que o estudante adira
à concepção do mundo da burguesia, ao instituto do assalariamento, ao
autoritarismo hierárquico, etc[14]. A habilitação científica
ou técnica - e com uma amplitude e escopo menor, artística – mune o estudante futuro
trabalhador dos conceitos necessários à sua utilização produtiva no campo
concreto do trabalho[15].
Com o tempo a escola na sociedade
burguesa adveio a habilitadora universal da força de trabalho. Essa função é
garantida pelo sistema de certificação[16]
ou diplomação, que demarca o
escalonamento da habilitação escolar. A certificação é fundamental para o
universo do trabalho. Contudo, as suas implicações vão muito além do campo de
trabalho, uma vez que a burguesia conseguiu generalizar na sociedade-
particularmente na classe média- a crença de que os postos na sociedade
capitalista são ocupados por mérito,
que tem sua referência e base no sistema de certificação.
Como indicado, o ensino-aprendizagem se dá
pela via manifesta do programa curricular, e pela via imanente do currículo oculto constituído pelas
relações sociais vigentes na escola.
Se
o currículo oculto decorre das relações sociais escolares, qual é a natureza
dessas relações? Antes de tudo o sistema escolar encontra-se determinado, via a
legislação estatal, pelas necessidades de reprodução
do mercantilismo capitalista que tem como uma pedra angular a adequada
reprodução da força de trabalho assalariada. Numa palavra, o sistema escolar, estatal
ou privado é organizado visando atender à reprodução das relações capitalistas mercantis.
Concomitantemente, em si mesma a escola também opera, em maior ou menor
extensão, mediante a prática de relações sociais mercantis capitalistas ou
análogas às do capitalismo. A escola estatal que cobra mensalidades de seus
alunos exemplifica o último caso e a escola-empresa o primeiro.
A
pedagogia propositivo-alternativa do MST, que atua no terreno da educação
certificadora ou escolar, seja em suas escolas próprias ou alheias, encontra-se
em maior ou menor grau tangida pelas relações sociais dominantes. Isso decorre
da necessidade de observar a legalidade escolar vigente. Mas, não só por isto.
Em parte, decorre também das necessidades da reforma agrária, ou por outra, da situação da pequena propriedade
agrária ou das cooperativas que se encontram insertas na tessitura das relações
de produção mercantis. Não obstante, um efeito da ação pedagógica do Movimento é
o de, em certa medida, fazer aflorar na vida escolar relações sociais de um
outro signo.
Como
isso ocorre sempre mais ou menos em contraposição às relações dominantes,
utilizamos como revelador o contraste decorrente da análise comparativa. No
decurso da análise temos de ter em mente a base social do MST, a natureza
orgânica do Movimento, bem como o seu programa de ação. Com o objetivo de
proporcionar um marco de referência à análise do tema proposto seguimos o
esquema de examinar os elementos da economia política da escola inerentes à
produção pedagógica em seus diversos momentos: a produção pedagógica estrito
senso considerada, a distribuição, o intercâmbio e o consumo. Mas indicando
apenas os aspectos que consideramos mais importantes, sem qualquer pretensão de
um exame sistemático.
A
função social fundamental da escola é a habilitação da força de trabalho
com o objetivo propiciar a reprodução do
capital e da própria força de trabalho como mercadoria.
Essa função é realizada
espontaneamente pela escola estatal devido à subordinação burocrática dos funcionários
do sistema escolar às autoridades estatais e à legislação educacional. Na
escola-empresa, entretanto, podem se estabelecer desencontros entre o burguês
coletivo encarnado no Estado e o burguês particular da escola empresa, uma vez
que o objetivo prioritário deste é a valorização do capital. Desta aporia
decorre que a legislação estatal normativa é provavelmente mais premente no
campo da escola privada do que no do Estado.
Como toda produção, a produção
pedagógica tem um produto. Este, contudo,
não é nada palpável na escola uma vez que consiste em transformações subjetivas
ocorridas na estrutura intelectual-psíquico-física dos alunos. No entanto, a
pedagogia oficial, como convém a uma sociedade de traficantes de mercadorias,
encontrou na certificação um método
para coisificar essa subjetividade[17]. Como consequência, na
operacionalização escolar cotidiana a habilitação da força de trabalho aparece
na forma de um produto prosaico, o diploma
ou certificação.
O
ensino-aprendizagem é realizado pelo trabalhador
coletivo (MARX, 1972) escolar formado por professores, funcionários e estudantes.
Uma característica iniludível deste trabalhador coletivo é que opera sob a
coordenação direta do capital ou um de seus prepostos.
Os professores e funcionários integram o
trabalhador coletivo na condição de força
de trabalho assalariada. O alunado o integra como força de trabalho
estudantil[18],
sujeito/objeto da aprendizagem.
Os estudantes não são remunerados por sua
atividade. E os estudantes da escola-empresa ou da escola estatal
mercantilizada têm de comprar sua certificação.
A
necessidade da presença do alunado no campo
de trabalho[19]
pedagógico é iniludível. Este é um fato ao mesmo tempo análogo e inverso à
necessidade da presença da força de trabalho numa fábrica, por exemplo. E decorre
diretamente do trabalho como parte da essencialidade humana. Na escola a força de trabalho estudantil
absorve conhecimentos, habitus e
habilidades, e constrói uma condição psicofísica essencialmente histórica, ou,
como diz certa literatura, assimila os conhecimentos acumulados pela
humanidade. Na fábrica, diferentemente, a força de trabalho dispõe, despliega esses conhecimentos a ela
incorporados à medida que trabalha.
Ao
colocar sua força de trabalho à disposição do proprietário da escola -empresário
ou Estado-, tanto o trabalhador estrito senso quanto o aluno, alienam a utilização da força de
trabalho, o que implica necessariamente sua subordinação como indivíduos à autoridade
proprietária, bem como, a seus
desígnios sociais.
Na
escola estatal em que encontramos a presença atuante de militantes pedagógicos
do Movimento, essas determinantes estão igualmente postas. A diferença em
relação à escola comum está na luta desses militantes para implementar aí sua
concepção pedagógica. Bem realizada essa empreitada ocorre uma modificação
parcial, ainda que mais ou menos importante, da alienação (MÉSZARÓS, 2005)
do trabalho escolar.
As situações escolares são diversas e os
métodos e resultados também. Por exemplo, na agrovila do Assentamento 25 de
maio, em Abelardo Luz, Santa Catarina, há duas escolas praticamente contíguas.
Em uma delas, de ensino fundamental, não há traço da pedagogia do Movimento. Na
outra, de ensino Médio, denominada Semente da Conquista, a pedagogia do MST é presente
e eficaz (VIEITEZ; DA RI, 2015). Também é necessário considerar que em uma
escola estatal o corpo de professores e funcionários é de procedência diversa e
dificilmente há uma unanimidade quanto à pedagogia do Movimento. Assim, a
implementação dessa pedagogia, mesmo que parcialmente, demanda articulações
políticas várias com o âmbito do coletivo, e nem sempre é possível evitar o
conflito.
A autogestão democrática é uma
referência estratégica dessa ação pedagógica. Isto porque ela envolve tanto o
currículo explícito quanto o oculto. De um lado, ela incide sobre as relações
sociais oficiais modificando-as. Do outro, possibilita que os professores
ministrem suas disciplinas com liberdade, como por exemplo, discutindo com os
alunos o Movimento ou a reforma agrária. No plano meramente lógico, não quanto
às formas empíricas, podemos dizer que a gestão democrática do MST consiste em
colocar alunos, professores, funcionários e pais em assembleias para decidirem
livremente, com direitos iguais de expressão e voto, tudo que puder ser
decidido a respeito da gestão da escola. Como exemplificação apresentamos um
fragmento do relatório de pesquisa (ALANIZ;VIEITEZ) sobre uma reunião de
representantes de alunos, gestores e pais de alunos realizada na Escola Estadual
Iraci Salete Strozak, localizada em assentamento da Reforma Agrária no
Município de Rio Bonito de Iguaçu, Estado do Paraná com data de 12 a 15 de
dezembro de 2014[20].
Neste ponto devemos mudar algo do
que já afirmamos sobre a habilitação escolar oficial. Mesmo esta não um fenômeno
absoluto. Por mais que a burguesia o deseje, o controle sobre a vida escolar
nunca é completo. Isto decorre de que na escola há também oposições e
contradições que derivam da situação de classe de trabalhadores e estudantes,
da estrutura escolar e também dos campos das ciências e das artes (BROOKS,
2016). A pedagogia do movimento problematiza a habilitação oficial na medida em
que agrega concepções ligadas ao movimento operário popular, como por exemplo,
a defesa da reforma agrária. No que examinamos aqui especificamente, as
relações sociais objetivas, contrapõe em alguma medida a autogestão[21]
democrática do trabalhador coletivo à gestão hierárquico-burocrática usual
da escola, o que obviamente resulta entre outros efeitos, num contra-exemplo
que poderá influenciar a concepção de mundo dos alunos.
As
condições operacionais da escola própria
do MST propiciam um grau de liberdade de ação bem maior do aquele que os
militantes poder ter em uma escola do Estado. Vejamos, pois, como se organiza aí
o trabalho pedagógico.
A
escola própria do MST também habilita seus estudantes para participarem do
mercado de trabalho, assim como os habilita para o sistema escolar. Portanto, o
seu produto também aparece como certificação. Contudo, não é a teleologia da
certificação que aí pontifica.
Juntamente com o propósito certificador, que é seguramente fundamental
para a juventude do MST, encontramos os seguintes outros objetivos que para o
Movimento são, possivelmente, ainda mais importantes que a certificação. Esses
objetivos são: a) atender às necessidades técnicas e sociais específicas dos
assentamentos da reforma agrária não contemplados pela escola comum; b) preparar
quadros políticos para o Movimento; c) apoiar a reprodução da propriedade
camponesa e impulsionar a formação de cooperativas.
De qualquer modo, para a pedagogia do
Movimento poder emitir diplomas legais tem seu ônus. A certificação, com sua lógica capitalista
inerente adere à praxis educativa da escola competindo com a concepção pedagógica
alternativa almejada, mesmo que isso se mantenha em estado latente. Além disso,
a certificação exige que a escola cumpra com as determinações da legislação
educacional, o que constitui um outro fator importante de aderência relativa ao
sistema educacional oficial. Numa
palavra, o legalmente exigido para à certificação[22] implica apreciável
constrangimento para as liberdades autonômicas reais ou virtuais da pedagogia
do Movimento em sua própria escola.
A
escola própria do MST, como a oficial, organiza seu trabalho pedagógico segundo
o princípio do trabalhador coletivo, articulando professores, alunos e funcionários.
As
escolas não utilizam professores assalariados. Os professores são muitas vezes militantes
do movimento que cumprem uma tarefa. Em outros casos há uma espécie de
voluntariado. Devido a isto, as disciplinas dos cursos são ministradas de modo
muito concentrado ou seus conteúdos são subdivididos por vários professores.
Esta concentração é facilitada pela denominada pedagogia da alternância, pela qual os alunos passam três meses na
escola em regime de internato e três meses nos assentamentos ou acampamentos. Em compensação, não é incomum vermos
professores universitários, inclusive dos programas de pós-gradução,
ministrando aulas em um curso de nível médio, por exemplo. Por outro lado, a
maioria dos docentes não permanece na escola. E o pequeno número de professores
fixos tem também tarefas ligadas à gestão.
Tampouco
há nessas escolas a categoria que usualmente denominamos como funcionários. As pessoas
que executam tarefas mais ou menos próximas àquelas dos funcionários são de
fato muito poucas, mas ao contrário dos docentes são fixas na escola. Esses funcionários encontram-se frequentemente
no cumprimento de uma tarefa transitória indicada pelo Movimento, e não raro
estão aguardando a adscrição de seu lote de terra. Eles recebem retribuição em
espécie (moradia, alimentos, etc.) ou em dinheiro, mas não sob o formato
salarial. Portanto, tal como os professores não se encontram na escola na
condição de vendedores de sua força de trabalho.
A
quase totalidade dos alunos são provenientes dos acampamentos ou assentamentos,
portanto, proprietários virtuais ou reais de um lote da RA. Mas, também não são os alunos como usualmente
os conhecemos, pois, além disso, devido ao princípio pedagógico de união da
educação com o trabalho têm de repartir seu tempo entre o estudo e o trabalho
real. Em geral as escolas contam com uma área agrícola e pequena
agro-indústria, cuja finalidade é tanto pedagógica quanto a de ajudar a custear
a escola. Esse trabalho, bem como o de
manutenção da escola é realizado cooperativamente por alunos e funcionários.
O
Movimento espera que os formandos se integreme nos assentamentos ou sejam
ativistas do Movimento. Na prática, entretanto, não é assim porque a terra
apropriada é insuficiente e são muitos os jovens que não querem ficar no campo.
Assim, embora o propósito mais recôndito da escola não seja o de formar a futura
força de trabalho assalariada, a existência da certificação possibilita que uma
fração desses estudantes venha a se inserir no mercado de trabalho, com o que,
embora parcialmente, a escola também contribui para a reprodução da força de
trabalho.
A
autogestão democrática é também neste
caso a categoria que nos permite sintetizar esquematicamente os efeitos da
prática da pedagogia do Movimento no plano das relações sociais. A diferença em
relação à ação nas escolas do Estado é que neste tipo de escola a liberdade é
muito mais ampla, como indicado. E isto se reflete numa superior concretização
da micropolítica da autogestão democrática,
embora tanto quanto pudemos apurar, o MST não tenha até o momento sistematizado
a fenomenologia de utilização dessa técnica política.
O
resultado dessa condição é intuitivamente visualizável. No plano programático,
a RAC no passado
recente, e nos dias de hoje a RAP [23], tem curso franco e, de
fato, constitui o leitmotiv da
atividade pedagógica. No plano mais inclusivo das relações sociais endógenas à
escola a (des)alienação do trabalho
em geral, e do estudantil em particular, embora continue a ser um acontecimento social
relativo, chega a um patamar de eficácia
insólito no contexto das instituições ou organizações sociais de qualquer ordem
na sociedade.
Vamos
considerar sucintamente a distribuição da riqueza e do poder micropolítico na
escola, nessa ordem.
Na escola-empresa, cujo objetivo
primeiro é a valorização do capital, os docentes e funcionários recebem
salários cedendo a mais valia. Na escola estatal[24], paga ou gratuita, não há
produção de mais valia. Porém, os salários são amiúde solapados pelo empenho do
Estado em diminuir custos.
Os alunos, na escola-empresa, bem
como na escola estatal paga, têm como contrapartida de seu trabalho estudantil
a certificação, embora devam pagar por ela mediante mensalidades ou anuidades.
Na escola estatal gratuita, os
alunos tampouco recebem nenhuma contrapartida econômica por seu trabalho
estudantil pelo motivo anteriormente exposto. Mas, recebem graciosamente a
certificação que lhes é concedida a título de direito de cidadania[25]. O capital considera parte da educação um custo
inevitável da reprodução. Porém, desde as origens da escola, teve o cuidado de socializar
esses custos, financiando a escola gratuita com o dinheiro dos impostos.
A pedagogia do Movimento na escola
estatal em nada modifica o acima exposto. Mas, em suas escolas próprias esse
quadro se altera.
Os professores, salvo exceções, não
têm contrapartida econômica por seu trabalho. Os funcionários podem perceber uma modesta contrapartida em dinheiro e
ou em espécie. Mas, não no quadro do assalariamento ou de qualquer outro tipo
de relação trabalhista propiciadora de exploração econômica.
Os alunos da escola própria do
Movimento não pagam taxas ou mensalidades. E a certificação é também aqui a
contrapartida pelo trabalho estudantil. Entretanto, como os alunos se encontram
na escola não só pela certificação, mas também pelas necessidades do Movimento
ou de sua economia política, eles têm na especificidade dos conhecimentos e
habilidades recebidos uma contrapartida suplementar por seu trabalho
estudantil. Agreguemos a isso que enquanto internos recebem gratuitamente
alimentação, alojamento e algum equipamento escolar. Por outro lado,
imediatamente contribuem para a manutenção da escola com seu trabalho real
(manutenção da escola, comercialização de bens produzidos, etc.) e,
mediatamente, através do aporte feito à escola por suas comunidades de origem. Vejamos em seguida a distribuição do poder na escola.
Um
divisor de águas fundamental quanto à distribuição do poder na escola encontra-se
na propriedade. Na escola oficial temos
a propriedade estatal ou a propriedade privada. E na sociedade burguesa a
propriedade dos meios de produção conta com uma espécie de soberania relativa, o que lhe permite, por exemplo, comprar força de
trabalho e, em seguida, no processo de trabalho, submetê-la à exploração
econômica e à subordinação.
Portanto,
de um lado temos a propriedade e suas personificações. E de outro, em posição
subalterna temos os demais sujeitos da educação, os trabalhadores assalariados
e os sujeitos-objetos da produção pedagógica, os alunos.
A
condição de propriedade privada típica da escola-empresa dispensa
considerações. A condição proprietária da escola estatal requer uma ponderação porque
essa se apresenta à sociedade como pública,
assim como se imposta como público o Estado. Este efetivamente desempenha
funções de normatização e regulação impositivas sobre os trabalhadores e sobre
a própria classe burguesa, ou seja, sobre a sociedade. Mas, isso não faz dele
uma res pública, muito ao contrário,
embora tenhamos a República. O Estado burguês é o burguês coletivo. E a sua
tarefa precípua é a de garantir as condições sociais para o funcionamento e
reprodução do capital. Portanto, o ente estatal, aí incluída a escola, autodenominado
público, é de fato um ente privado, uma forma de manifestação da propriedade
burguesa, do seu poder de classe dominante (BROWN, 2009; NICOLAUS, M.)
A questão aqui é que tanto a força
de trabalho assalariada, quanto a força de trabalho estudantil, encontram-se em
situação de subordinação em relação à força proprietária. Certamente os
estudantes que provém dos setores médios endinheirados, e que estudam em
escolas privadas, conseguem condições de estudo mais favoráveis e inclusive
facilitações. Mas estas são dadas a título pessoal, mediante compra, nunca como
direito, uma vez que a propriedade não
abre mão de suas prerrogativas[26]. Em suma, a distribuição do poder (e da
riqueza) na escola espelha as relações de produção gerais dominantes na ordem
burguesa.
Essa
relação na escola, entre proprietários e não proprietários é um dos elementos fundamentais
do currículo oculto nunca mencionado. Podemos
talvez resumir o seu efeito pedagógico afirmando que essa relação se incorpora
à psique dos estudantes como um componente que reifica a supremacia da
propriedade sobre o trabalho, seja este trabalho estrito senso ou trabalho
estudantil.
Vejamos a escola do Estado sob
influência da pedagogia do Movimento. Do ponto de vista estrutural as relações
são as mesmas acima descrita. Porém, se aquela pedagogia tiver uma ascendência
significativa na organização da vida escolar, como é o caso de várias escolas
examinadas in loco por esta pesquisa,
o efeito de coisificação da distribuição assimétrica pode estar variavelmente
contrabalançado pelo exercício da autogestão democrática[27].
Situação diferente é a distribuição
na escola própria, gratuita, do MST. Não sendo estatal poderia ser considerada
privada, mas esta classificação não é apropriada. O mais razoável é
classifica-la como uma escola do MST, ou seja, de uma organização coletiva de
massas. Mas, mesmo esta figura sugere uma situação um tanto unilateral, uma vez
que essas escolas funcionam pela confluência colaborativa e solidária de diversos
sujeitos sociais: assentamentos, Movimento, professores, funcionários, alunos, outras organizações sociais e inclusive o
Estado.
E quem são os alunos dessas
escolas? Em geral são alunos provenientes
dos assentamentos e acampamentos, alguns dos quais podem ser também ativistas
do Movimento. Aqui o conceito de propriedade torna-se incerto, e as relações
decorrentes da supremacia da propriedade esfumam-se numa espécie de fusão. A
escola são os alunos, e os alunos são a escola. Ainda assim convém não
imaginarmos que desaparecem todas as diferenciações e todas as hierarquias.
Certamente os efeitos da estratificação social endógena ao MST - acampados não
proprietários, pequenos proprietários rurais, cooperativas, vanguarda política
do movimento – se fazem sentir na dinâmica da micropolítica escolar. No
entanto, a grande clivagem entre propriedade capitalista e trabalhadores
subalternas não está presente. O resultado é uma autogestão democrática mais avançada. No Instituto de Educação Josué de castro,
situado em Veranópolis, RGS, que seguramente foi o paradigma da autogestão democrática para os ativistas
pedagógicos do Movimento, AD era levada a cabo mediante a reprodução mensal da
gestão, que reunia em assembleia
geral professores, gestores, alunos e funcionários
para deliberarem sobre a totalidade dos assuntos da escola.
6.3. Intercâmbio e consumo
Vejamos
como a escola integra o sóciometabolismo social, encaixando-se na divisão do
trabalho. Começamos pelo produto escolar, a certificação.
Na escola-empresa e na escola
estatal paga, o produto chega às mãos do consumidor, o aluno, mediante um ato
mercantil de compra e venda[28]. O certificado, expressão
coisificada de um fenômeno subjetivo – a aprendizagem- e de anos de trabalho
assume a forma social de uma mercadoria.
Convém observar que a certificação é uma mercadoria de curso restrito,
uma vez que ela só interessa imediatamente à força de trabalho virtual ou já
real. Mas isto não muda em nada o fato de ser conseguida por meio de uma
relação mercantil. Por outro lado, essa mercadoria enquanto valor de uso
contribuirá de modo estratégico à produção da mercadoria fundamental da
sociedade, a força de trabalho.
Evidentemente, este tipo de relação
não é o praticado pela escola estatal gratuita, embora o seu certificado cumpra
idêntica função à do certificado mercantilizado no que diz respeito à
viabilização da força de trabalho. Como já indicado, a atribuição da
certificação ao aluno é realizada em nome do direito de cidadania. O direito de cidadania, ao determinar a
transferência gratuita do diploma ao cidadão-aluno, inviabiliza o tráfico
mercantil. Esse tipo de direito é uma
decorrência da luta histórica da classe trabalhadora. Porém, como indicamos, o
mais provável é que na origem tenha emergido socialmente como um custo
inevitável de reprodução frente à impossibilidade da maior parte da classe
trabalhadora pagar pela educação da nova geração.
Se por um verso a escola vende seu
produto, ou o entrega mais ou menos graciosamente com vistas a viabilizar a
mercadoria mais importante do capitalismo, por outro ela compra produtos no
mercado para seu consumo produtivo. A escola empresa e a escola estatal, compra
no mercado tudo o que precisa para seu funcionamento. Mas, em especial compra
sua força de trabalho constituída por docentes e funcionários de diversos
tipos.
Também quanto a este tópico
observamos que a condição da escola própria do MST aparece sob uma luz um pouco
distinta. A certificação também passa às mãos do aluno gratuitamente. Não em
nome do direito cidadão, porém, mas devido a uma transação de tipo solidário e
cooperativo que é bastante usual no âmbito do MST.
No plano da obtenção dos meios de
trabalho, a escola do MST tampouco tem como evitar totalmente as compras no
mercado. Não obstante, é apreciável a quantidade de meios de trabalho que não
são obtidos por esse método. Dentre eles o mais notável é a força de trabalho
de professores e funcionários, que
atua na escola segundo um misto de voluntariado e ou militância. No entanto, a
obtenção não mercantilista dos meios de produção pedagógica abrange
possivelmente os seus elementos mais importantes. A terra, os edifícios e as
instalações são cedidas ou designadas por algum dos setores do Movimento para a
atividade escolar. A alimentação dos alunos, bem como ao menos parte dos materiais
de estudo, também são entregues à escola em caráter solidário e colaborativo
pelos assentamentos ou outros setores do movimento. Em suma, trabalho em
espécie e bens em espécie, com um impacto que estas linhas mal sugerem,
possibilitam o funcionamento das escolas do MST, o que por sua vez só é
possível devido à economia política do Movimento baseada em cooperativas e
pequena propriedade rural familiar.
Conclusão
A
pedagogia do Movimento a que nos referimos aqui é basicamente a que se produziu
no período de vigência da RAC, e que subsiste até os dias atuais. O novo
programa da RAP por ser muito recente não modificou significativamente o modelo
pedagógico até o momento, exceto no que diz respeito à temática da
agro-ecologia que a atividade educacional está incorporando com impacto
bastante variável. Podemos supor, porém, que se a RAP levar à prática o que
hoje parecem ser sobretudo suas potencialidades, é provável que o atual modelo
pedagógico venha a sofrer mudanças consideráveis em futuro próximo.
A escola oficial encontra-se
determinada pelas relações mercantis que são dominantes na sociedade, em
particular aquelas que dizem respeito à reprodução. Essas relações prevalecem
também no âmbito de atuação das escolas, seja no plano de organização da
pedagogia, seja no contexto do intercâmbio com a sociedade. Consideramos válida
esta afirmação porque, embora o importante setor da escola estatal gratuita não
coloque seu produto em circulação mediante uma relação mercantil, todas as
escolas operam mediante a utilização de força de trabalho assalariada, a
mercadoria determinante em última ratio do
modo de produção capitalista.
Marx (1972) referiu-se aos efeitos
provocados na vida social por esse tipo de relações de produção como o
fetichismo da mercadoria. Os estudos históricos não parecem ter explorado
suficientemente o impacto que esse fenômeno tem sobre a sociedade burguesa,
particularmente sobre a classe trabalhadora. Porém, parece seguro afirmar que o
fetichismo da mercadoria tem um poderoso efeito mistificador sobre a
consciência ou a concepção do mundo da classe trabalhadora - como o demonstra
com eficácia Beauvois (2008) em seu Tratado
de la servidumbre liberal -; efeito este que é um dos fatores que contribuí
para a submissão da classe trabalhadora ao capital.
Na escola esse efeito decorre do que
denominamos neste texto de currículo oculto. Ou seja, do fato inequívoco de
que, seguindo a pauta de determinação geral, também nesta instância prevalecem
as relações de produção mercantis, fato conspícuo que, no entanto, é
rigorosamente ignorado tanto pelos agentes da educação oficial quanto por seus think tanks.
Um
traço essencial da pedagogia do Movimento é que ela entabula uma luta contra a
alienação do trabalho ao qual se encontra umbilicalmente ligado o fenômeno do
fetichismo. Como seria de esperar, uma vez que atua na vigência das relações
capitalistas dominantes, essa pedagogia não tem como se furtar às determinações
inerentes à escola ou para além dela, até porque a própria economia política do
MST encontra-se organizada em base a relações mercantis simples[29]. Os resultados obtidos são sempre parciais e
variáveis quanto a sua eficácia, mas, em todo caso, sempre significativos para
a classe trabalhadora. Na escola do
Estado, esse trabalho pedagógico encontra-se naturalmente limitado pela
legislação educacional e pela propriedade estatal. Na escola própria do MST, a
limitação decorre mais da legislação e também do fato de que devido à natureza
da RAC, os alunos também têm que ser preparados para o comércio, o que não
deixa de ser uma contradição na pedagogia do Movimento. De qualquer modo, as
escolas próprias do MST aplicam a pedagogia do Movimento com uma liberdade
incomparável. Não obstante, as escolas próprias do Movimento são muito poucas
porque os recursos do Movimento são escassos, e a sua expansão encontra-se na
dependência de que se realizasse a revolução agrária que aparece como
propositura do novo programa (RAP). Destarte, e um tanto paradoxalmente, as
maiores possibilidades de desenvolvimento para a pedagogia alternativa parecem
encontrar-se nas escolas do Estado, sobretudo se as alianças com os outros
movimentos sociais preconizados pelo novo programa se concretizarem e o movimento
operário popular em conjunto resolver partir para a luta por uma pedagogia
alternativa em todo o sistema escolar.
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[1] -
Estas matrizes ficam mais claras ao examinarmos os correlatos princípios
pedagógicos e filosóficos. Ver DAL RI, NM; VIEITEZ, C.G. Educação democrática e trabalho associado no Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra e nas fábricas de autogestão. SP, Ícone, 2008,
p. 301.
[2] -
Costumamos denominar de escola qualquer estabelecimento que ministre cursos de
tipo acadêmico. No entanto e a rigor, na ordem social atual, escola
propriamente dita é aquela que se encontra habilitada a oferecer certificados
dos cursos realizados segundo os parâmetros legais do sistema escolar, que são
a chave tanto para o prosseguimento dos estudos, quanto para o acesso ao
mercado de trabalho.
[3]
-Como veremos, os pedagogos do MST buscam adaptar essa legislação a seu projeto
pedagógico com sucesso maior ou menor, ainda que sempre relativo.
[4] -A
escolas do Estado, para afirmar o óbvio, pertencem ao Estado. Em várias delas,
porém, dependendo de circunstâncias diversas, os partidários militantes da
pedagogia do MST conseguem desenvolver ação pedagógica significativa ou mesmo
converterem-se no vetor dirigente in
situ.
[5] -
Por socialização entendemos aquele fenômeno pelo qual a sociedade, com seus
valores e características históricas, é interiorizada pelos estudantes no
processo de aprendizagem.
[6] - “La riqueza de las sociedades em que impera
el régimen capitalista de producción se nos aparece como um ‘inmenso arsenal de
mercancías’ y la mercancia como su forma elemental”.
MARX, C. El Capital. México: Fondo
de Cultura Económica, 1972, p.3.
[7]
-Encontra-se, também, vinculado a diversos tipos de cooperativas, embora, sejam
poucas as de trabalho associado, que transcendem o âmbito conceptivo da pequena
propriedade familiar.
[8]
-Nunca houve uma reforma agrária no país. O que há é uma certa distribuição de
terras realizada em seu nome.
[9] -
A adesão à reforma agrária atenua o particularismo imanente à pequena
propriedade agrária, mas não tem o condão de suprimi-lo.
[10] -
Segundo observação do prof. Fernandes - estudioso do Movimento - em entrevista
concedida aos pesquisadores (2014), os militantes de vanguarda mais ativos eram
de extração cristã e marxista, prevalecendo nos dias de hoje a última corrente.
[11]
- A RAC
tinha por objetivo o desenvolvimento do capitalismo industrial. Defendemos isso
durante 30 anos. Aí entramos na globalização neoliberal. [...] Para o
capitalismo o agronegócio resolvia a questão do campo. Para nós não. Então a
partir de 1990 começamos a substituir a RAC por outro modelo. [...]. Ou seja, anteriormente
a burguesia tinha interesse variável pela RA [...]. Mas agora não, o
agronegócio resolve o problema para a burguesia. Muita tecnologia, pouca mão de
obra. O pessoal vai para a cidade que sabemos como fica. Ambiente tóxico. O Brasil é o maior consumidor de venenos do
mundo.[...]. Esse modelo não interessa para nós no campo. Então, qual reforma
para nós? A reforma agrária popular. E a educação tem aí um papel muito
importante
(DELVECHIO, 2015).
[12] -
Gregos e romanos consideravam a condição assalariada como uma variante da
escravidão.
[13] -
Outras instâncias desempenharam e desempenham funções análogas. Porém, nenhuma
com o grau de precisão e organicidade atribuída à escola.
[14] -
Aqui nos remetemos precipuamente para o campo de trabalho. No entanto a
habilitação escolar transcende o âmbito desse campo, abrangendo o que
usualmente é referido pelos educadores como o universo da cidadania.
[15] -
A formação de uma boa parte da juventude trabalhadora, ainda hoje, não vai
muito além da assimilação mais ou menos elaborada do universo conceitual
alfanumérico, o qual é imprescindível tanto no âmbito do trabalho quanto da
sociabilidade em geral. A utilidade da educação escolar para as pessoas numa
sociedade letrada não carece de explicações. Não obstante, é certo que as
pessoas não podem viver do uso pessoal que fazem da educação. Para que esta
sirva como um meio de vida é necessário socializa-la, es os trabalhadores
praticamente só conseguem fazer isso mediante a venda de sua força de trabalho.
[16] -
A certificação oficial correspondente aos diversos níveis de ensino tornou-se
praticamente uma
conditio sine qua non para se aceder aos
empregos.
[17] -
A preocupação com a coisificação da atividade de ensino-aprendizagem é uma
obsessão na escola oficial. Ela mede os conhecimentos assimilados. Mas, antes
de tudo, mede a quantidade de horas que foram necessárias à obtenção de certo
grau de certificação.
[18] -
Temos de atentar para o trabalho enquanto categoria física e o trabalho
enquanto categoria social. Enquanto categoria física, humana, o trabalho é
certo gasto de energia muscular e nervosa. Enquanto categoria social é uma
definição social. No atual regime social o professor é definido como um
trabalhador, enquanto o estudante não. No entanto, é evidente que como sujeito-objeto
da produção pedagógica, o estudante também trabalha.
[19] -
O campo de trabalho pode se expressar numa concentração de pessoas no mesmo
local de trabalho ou pode estar disperso como na educação à distância. O
característico é que ele se encontra dominado e articulado diretamente pelo
capital ou por uma forma equivalente. Em qualquer caso, o trabalhador coletivo
segue presente, embora com diferenciações apreciáveis.
[20]
- O local estava cheio. Estavam pais,
mães, crianças pequenas e etc. Uns 6 ou 7 alunos, de ambos os sexos, estavam
falando para os pais munidos de anotações numa folha de papel. E estavam
apresentando reivindicações à direção da escola. O principal foi: a) muitos
professores faltavam excessivamente; b) problema com transporte (ônibus) que é
propiciado pela prefeitura. Os alunos reclamavam de certas “arbitrariedades”
dos motoristas, o que prejudicava seu acesso à escola. [..]. A assembleia foi
realizada em perfeita ordem. Mas, os pais falaram com desenvoltura expondo os
seus pontos de vistas sobre vários assuntos. A assembleia era bastante informal
e descontraída embora fossem respeitadas a ordem de inscrição etc. Não houve
votações. Todos os assuntos já eram conhecidos e pelo visto todos esperavam que
alguma providência fosse tomada. [...]. Observamos uma completa desinibição
tanto por parte dos alunos quanto dos pais. Eles apresentaram os problemas com
franqueza e os discutiram.
Concomitantemente, a diretora mais [outra gestora] iam expondo e
colocando os problemas existentes em torno às questões apresentadas. [..]. [A
reunião terminou com as gestoras afirmando que tentariam medidas mais enérgicas
para solucionar os problemas apresentados].
[21] -
Usamos a expressão autogestão no sentido genérico de autogoverno. Mesmo neste
sentido devemos tomá-la cum grano salis.
[22] -
O MST não é um exclusivo de ativistas, mas uma organização de massas. Nos
acampamentos e assentamentos muitas vezes não há escolas ou o acesso a estas é
muito dificultoso, sobretudo para as crianças. É nesse contexto que surge
originariamente a necessidade de o Movimento oferecer também uma educação
certificada, de curso universal na sociedade.
[23] -
RAC, reformam agrária clássica. RAP, reforma agrária popular
[24] -
Estamos considerando a escola estatal tradicional. Portanto, abstraindo as formas mais recentes
de privatizações mascaradas das escolas do Estado.
[25] -
Até os anos 1970 estava estendida na sociedade a ideia de que a educação era
efetivamente um direito da cidadania em progresso irremissível. Porém, com o
advento das políticas neoliberais, a
classe dominante lembrou a todos que essa ideia era uma falácia política, e nos
dias atuais, até mesmo as escolas estatais mais humildes encontram-se sob risco de sofrerem alguma forma de
privatização.
[26] -
A massa estudantil é composta por estratos sociais diversos. A maioria provém
de famílias assalariadas. A ideologia escolar (meritocrática) proclama que as
possibilidades futuras dos estudantes dependem dos seus dons individuais. Mas, de
fato, a maior parte dos estudantes está predestinada a integrar o baixo clero
do salariato.
[27] -
A gestão democrática é uma cláusula da Constituição de 1988 e, em princípio,
por força da lei rege ou deve reger o funcionamento da escola estatal. Contudo,
a sua existência é na maioria dos casos meramente formal. E onde é aplicada de
fato sofre das restrições inerentes à técnica política liberal sob a qual foi
concebida, a qual zela pela supremacia da propriedade também na esfera da
micropolítica escolar. Portanto,
encontram-se em contraposição, ainda que relativa, a gestão democrática oficial
e a autogestão democrática preconizada pelo Movimento. Sobre a gestão
democrática oficial ver Vieitez (2015).
[28]
-Naturalmente, não nos referimos aqui à aquisição da certificação de modo
criminoso, mas simplesmente à aquisição normal desse bem.
[29] -
As relações mercantis simples, de compra e venda de bens ou serviços, não
implicam necessariamente a exploração e a submissão da
força de trabalho como ocorre com as relações mercantis capitalistas.
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