segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Lutas Identitárias: A Esquerda em Confinamento

 
 

// Manuel Augusto Araújo


Não é de admirar a simpatia e o apoio que tantos figurões do capitalismo
dão às causas “identitárias”. Citando Asad Haider, «o enquadramento da
identidade reduz a política ao que se é como indivíduo e não à sua
participação na luta colectiva contra uma estrutura social opressora (…)
O resultado é que a política identitária paradoxalmente acaba reforçando
as mesmas normas que se dispõe a criticar.»

Os estrénuos e estrepitosos corifeus das políticas identitárias, das
causas fracturantes em que a raça, o género, o sexo, a cor são as novas
frentes de luta, consideram que a condição social, as classes sociais
dissolveram-se até ser um resíduo que não conta no mundo globalizado
pós-industrial. Essas são as bandeiras de luta da esquerda cosmopolita
que abandonou as teorias marxistas, para as quais a exploração só é
eliminada com a abolição da propriedade privada pela revolução. O seu
objectivo, ainda que camuflado por enérgicas palavras de ordem que
simulam uma radicalidade logo factualmente desmentida, é o mudar de vida
sem mudar a vida. É considerar e aceitar que a luta de classes está
ultrapassada no quadro actual do capitalismo – porque acabar com o modo
de produção capitalista, para esses radicais de esquerda, está fora de
questão. É a deriva reformista que abandona definitivamente o campo de
batalha da luta de classes, em que se luta para acabar com o
capitalismo, substituindo-a pela luta pelo controlo político das
políticas económicas, aceitando que o capitalismo mau pode evoluir para
um capitalismo bom, com a ilusão de que a burguesia acabará motivada
pelas lutas identitárias e as causas fracturantes, assumindo uma cultura
de responsabilidade social para que tudo acabe no melhor dos mundos das
virtudes públicas e vícios privados da sociedade burguesa. São
indiferentes às evidências de a democracia não ser possível no quadro
global em que as desigualdades se agravaram, aumentando exponencialmente
desde os anos 60 até ao ano de 2010, em que se contabiliza que 1% dos
mais ricos do planeta controlam 46% de toda a riqueza mundial, o que
exige da esquerda uma ampla unidade para uma luta continuada contra o
neoliberalismo, unidade que é estilhaçada pelo segmentarismo identitário
que faz o jogo da concentração do poder do dinheiro desertando do campo
de batalha entre o capital e o trabalho, da luta de classes na sua forma
actual, que tem por objectivo final acabar com a exploração capitalista
que só se elimina com a abolição da propriedade privada pela revolução.

Essa esquerda radical chique reclama-se de uma imaginação política para,
dizem eles, remobilizar a esquerda pelo crivo das lutas identitárias e
das causas fracturantes, performances mediáticas com uma forte
componente intelectual e de moda, em que a representação é um fim em si
mesma que dispensa ideologias e propostas políticas, por considerar a
luta de classes ultrapassada o que, mesmo que o não digam
explicitamente, teria o óbvio efeito de desmobilizar os partidos e os
sindicatos que são base política e social da esquerda no mundo do
trabalho. No fim da linha, desarmar a esquerda marxista que considera
contingente a realidade histórica do capitalismo. Têm a presunção
elitista de que as lutas das mulheres, dos LGBT, dos grupos étnicos,
mesmo quando fazem parte da classe trabalhadora, estão para lá da classe
trabalhadora, pelo que poderiam assumir o seu lugar nos desafios aos
poderes do capital, o que de facto significa negar que a exploração
económica existe e persiste quaisquer que sejam os avanços que das lutas
por mudanças de atitudes sociais. Um enorme equívoco dessa esquerda
cosmopolita, em que se baralham as liberdades individuais de escolha com
as liberdades que o mercado oferece. O que na aparência é uma estratégia
revolucionária para derrubar opressões que de facto existem atasca-se
num pântano de equívocos por nunca ter percebido, por miopia filistina,
que as diferenças continuarão a florescer enquanto os seres humanos
forem submetidos à exploração capitalista, pelo que, como escreve
contundentemente Raymond Williams «as políticas identitárias são um
particularismo militante que se torna uma farsa» (A Short Counter
Revolution, Towards 2000, Revisited, Raymond Williams, Sage
Publications, 2010).

Não percebe essa esquerda que, como a história abundantemente demonstra,
as sociedades capitalistas neoliberais variam entre tanto serem
limitadamente libertárias como não hesitarem em recorrer aos extremos
mais repressivos, tanto se apresentam múltiplas como monolíticas,
variando conforme as geometrias dos enquadramentos sociais, económicos e
políticos resultantes dos avanços e recuos da luta de classes, para que
a exploração da força de trabalho se mantenha intocada, pelo que o
anti-capitalismo das lutas identitárias não é mais do que um código de
barras que passa nas caixas controladas pela burguesia, que «resolveu a
dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades
bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, do
comércio. Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões
políticas e religiosas, pôs a exploração seca, directa, despudorada,
aberta» (Manifesto do Partido Comunista, Marx/Engels, Obras Escolhidas
(em três tomos), tomo I, edições Avante!, 2008).

As lutas identitárias e as causas fracturantes retomam o espalhar das
ilusões políticas de um revisionismo actualizado nas modas em uso,
considerando que os tempos revolucionários acabaram, que os grandes
combates colectivos deixaram de fazer sentido, que as frentes de luta
são as das tensões paradoxais das mutáveis relações entre as identidades
pessoais e a acção política. É o que se verifica na actualidade nas
manifestações contra o racismo nos EUA e no mundo, em que os movimentos
gerados pelo Black Lives Matter abandonaram a visão revolucionária dos
militantes do movimento de libertação negra dos Black Panthers, que viam
racismo e capitalismo como as duas faces da mesma moeda, para em seu
lugar instalarem os conceitos restritos da identidade, castradores de
qualquer estratégia revolucionária. Asad Haider, que estudou
extensamente a evolução das lutas contra o racismo nos Estados Unidos
conclui que «o enquadramento da identidade reduz a política ao que se é
como indivíduo e não à sua participação na luta colectiva contra uma
estrutura social opressora (…) O resultado é que a política identitária
paradoxalmente acaba reforçando as mesmas normas que se dispõe a
criticar.» (Mistaken Identity: Race and Class in the Age of Trump, Asad
Haider, Verso Books, 2018). O que desata o nó de outro aparente paradoxo
na luta contra o racismo nos EUA e que ecoa pelo mundo. A violência com
que os militantes do Black Panther Party foram combatidos pelo sistema
foi substituída pelos apoios concedidos ao activismo na luta contra o
racismo dos Black Lives Matter, extensível a outras grandes causas como
o feminismo, as alterações climáticas, os direitos do género, etc., por
«personalidades como Al Gore, George Soros, Mark Zuckemberg, Richard
Branson, Jeff Bezos, Bill Gates, fundações emanando de poderosos grupos
como Ford, Rockefeller, Bloomberg, Walmart, Heinz, Kellog, Lockheed
Martin, empresas como a Shell, o fundo Black Rock, os bancos JP Morgan
Chase ou Goldman Sachs distribuem os seus fartos lucros não apenas pelos
accionistas mas também por indivíduos e organizações envolvidos em
activismo por grandes causas». Em linha, a comunicação social
estipendiada, as redes sociais amplificam as imagens dessas lutas,
tratam com desvelado empenho e carinho todos esses activismos, qualquer
que seja a forma porque se apresentam, catapultando a imagem dessa
esquerda cosmopolita que reduz a política às performances identitárias
das causas fracturantes, renunciando de vez ao universalismo marxista e
à luta de classes para gáudio da plutocracia que percebe, até bem
demais, as virtudes que extrai desse reformismo que abandona a revolução
a favor do brilho das lantejoulas das constelações das causas.

A transfiguração que essa esquerda pretende fazer é rasurar a
universalidade da luta de classes que ecoa em todas as lutas:
transexuais, homossexuais, ciganos, negros, brancos, mulheres, pessoas
com deficiência, imigrantes, fragmentando-a nas lutas identitárias e nas
causas fracturantes onde ainda alguns colam o rótulo de anticapitalista,
de um anticapitalismo fora de prazo e que não é mais que um rótulo para
mascarar o seu reformismo.

Uma ideologia que não se traduza na luta de classes está condenada, na
melhor das hipóteses, ao apaziguamento da exploração capitalista
contribuindo objectivamente para a sua continuidade aceitando a sua
hegemonia e perenidade. Garantidamente acabará sempre na paralisia
política e social, ainda que contribua pontualmente para mudanças de
atitudes sociais porque, como já se referiu, uma das características
nucleares das sociedades capitalistas é adaptarem-se circunstancialmente
a ser tanto libertárias como repressivas, tanto múltiplas como
monolíticas, como a história, desde que a burguesia capitalista assumiu
o poder político, tem demonstrado ao longo dos séculos.

Há que dizer claramente que essa esquerda cosmopolita que ainda se
apresenta como radical vive em alegre contubérnio com as forças que
aparenta combater. É uma esquerda em confinamento.

Fonte:
https://mail.google.com/mail/u/0/#inbox/FMfcgxwJXxrvRrTmDCxlBWNhPBsPvSWT

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/lutas-identitarias-a-esquerda-em-confinamento/
28/9/2020

Nenhum comentário:

Postar um comentário