terça-feira, 29 de setembro de 2020

As Revoluções Coloridas e alguns truísmos … (I)

 


// Carlos Luque

O imperialismo ocidental desenvolveu uma sofisticada teoria, técnica e
prática de massas (ou que pareça sê-lo). Mobiliza todo o seu arsenal
ideológico e mediático, os seus poderosíssimos meios financeiros (e a
capacidade que tem de corromper), a sua completa falta de escrúpulos e
de respeito pelos povos e pela vida humana, o seu gigantesco poderio
militar. A destruição da Jugoslávia foi em muitos aspectos o modelo
acabado dessa acção criminosa.

A história mostra que a sobrevivência de uma Revolução, ou de qualquer
sistema político e social contrário ao imperialismo depende da coesão
social e da luta unitária de dentro das instituições referendadas pelas
maiorias.

Para recolher apenas algumas das razões, sem pretender abarcar os
múltiplos aspectos do tema que dão resposta a esta questão, e com o
intuito de provocar reflexão, é necessário começar por um pouco da
história recente e do papel que desempenharam nela alguns personagens.

Gene Sharp é o “exitoso” autor de um manual que expõe 198 técnicas para
realizar uma “revolução não violenta” ou, como também é conhecida,
“suave”, ou “colorida”. (Veremos de onde vem esta última curiosa
denominação e sua relação com Cuba). Traduzidas em mais de 30 idiomas,
as técnicas foram aplicadas com sucesso, para citar apenas alguns
países, na Sérvia, Geórgia e Ucrânia.

Está irrefutavelmente documentado que os interesses norte-americanos e
europeus da NATO intervieram activa e decididamente na desintegração da
Iugoslávia de Josip Broz ‘Tito’, aproveitando os erros cometidos pelos
governos de Tito e quem lhe sucedeu após a sua morte e a desintegração
da URSS, os conflitos interétnicos dos diferentes povos que formaram a
Federação Jugoslava e os protestos sociais e estudantis que eclodiram
naquele país desde os anos 90, exacerbados, planeados e dirigidos por
figuras ligadas aos serviços de informações para aplicar os ensinamentos
de Gene Sharp.

Esta nota pode começar com vários factos e seus personagens, mas
escolhemos uma pergunta.

Quem é Srda Popovic?

Por que devemos conhecer melhor esse personagem e a história da qual é
protagonista? A resposta mais curta: é o discípulo mais destacado de
Gene Sharp. E Sharp é autor de um Manual que expõe as 198 técnicas para
realizar uma “revolução não violenta”, ou como é mais conhecida, uma
“revolução colorida”.
As técnicas descritas na obra de Gene Sharp, traduzidas em mais de 30
idiomas, foram aplicadas com sucesso, para citar apenas três exemplos:
na Sérvia, Geórgia e Ucrânia. Desde há anos que são experimentadas, com
altos e baixos, na Venezuela. Mas curiosamente, como apontam alguns
analistas, não na Colômbia, no México nem em Honduras, para citar também
três países do pátio com graves problemas de violência ou manifestações
sociais mais ou menos intensas.

A inefável Wiki, na sua secção Prémios e Reconhecimento, informa o
leitor que:
“A revista “Foreign Policy” incluiu em 2011 Popović como um dos “100
mais importantes pensadores globais” por inspirar directa e
indiretamente manifestantes na Primavera Árabe e preparar activistas em
mudança social não violenta no Médio Oriente. Em Janeiro de 2012, The
Wired incluiu Popović entre as “50 pessoas que mudarão o mundo”.
Kristian Berg Harpviken, director do Instituto Internacional de Estudos
para a Paz em Estocolmo, considerou que Popović poderia estar entre os
candidatos ao Prémio Nobel da Paz em 2012. O Fórum Económico Mundial de
Davos considerou Popović como um dos Jovens Líderes Globais em 2013.”

A actividade pela qual Srda Popovic recebeu esses prémios e
reconhecimentos está intimamente relacionada aos acontecimentos que,
desde a morte de Josip Broz ‘Tito’ em 1980, precipitaram a desintegração
da República Federativa Socialista da Jugoslávia.

É uma história que merece actualização. Porque ilustra
paradigmaticamente o que acontece naquelas regiões do planeta, como hoje
em alguns países do Médio Oriente, quando as diferenças religiosas e
étnicas e as insatisfações populares explodem em conflitos internos, mas
são potenciadas e manipuladas para balcanizar, dividir e provocar a
implosão de uma ordem política que impeça a realização dos apetites
imperialistas e capitalistas em qualquer parte do planeta.
Acontecimentos semelhantes ocorreriam posteriormente na Líbia, Iraque e
Afeganistão, e ainda hoje na Síria. E vão continuar a acontecer. Mas
podem não apenas encontrar terreno fértil nessas condições históricas e
geográficas peculiares, mas também na nossa região.

Não é conveniente que as pessoas esqueçam ou ignorem, pelo menos como
informação geral, o que são as revoluções coloridas, quais são algumas
das suas mais de cem técnicas, quando são aplicadas e, sobretudo, como
são criadas as condições internas para promover sua aplicabilidade.
Situemos o contexto.

Como a Líbia antes de ser destruída pela NATO, e os EUA nos bastidores,
a federação jugoslava não era um estado falhado. Muito pelo contrário,
durante as duas décadas anteriores a 1980, a sua economia crescia a uma
taxa média de 6,1%, a população desfrutava de assistência médica
gratuita, 91% era alfabetizada e a esperança de vida atingia os 72 anos.
O país mantinha relações com a Comunidade Europeia e com os Estados
Unidos, mas não entrou nas alianças modelo da guerra fria. Tito foi um
dos criadores do Não-Alinhamento, como país que se considerava parte do
terceiro mundo.

Enquanto existiu a URSS, era geopoliticamente conveniente ao Ocidente a
existência da RFS da Jugoslávia. Tito havia optado, ao contrário da
URSS, pela autogestão operária e, além disso, por causa dessa decisão e
de outras divergências ideológicas e políticas, o país havia sido
expulso, desde 1948, do Gabinete de Informação Comunista, o Kominform. A
ruptura com a URSS transformou a Jugoslávia numa barreira de contenção
estrategicamente localizada numa região que ia da Europa Central até ao
sul dos Balcãs.
Já com Gorbachev no poder, e com o ocidente atento e participante das
acções depois precipitariam a dissolução da URSS, começaram a ser
traçados os planos das verdadeiras intenções norte-americanas de Reagan
e da NATO na região.

Desde 1982 já existia um documento que orientava para “ampliar os
esforços para promover uma ‘revolução silenciosa’ para derrubar os
governos e partidos comunistas” e engolir os países da Europa Oriental
no sentido de uma economia de mercado, como com efeito aconteceria mais
tarde, para ir estendendo e fechando uma tenaz de bases militares cada
vez mais próxima da Rússia e da China.

Quando as condições estavam amadurecidas, em 1999 a NATO agrediu e
bombardeou a República Federal da Jugoslávia. Inauguraram as guerras que
depois repetiriam, sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU.

Durante mais de 70 dias, a partir de 24 de Março, 9.160 toneladas de
bombas começaram a cair sobre as cidades de Belgrado, Pristina, Novi Sad
e Podgorica, e por igual sobre a cabeça de militares e civis. Várias
delas, entre 10 e 45, continham urânio empobrecido. O inimigo principal
da NATO foi a população civil. Causou, conservadoramente, 1.200 mortos.
Outras fontes indicam até 2.500 vítimas e outras 5.700 civis. A
consequência geopolítica mais notória do fim desse genocídio e da
consequente fragmentação definitiva da ex-Jugoslávia, foi a mudança na
correlação de forças mundial a favor do unilateralismo imperialista e a
sua aparente vitória na Guerra Fria.

A agressão contra o povo jugoslavo começou com uma mentira e foi
premeditada. Quer isto dizer que, embora tenham sido realizadas
negociações para supostamente impedir a guerra e evitar a agressão, a
realidade foi a crónica de um fracasso anunciado: as bases das
negociações que se realizaram para supostamente impedir a guerra estavam
preparadas para que não dessem qualquer resultado positivo.

De facto, entre 6 e 23 de Fevereiro de 1999, tinham sido realizadas em
França, entre Rambouillet e Paris, negociações entre um denominado Grupo
de Contacto para a Jugoslávia, formado por quatro países membros da
NATO, mais a Rússia. Entre os documentos que norteariam a negociação
estava incluído “um Anexo B”, que a grande imprensa da época não
mencionou e que, como mais tarde se viria a saber, a Rússia não aprovava.

Se lerem alguma notícia dessa época no El País, encontrarão a afirmação
de que a NATO ficou “desconcertada” pelos os resultados dessa
negociação. Falso, pois, em resumo, o Anexo B continha uma série de
exigências totalmente inaceitáveis para o lado jugoslavo e foram
incluídas para provocar a sua previsível rejeição, o fracasso da
negociação e a fabricação do pretexto para a imediata e “inevitável”
agressão. Mesmo o genocida internacional Henry Kissinger teve que
reconhecer no The Daily Telegraph que “foi uma provocação, uma
justificação para começar o bombardeamento […] foi um documento que
nunca deveria ter sido apresentado naquela forma.”

A imprensa ao serviço dos interesses da NATO divulgava, como escreveu na
altura Francisco Fernández Buey - um dos poucos que denunciou a verdade
- que “os governantes sérvios se recusaram a assinar porque a proposta
de Rambouillet contemplava a presença das forças da NATO (mais de 30.000
soldados) no Kosovo. Mas isso é inexacto: a proposta exigia a presença
militar da NATO em todo o território jugoslavo”.
(https://elpais.com/diario/1999/05/08/opinion/926114403_850215.html)

E Fernández Buey cita a parte secreta do Apêndice B desses documentos:
“O pessoal da NATO, com os seus veículos, embarcações, aeronaves e
equipamentos, deverá poder circular livremente e sem condições em todo o
território da Federação das Repúblicas Jugoslavas, o que inclui o acesso
ao seu espaço aéreo e águas territoriais. É também incluído o direito
dessas forças de acampar, manobrar e usar qualquer área ou serviço
necessário para a manutenção, o treino e o desenvolvimento das operações
da NATO.”

E como se não bastasse, o artigo 7º do mesmo apêndice exigia também que:
“O pessoal da NATO não pode ser preso, interrogado ou detido pelas
autoridades da República Federal da Jugoslávia. Se alguma das pessoas
que fazem parte da NATO for presa ou detida por engano deverá ser
imediatamente entregue às autoridades da Aliança”.

O documento contém várias outras exigências, cada uma mais severa e
inaceitável. Mas um dos mais interessantes, o artigo 15 esclarece que
“quando se fala em serviços utilizáveis pelas forças da NATO, entende-se
a utilização plena e gratuita das redes de comunicação, o que inclui a
televisão e o direito de utilizar o campo electromagnético no seu conjunto.”
O que leva a lembrar no momento as pretensões de Google, quando
contactou Cuba com pretensões semelhantes.

Aquelas condições eram um garrote bem apertado e, portanto,
previsivelmente rejeitadas pelo lado sérvio.

Os objectivos geopolíticos daquela criminosa agressão foram amplamente
estudados e denunciados. E desdobram-se até hoje. Nas circunstâncias
daquela altura, marginalizar definitivamente uma Rússia enfraquecida,
advertir a China, dominar o acesso das rotas em direcção à Ásia Central,
com a vista posta nas matérias-primas do ouro, urânio e petróleo,
através dos Balcãs.

Como mais tarde se tornaria habitual nas preparações da opinião mundial,
campanhas de imprensa orquestraram um bombardeamento mediático prévio
para criar uma matriz credível de informação sobre o “genocídio
iminente” que o governo iugoslavo cometeria no Kosovo; começaram a
chamar “regime” ao governo, e líder “sérvio” ao seu presidente,
despojando-o da sua condição de presidente, e exacerbando as diferenças
étnicas com os croatas e kosovares.

Já desde os anos 1992, 96 e 97, começaram a recrudescer os protestos
sociais, principalmente estudantis, na Sérvia, enquanto a Croácia e a
Eslovénia proclamavam as suas aspirações de soberania. Independentemente
das razões históricas, étnicas e políticas que acompanharam as
diferentes repúblicas que tinham formado a federação jugoslava para se
oporem ao ultranacionalismo sérvio que Milosevic exacerbou em resultado
da implosão em curso da URSS para dar uma viragem de sobrevivência ao
seu governo, as revoltas e protestos contaram com a intervenção
sinérgica e a aplicação de técnicas da revolução não violenta, como o
prólogo para a criação de condições internas e internacionais, e
legitimidade internacional, para a justificação da agressão imperialista.

Em “Como exportar a democracia liberal”, a investigadora Ana Otaševic
oferece-nos alguns detalhes sobre aqueles acontecimentos e o papel
desempenhado pelas técnicas das revoluções “suaves”, não violentas de
Gene Sharp, aplicadas por Srda Popovic.
/
Fonte:
http://cubasi.cu/es/articulo-opinion/las-revoluciones-de-colores-y-algunas-verdades-de-perogrullo-i?

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/as-revolucoes-coloridas-e-alguns-truismos/
29/9/2020

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