terça-feira, 31 de março de 2020

Pandemia e socialismo




*por Prabhat Patnaik [*]

Doentes da Gripe Espanhola, 1918. Diz-se que numa crise todos se tornam
socialistas; os mercados livres passam a ocupar um lugar secundário, em
benefício dos trabalhadores. Durante a Segunda Guerra Mundial, por
exemplo, quando o racionamento universal foi introduzido na
Grã-Bretanha, o trabalhador médio tornou-se mais bem nutrido do que
antes. Da mesma forma, as empresas privadas são mandatadas para produzir
bens para o esforço de guerra, introduzindo assim um planeamento de facto.

Algo do género está a acontecer hoje sob o impacto da pandemia. Em país
após país há uma socialização da saúde e da produção de alguns bens
essenciais, a qual se afasta apreciavelmente da norma capitalista – e
quanto mais grave é a crise, maior é o grau de socialização. Assim, a
Espanha, o segundo país europeu mais atingido depois da Itália,
nacionalizou todos os hospitais privados para enfrentar a crise: todos
eles estão agora sob o controlo do governo. Até mesmo Donald Trump está
a orientar empresas privadas para produzirem bens urgentemente
necessários durante a pandemia. Endurecer o controle governamental sobre
a produção não caracteriza apenas a China do presente; marca também a
política dos EUA, para não mencionar vários países europeus.

Há uma segunda razão pela qual um mundo atingido por uma pandemia toma
um rumo aparentemente socialista. Isto tem a ver com a necessidade
forçada de um temperamento científico; e o próprio temperamento
científico é um grande passo rumo ao socialismo. A absoluta vacuidade
das "teorias" apregoadas pelas "prescrições" do [partido] Hindutva, por
exemplo, como a bosta e a urina de vaca servirem de antídotos contra o
coronavírus, são encaradas com desprezo num momento como este. Os
próprios indivíduos que apregoam tais teorias, muito sensatamente, ou
correm para os hospitais por conta própria ou são levados para os
hospitais pelos seus parentes, ao primeiro sinal de uma tosse. A
superstição revela-se cara numa tal situação. Ocorre uma mudança forçada
de atitudes que também é conducente à ideia de socialismo.

'. É verdade que a Índia está muito atrasada em relação a outros países,
tanto em termos da adopção forçada de um temperamento científico, como
em termos da volta forçada à socialização da produção e dos cuidados de
saúde. A propensão prevalecente para o kitsch ainda não foi abandonada,
apesar da crise. Durante o "toque de recolher de Janata" de Modi, em 22
de Março, por exemplo, quando ele havia apelado a cinco minutos de
toques de sinos pelos trabalhadores da saúde, entusiásticos devotos de
Modi não só estenderam o período até meia hora como até se reuniram para
manifestações barulhentas e fizeram procissões em praças enquanto
sopravam conchas, o que anulou a própria lógica do "toque de recolher",
destinado a impor o distanciamento social.

Da mesma forma, embora o governo tenha agora ampliado as instalações de
testes com a inclusão de hospitais privados, ainda não faz nos mesmos os
testes e o tratamento gratuito dos pacientes que se revelam positivos.

Mas a contínua prevalência do kitsch Hindutva tende à exclusão de um
temperamento científico. E a contínua deferência ao desejo de lucro nos
hospitais privados pode ser atribuída ao facto de até agora a crise ter
sido menos grave na Índia. Se a sua gravidade aumentar, o que se espera
que não aconteça, então a Índia também terá de mudar de atitude e seguir
o caminho da socialização tal como outros países.

Uma tendência alternativa oposta também é discernível no momento, que é
a de adoptar uma política de "mendigo-meu-vizinho". A oferta de Trump de
comprar direitos exclusivos para uma vacina que está a ser desenvolvida
pela empresa alemã CureVac capta essa tendência. Trump, por outras
palavras, estava a tentar garantir que a vacina estaria disponível
apenas para os EUA e não para outros, uma tentativa que foi negada pelo
governo alemão. Da mesma forma, a tentação, de modo algum
negligenciável, de concentrar a protecção apenas num segmento da
população e abandonar os outros – que incluiria os idosos, as mulheres e
os grupos marginalizados – aos seus destinos, é outra expressão desta
tendência. E a persistência de Trump nas sanções ao Irão, apesar de o
país ter sido muito atingido pela COVID-19, é outro exemplo óbvio desta
tendência. A ideia em todos estes casos é típica do capitalismo, a qual
é deixar os pobres e os vulneráveis à mercê da pandemia, assegurando ao
mesmo tempo que os ricos, os fortes, os bem sucedidos, permanecem
protegidos. O revés de Bernie Sanders, um socialista confesso que na
campanha eleitoral advogara cuidados de saúde universais nos EUA, só
reforçaria esta tendência.

Contudo, tal tendência tem um limite natural. A característica da actual
pandemia é que é difícil mantê-la restrita a apenas um país ou a um
segmento do mundo ou a um segmento da população. A tentativa estéril de
o fazer, na qual Trump se deleita, está condenada ao fracasso. Dizer
isto não é sugerir que a humanidade de alguma forma se moveria sem
problemas para uma nova compreensão da necessidade de ir além do
capitalismo a fim de enfrentar a crise, mas, ao contrário, que na
confusão das medidas anti-pandémicas, aquelas que vão para além do
capitalismo acabarão por ter de assumir uma posição dominante. E quanto
mais tempo perdurar a pandemia, mais verdadeiramente provável isto se
tornará.

O que esta pandemia demonstra é que enquanto a actual globalização tem
estado sob a égide do capitalismo, o capitalismo não tem os meios para
lidar com a sua propagação. O capitalismo conduziu a uma situação em que
os movimentos de mercadorias e capitais, incluindo os das finanças, se
tornaram globalizados; acreditava que as coisas podiam ficar confinadas
só a tais movimentos. Mas isso era impossível. Globalização também
significa o rápido movimento global de vírus e, portanto, o surto global
de pandemias.

Tal surto global de uma pandemia com mortalidade muito elevada havia
ocorrido só uma vez anteriormente e isso foi em 1918 com o vírus da
gripe espanhola. E esta propagou-se por todo o mundo porque ocorreu em
meio a uma guerra, quando milhares de soldados haviam cruzado milhares
de quilómetros para combater em trincheiras e depois voltaram para casa
como portadores do vírus. A guerra, em resumo, havia rompido a exclusão
nacional durante o período em que se desencadeou, provocando uma
pandemia global. O surto da SRA de 2003 afectou 26 países e embora
grave, levou a uma mortalidade estimada em 800, ao passo que a actual
pandemia já ceifou mais de dez vezes esse número.

Agora, contudo, o colapso da exclusão nacional foi incorporado ao
sistema, razão pela qual os surtos globais do tipo que estamos a
testemunhar serão fenómenos comuns na fase actual do capitalismo. E
também é por isso que os esforços do estilo Trump para restringir a
crise apenas a alguns segmentos da população e proteger outros, estão
destinados ao fracasso. Em suma, o capitalismo chegou agora a uma fase
em que as suas instituições específicas são incapazes de lidar com os
problemas por ele criados.

A pandemia é apenas um exemplo deste fenómeno. Vários outros reclamam a
nossa atenção com urgência, dos quais mencionarei apenas três. Um é a
crise económica global que não pode ser resolvida dentro das
instituições existentes do capitalismo. No mínimo, requer uma
estimulação globalmente coordenada da procura através de meios
orçamentais, por vários governos a actuarem em conjunto. Quão longe
estamos de tal coordenação global é ilustrado pelo facto de que o
principal país capitalista, os Estados Unidos, só pode pensar em
proteger sua economia para superar a crise, o que é uma abordagem de
segmentação análoga à que está a tentar no contexto da pandemia. O
segundo exemplo refere-se à mudança climática [NR] <#nr> , onde mais uma
vez o capitalismo criou uma crise que não pode resolver dentro dos
parâmetros que o definem. Meu terceiro exemplo refere-se à chamada
"crise dos refugiados" ou o movimento global dos vitimizados pelo
capitalismo com as suas guerras e também com a sua paz.

Estas crises sugerem um fim de jogo para o sistema. Elas não são
meramente episódicas: a crise económica não é uma mera recessão cíclica,
mas representa uma crise estrutural prolongada. A crise causada pelo
aquecimento global [NR] <#nr> também não é apenas um episódio temporário
que desapareceria por si só; e a pandemia mostra o perfil das coisas que
estão para vir na era da globalização capitalista, quando o mundo
inteiro será atingido por vírus em rápido movimento que afligem milhões
de pessoas, não uma vez em um século, mas com muito mais frequência.
Para que a espécie humana sobreviva a todos estes desafios, as
instituições do capitalismo são extremamente inadequadas. É necessário
um movimento rumo ao socialismo. Assim, as medidas actuais que
substituam o "mercado livre" e a motivação do lucro, embora
aparentemente apenas temporárias e de emergência, são indicadores
inconscientes.

29/Março/2020

[NR] Um falso problema, como resistir.info tem mostrado. Ver por exemplo
Acerca do chamado "aquecimento global"
<https://www.resistir.info/climatologia/ag_faqs_out19.html> .

*[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
<http://en.wikipedia.org/wiki/Prabhat_Patnaik>

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_29mar20.html
29/3/2020

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