terça-feira, 5 de novembro de 2019

O despertar dos povos




José Goulão

   

Parece inegável que em pontos muito diferentes do globo há povos que
despertam contra a ditadura económica globalizante do neoliberalismo e
as suas trágicas consequências sociais.

Depois de aprovado no Senado a conquista histórica da redução da semana
de trabalho para 40 horas os trabalhadores e o povo chileno não desarmam
e continuam na rua a exigir direitos e o fim o afastamento da cúpula
ultra-liberal. 25 de Outubro de 2019, Santiago, Chile

Depois de aprovado no Senado a conquista histórica da redução da semana
de trabalho para 40 horas os trabalhadores e o povo chileno não desarmam
e continuam na rua a exigir direitos e o fim o afastamento da cúpula
ultra-liberal. 25 de Outubro de 2019, Santiago, ChileCréditos

A paz podre do neoliberalismo globalizante e o conformismo social que
lhe corresponde estão a ser sacudidos através do mundo. Nas urnas e nas
ruas – as duas frentes são democraticamente legítimas e complementares –
os povos dão sinais de que a sonolência hipnótica induzida pelo
/entertainment/ mediático em que se transformou tudo o que tem a ver com
a vida das pessoas é uma arma que também se desgasta, desmascara e vai
perdendo eficácia. Uma faúlha representada por um aumento de preços, um
corte de subsídios sociais, o lançamento de mais um imposto tornaram-se
agora susceptíveis de provocar grandes e vibrantes explosões sociais. A
arbitrariedade e a impunidade do sistema dominante começam a encontrar
barreiras humanas.

Multiplicam-se os focos de contestação popular em zonas diversificadas
do mundo. Mas será um erro avaliá-los segundo uma bitola única, além de
ser profundamente desaconselhável deixar-nos conduzir pelos conteúdos e
sistematizações que brotam da comunicação social dominante. Esta recorre
a métodos padronizados com alguns objectivos principais: diluir a
importância e a legitimidade de acções cívicas através do empolamento
dos fenómenos de violência e que, em última análise, funcionam em
benefício do opressor; misturar razões e motivos para confundir e
esconder, deste modo, a mensagem essencial enviada pelos comportamentos
de massas; associar situações que são liminarmente antagónicas; ou então
evitar ligar circunstâncias e consequências que, sendo diferentes, têm,
obviamente, objectivos convergentes. Por exemplo, tratar as
manifestações no Chile contra o neoliberalismo como irmãs gémeas dos
desacatos na Bolívia a favor do neoliberalismo é tão perverso do ponto
de vista informativo como esconder que os movimentos populares chilenos
têm exactamente a mesma motivação que os resultados das eleições na
Argentina dando guia de marcha a Macri, o homem do FMI.

A única maneira de compreender o que está a passar-se do ponto de vista
global através das grandes movimentações populares em curso é partir da
observação isolada de cada caso para chegar ao que têm em comum – como
indicadores de uma tendência.


    Do Chile à Catalunha

Embora em diferentes fases de maturação, é possível comparar, sem
misturar alhos com bugalhos como capricha em fazer a informação
/mainstream/, várias situações em diferentes continentes: Chile, Bolívia
(e Venezuela), Líbano, Catalunha, Argentina, Equador, Hong Kong,
Honduras, Iraque, Nicarágua.

    «Quem seguir os acontecimentos no Equador e em Hong Kong comodamente
    instalado em frente do televisor, ainda que vá manejando o
    telecomando para ir variando de espaços noticiosos, fica a saber que
    os energúmenos latino-americanos são incapazes de aceitar um corte
    de subsídios de combustível recomendado pelo FMI e que o corajoso
    povo asiático enfrenta destemidamente os sinistros ocupantes
    chineses. São bons exemplos de como funciona a propaganda neoliberal.»

O que está a passar-se no Chile tem características objectivas e
simbólicas importantíssimas, das quais ressalta uma rejeição absoluta da
ditadura económica neoliberal. O Chile é o país onde foi aplicada pela
primeira vez, já lá vão 46 anos, a ortodoxia económica neoliberal, a
cargo dos agentes da sua escola teórica em Chicago, sob cobertura da
ditadura política fascista do general Augusto Pinochet.

A situação demonstrou que o neoliberalismo é, de facto, o fascismo
económico; desenvolvimentos posteriores revelaram – como aliás constatou
a senhora Thatcher, inspiradora do «novo» partido parlamentar Iniciativa
Liberal – que pode ser compatível com formas muito controladas e
manipuladas de democracia política, desde que sustentadas pela
transformação da comunicação social dominante num aparelho feroz de
propaganda. O que se mantém, em qualquer das situações, são os
mecanismos de ditadura económica através da imposição da ortodoxia do
«sistema de mercado».

No Chile não houve uma transição para a democracia com a saída de
Pinochet, mas sim o prolongamento do pinochetismo travestido de
democracia, regime em que se comprometeu – traindo inexoravelmente a
memória do sacrificado Salvador Allende – o Partido Socialista do Chile,
através da ex-presidente Michelle Bachelet.


    Povo chileno continua nas ruas por mudanças sociais

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É contra essa eternização da escravatura neoliberal que se levantam
agora as massas chilenas, quanto a propaganda disfarçada de informação
prefere destacar os comportamentos violentos para esconder, por exemplo,
a gigantesca manifestação pacífica de um milhão e 200 mil pessoas em
Santiago no passado dia 25, que só tem paralelo com as da Unidade
Popular nos anos setenta do século passado. O aumento dos preços das
viagens de metropolitano foi o detonador, a gota que pôs fim à paciência
dos chilenos, que os ricos mais ricos de um dos países mais desiguais do
mundo julgavam eterna.

Na Catalunha não é o neoliberalismo que está directamente em causa. Mas
a incapacidade para se dar conta da existência de um movimento de
milhões de pessoas pela autodeterminação catalã é comportamento próprio
de um Estado centralista e avesso ao diálogo – como são as estruturas de
poder neoliberais.

É evidente que a propósito da Catalunha, a região mais rica de Espanha,
existem razões económicas escondidas em invocações «constitucionalistas»
baratas e em «unidades nacionais» de índole feudal. Um Estado
verdadeiramente democrático não teria dificuldades em dar a palavra aos
catalães – e a outros povos de Espanha – para decidirem sobre o seu
futuro. Mas o Estado que emana de Madrid o seu neofranquismo latente,
agora como sustentáculo da ortodoxia neoliberal, não é capaz de viver
com isso. No entanto, tal como no Chile, há novas realidades que tornam
impossível que tudo continue como até aqui.


    Marchas pela Liberdade inundam Barcelona em dia de greve geral

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Por detrás do autoritarismo do Estado espanhol está a União Europeia,
esse panteão neoliberal que se recusa a conhecer o que pretendem os
catalães mas foi lépido em acolher entidades secessionistas como a
Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Croácia, Eslovénia; e que
inventou outras por sua conta, risco, fraudes e guerras, como o Kosovo e
a Macedónia do Norte.


    Do Equador a Hong Kong

Quem seguir os acontecimentos no Equador e em Hong Kong comodamente
instalado em frente do televisor, ainda que vá manejando o telecomando
para ir variando de espaços noticiosos, fica a saber que os energúmenos
latino-americanos são incapazes de aceitar um corte de subsídios de
combustível recomendado pelo FMI e que o corajoso povo asiático enfrenta
destemidamente os sinistros ocupantes chineses.

São bons exemplos de como funciona a propaganda neoliberal.

    «tratar as manifestações no Chile contra o neoliberalismo como irmãs
    gémeas dos desacatos na Bolívia a favor do neoliberalismo é tão
    perverso do ponto de vista informativo como esconder que os
    movimentos populares chilenos têm exactamente a mesma motivação que
    os resultados das eleições na Argentina dando guia de marcha a
    Macri, o homem do FMI»

No Equador, as populações levantam-se contra o ressurgimento neoliberal
proporcionado pela traição de Lenin Moreno à política de uma década de
avanços sociais e soberanos conduzida por Rafael Corrêa, de quem foi
vice-presidente. Os equatorianos recusam-se, deste modo, a regressar a
um passado de submissão ainda recente.

Em Hong Kong, os «ninjas» teleguiados de Washington e recorrendo a uma
estratégia generalizada de intimidação actuam para que se mantenha o
colonialismo ocidental, que fez do território um bastião do capitalismo
na sua versão neoliberal mais ortodoxa.


    Resistência popular ao neoliberalismo deu alguns frutos e
    equatorianos celebram

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Uma vez que o regresso do território à soberania chinesa é interpretado
como uma tentativa para perturbar a ortodoxia colonialista reinante
torna-se fácil entender o que está a acontecer, sobretudo enquadrando a
situação na fase de ataque cerrado contra os avanços económicos e
comerciais chineses conduzido pela administração Trump. Em Hong Kong, o
activismo a soldo de Washington e Londres nada tem a ver com uma
população que, quando chamada a pronunciar-se sobre a administração do
território, vota em massa nas organizações sintonizadas com a soberania
chinesa.


    Nas urnas como nas ruas

Na Argentina e na Bolívia os cidadãos disseram nas urnas o mesmo que os
chilenos, equatorianos, hondurenhos e libaneses expressam nas ruas: a
rejeição do neoliberalismo.

A realidade é mais complexa, naturalmente, mas essa é a mensagem essencial.

    «começa a desenhar-se uma tendência popular para abandonar o
    conformismo e enfrentar Estados tornados autoritários para poderem
    impor as soluções económicas únicas, as toleradas pelo «mercado».
    Essas acções populares não se confundem, a não ser no âmbito da
    estratégia manipuladora da própria propaganda neoliberal, com
    arruaças, tumultos e comportamentos terroristas como os que
    acontecem na Bolívia, na Venezuela, Hong Kong e Nicarágua, por exemplo»

Os argentinos não deixaram margem para dúvidas: aproveitaram a primeira
oportunidade eleitoral que lhes surgiu e puseram fim ao terrorismo
neoliberal implantado pela ditadura de Mauricio Macri, ao serviço do
FMI, que em quatro anos arrasou a economia do país ampliando fenómenos
como a pobreza, a submissão, a desigualdade, a delinquência.

A afinidade entre chilenos e argentinos é total; o mesmo acontece com os
equatorianos e os hondurenhos. Estes enfrentam corajosamente um regime
terrorista nascido de um golpe patrocinado por Barack Obama e Hillary
Clinton e sustentado por sucessivas eleições fraudulentas as quais, não
obstante, têm recebido a chancela de legitimidade democrática outorgada
por delegações da União Europeia.

Na Bolívia, o triunfo de Evo Morales e a nova rejeição do neoliberalismo
foram difíceis num ambiente de manipulação norte-americana – a embaixada
em La Paz foi apanhada a comprar votos, principalmente em Santa Cruz,
tal como já o fizera com deputados da Macedónia do Norte – que continua
após as eleições.


    É oficial: Evo Morales reeleito na Bolívia

<https://www.abrilabril.pt/internacional/e-oficial-evo-morales-reeleito-na-bolivia>Ler
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O candidato oficial do neoliberalismo, o antigo presidente Carlos Mesa,
deu o tiro de partida para a contestação levantando a acusação de
«fraude» quando a contagem de votos estava no início. Dessa suposta
fraude nenhuma prova apresentou, porque não houve. Mas as consequentes
arruaças servem para a propaganda mediática disseminar o mote como uma
verdade absoluta, sancionada por «organizações internacionais», as que
se consideram portadoras dos mecanismos de avaliação de legitimidades.

Não é difícil perceber a intenção manipuladora da comunicação social
dominante quando associa os protestos na Bolívia aos do Chile. No fundo
é o mesmo estilo de propaganda que transforma em grandes manifestações
populares pela democracia as arruaças terroristas do usurpador Juan
Guaidó na Venezuela.


    Protestos continuam no Líbano contra más condições de vida

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Desperta também o povo do Líbano. Nova sobrecarga de impostos num país
avassalado por uma crise económica e afogado em corrupção e privilégios
dos titulares e ex-titulares do poder foi a gota que fez transbordar a
paciência. É um protesto massivo contra um sistema político que pode ser
assimilado a outros como os do Chile, Equador e Honduras, mas que que
combina a ortodoxia neoliberal com um confessionalismo herdado do
domínio colonial – sempre presente. Por isso, as reivindicações
populares vão além da convocação de novas eleições gerais; exigem uma
lei eleitoral que deixe de estar subordinada a quotas de eleitos
distribuídas pelas comunidades étnico-religiosas e estabeleça um
sufrágio universal directo e proporcional. É aí que se fixa o nó do
problema, porque nenhum dos protectores coloniais do Líbano, da França
aos Estados Unidos, passando por Israel e Arábia Saudita, está disposto
a aceitar uma transparência democrática que possa traduzir-se, por
exemplo, numa vitória do Hezbollah, como chega a ser vaticinada ainda
que a comunidade xiita não seja maioritária no país. As manifestações de
massas fizeram já cair o presidente, mas a realização de eleições
segundo a metodologia em vigor produzirá um pouco de mais do mesmo. E,
para já, de uma maneira perversa, a Arábia Saudita marcou pontos, porque
estava interessada na queda do actual chefe de Estado.

Os tumultos no Iraque têm motivações bastante mais ambíguas e
enviesadas. Não é difícil arrastar as massas para as ruas numa situação
de crise económica grave decorrente da invasão, ocupação e
desmantelamento do país pelas tropas norte-americanas, a que se seguiram
guerras ainda por resolver. Porém, a concretização das exigências do
sector mais radical e contundente dos manifestantes, a demissão do
primeiro-ministro, seria um favor às pretensões actuais dos Estados
Unidos, que vêem no actual governo um adversário aos seus objectivos de
isolamento e fragilização do Irão.


    Povos em acção

Parece inegável que em pontos muito diferentes do globo há povos que
despertam contra a ditadura económica globalizante do neoliberalismo e
as suas trágicas consequências sociais. Independente de questões
específicas de cada caso, começa a desenhar-se uma tendência popular
para abandonar o conformismo e enfrentar Estados tornados autoritários
para poderem impor as soluções económicas únicas, as toleradas pelo
«mercado».

    «Nas urnas e nas ruas – as duas frentes são democraticamente
    legítimas e complementares – os povos dão sinais de que a sonolência
    hipnótica induzida pelo /entertainment/ mediático em que se
    transformou tudo o que tem a ver com a vida das pessoas é uma arma
    que também se desgasta, desmascara e vai perdendo eficácia»

Essas acções populares não se confundem, a não ser no âmbito da
estratégia manipuladora da própria propaganda neoliberal, com arruaças,
tumultos e comportamentos terroristas como os que acontecem na Bolívia,
na Venezuela, Hong Kong e Nicarágua, por exemplo, onde se colocam
travões aos mecanismos predadores do «mercado».

O despertar dos povos, nas urnas ou nas ruas, vem pôr em causa os
pilares em que assenta a democracia corrompida que serve de cobertura à
ditadura do «mercado». Quer isto dizer que os povos não só querem ter
voz como começam a exigir que esta seja ouvida e respeitada.

O que nos dizem estes levantamentos? Que ficar à espera de um
neoliberalismo democrático é o mesmo que aceitar passivamente a canga da
submissão perante a selvajaria capitalista. Realidade que é válida tanto
no exterior como no interior da União Europeia.

In
ABRIL ABRIL
https://www.abrilabril.pt/internacional/o-despertar-dos-povos
1/11/2019

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