sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Salvador Allende cinquenta anos após a sua vitória

 



 Atilio A. Borón


Quando passa meio século sobre a eleição de Salvador Allende, há em
primeiro lugar que prestar homenagem a um homem de excepcional
integridade pessoal e política, inteiramente devotado à causa do seu
povo. O breve governo da Unidade Popular no Chile, juntamente com a
Revolução cubana, alargou o horizonte de esperança da luta dos povos da
América Latina. O seu trágico fim e a criminosa conspiração imperialista
que conduziu a ele confirma uma regra que não admite excepções: a
emancipação e o progresso exigem, onde quer que seja, o poder do povo, a
perspectiva do socialismo, e a combativa mobilização anti-imperialista
do povo inteiro.

Com a sua obra de governo e heroico sacrifício, Allende deixou um legado
extraordinário aos povos de Nossa América, sem o qual é impossível
compreender o caminho que os povos dessas latitudes começariam a
percorrer no final do século passado e que culminou com a derrota do
principal projecto geopolítico e estratégico dos Estados Unidos para a
região, o ALCA, em Mar del Plata em 2005.

Há datas que assinalam marcos indeléveis na história da Nossa América.
Hoje, 4 de Setembro, é um desses dias. Como 1 de Janeiro de 1959,
triunfo da Revolução Cubana; ou o 13 de Abril de 2002, quando o povo
venezuelano saiu às ruas e reinstalou no Palácio Miraflores um Hugo
Chávez prisioneiro dos golpistas; ou o 17 de Outubro de 1945, quando as
massas populares argentinas conseguiram a libertação do Coronel Perón e
começaram a escrever uma nova página na história nacional. A data de
hoje, objecto deste escrito, enquadra-se nessa selecta categoria de
acontecimentos épicos na América Latina. Em 1970 Salvador Allende
impunha-se nas eleições presidenciais chilenas, obtendo a primeira
minoria e derrotando o candidato da direita, Jorge Alessandri, e
relegando para o terceiro lugar Radomiro Tomic, da Democracia Cristã.
A eleição de 1970 foi a quarta eleição presidencial em que Allende
concorreu: em 1952 tinha feito a sua primeira incursão, colhendo pouco
mais de 5 por cento dos votos, muito longe do vencedor, Carlos Ibáñez
del Campo, que ganhou com quase 47 por cento dos votos. Não desanimou e,
em 1958, como candidato da FRAP, a Frente de Acção Popular, uma aliança
dos partidos socialista e comunista, recebe 29 por cento dos votos e
esteve perto de arrebatar a vitória a Jorge Alessandri, que recebeu 32
por cento dos votos.
Já naquele momento começaram a soar todos os alarmes no Departamento de
Estado, como evidenciado pelo crescente tráfego de memorandos e
telegramas relacionados com Allende e o futuro do Chile que saturava os
canais de comunicação entre Santiago e Washington. O triunfo da
Revolução Cubana projetou o FRAP como uma inesperada ameaça não só para
o Chile mas para a região, porque Salvador Allende aparecia aos olhos
dos altos funcionários em Washington – a Casa Branca, o Departamento de
Estado e a CIA - como um “extremista de esquerda” não diferente de Fidel
Castro e tão prejudicial para os interesses dos Estados Unidos como o
cubano.
À medida que se aproximava a data das cruciais eleições presidenciais de
1964, o envolvimento dos Estados Unidos na política chilena acentuou-se
exponencialmente. Relatórios anteriores de várias missões que visitaram
aquele país coincidiam em que existia uma ambivalência preocupante na
opinião pública: uma certa admiração pelo “estilo de vida americano” e o
reconhecimento do papel desempenhado pelas empresas norte-americanas
sediadas no Chile. Mas ao mesmo tempo notavam, por trás desta aparente
simpatia, uma hostilidade latente que, associada com a marcante
popularidade de Fidel Castro e da Revolução Cubana, poderia levar o país
sul-americano a um caminho revolucionário que Washington não estava
disposto a tolerar. Por isso foi descarado, torrencial e multifacetado o
apoio à candidatura da Democracia Cristã. Não só em termos financeiros
(para apoiar a campanha de Eduardo Frei), mas também em termos
diplomáticos, culturais e comunicacionais, apelando aos piores truques
de propaganda para estigmatizar Allende e a FRAP e exaltar o futuro
governo democrata-cristão como uma promissora “Revolução em Liberdade”,
por contraposição ao tão odiado (por Washington, obviamente) processo
revolucionário cubano.
Um memorando enviado por Gordon Chase a Mc.George Bundy, Conselheiro de
Segurança Nacional do Presidente Lyndon B. Johnson e datado de 19 de
Março de 1964, revela intranquilidade que a próxima eleição presidencial
chilena despertava em Washington. [] Chase sugeriu que nessa conjuntura
se abriam quatro possíveis cenários: a) uma derrota de Allende; b) uma
vitória do candidato da FRAP mas sem obter maioria absoluta, o que
permitiria manobrar no Plenário do Congresso para eleger Frei; c)
Allende poderia ser derrubado por um golpe militar, mas isso teria que
acontecer antes de ele tomar posse porque depois seria muito mais
difícil; d) Vitória de Allende. Ante essa infeliz contingência, Chase
escrevia: “estaríamos em apuros porque ele nacionalizaria as minas de
cobre e juntar-se-ia ao bloco soviético em busca de ajuda financeira” e
concluía que “devemos fazer todo o possível para que o povo apoie Frei”.
De facto, foi o que fizeram os Estados Unidos e se concretizou a tão
esperada vitória de Frei (56 por cento dos votos) sobre Allende, que
apesar da “campanha de terror” de que foi vítima obteve 39 por cento dos
votos.
A vitória da democracia cristã foi saudada em Washington com grande
alívio e como um golpe definitivo não só contra Allende e seus
companheiros, mas como a ratificação do isolamento continental da
Revolução Cubana. Mas a tão elogiada “Revolução em Liberdade” terminou
num fracasso retumbante, deixando o Palácio de La Moneda com um saldo de
pouco mais de trinta militantes ou manifestantes populares fuzilados
pelas forças de segurança. Fracasso económico, frustração política,
retrocesso na batalha cultural a tal ponto que o candidato do partido no
poder, Radomiro Tomic, teve que saltar para a arena eleitoral levantando
o slogan de um “caminho não capitalista para o desenvolvimento” para
conter a adesão crescente que as propostas socialistas da Unidade
Popular exerciam sobre o eleitorado chileno, e captar parte daqueles que
poderiam voltar-se a favor da Unidade Popular na disputa de 4 de
Setembro. Mas nesta quarta tentativa os resultados sorriram a Allende,
que apesar da fenomenal campanha de desprestígio e difamações lançada
contra ele conseguiu prevalecer, embora de forma muito apertada, sobre o
candidato da direita Jorge Alessandri: 36,2 por cento dos votos contra
34,9 do seu contendor. Estava tudo agora nas mãos do Plenário do
Congresso porque, não tendo sido alcançada a maioria absoluta, era
necessário que fosse decidido entre os dois candidatos que obtiveram o
maior número de votos. As alternativas manejadas por Washington foram as
que Chase havia concebido para a eleição anterior, e com o triunfo de
Allende agora restavam apenas duas cartas na mesa: o golpe militar
preventivo, daí o assassínio do general constitucionalista René
Schneider, ou a manipulação dos legisladores do Plenário do Congresso
(apelando à persuasão e, caso esta não desse bons resultados, ao suborno
e à extorsão) para que quebrassem a tradição e nomeassem Alessandri como
presidente. Ambos os planos fracassaram e em 4 de Novembro de 1970 o
candidato da Unidade Popular assumiu a presidência da república.
Consagrava-se assim como o primeiro presidente marxista eleito no quadro
da democracia burguesa e o primeiro a tentar avançar na construção do
socialismo mediante uma via pacífica, projecto que foi violentamente
sabotado e destruído pelo imperialismo e seus peões locais.
Apesar destes enormes obstáculos, o inacabado governo de Allende abriu
uma brecha que depois, trinta anos mais tarde, outros começariam a
percorrer. Foi um governo sitiado desde antes de entrar em La Moneda,
tendo que enfrentar um ataque brutal “da embaixada” e seus infames
aliados locais: toda a direita, a velha e a nova (a Democracia Cristã),
as corporações empresariais, as grandes empresas e seus meios de
comunicação, a hierarquia eclesiástica e um sector das camadas médias,
vítimas indefesas de um terrorismo mediático sem precedentes na América
Latina. Apesar disso, conseguiu avançar significativamente no
fortalecimento da intervenção do Estado e na planificação da economia.
Conseguiu nacionalizar o cobre por meio de uma lei aprovada quase sem
oposição no Congresso, pondo fim ao fenomenal saque praticado pelas
empresas norte-americanas com o consentimento dos governos anteriores.
Por exemplo, com um investimento inicial de cerca de 30 milhões de
dólares ao cabo de 42 anos, a Anaconda e a Kennecott enviaram para o
exterior lucros de mais de 4.000 milhões de dólares. Um escândalo!
Também colocou o carvão, o salitre e o ferro sob controlo estatal,
recuperando a estratégica siderurgia de Huachipato; acelerou a reforma
agrária concedendo terras a cerca de 200.000 camponeses em quase 4.500
propriedades e nacionalizou quase todo o sistema financeiro, a banca
privada e os seguros, adquirindo em condições vantajosas para seu país a
maioria das acções dos seus principais componentes. Também nacionalizou
a corrupta International Telegraph and Telephone (IT&T), que detinha o
monopólio das comunicações e que antes da eleição de Allende tinha
organizado e financiado, juntamente com a CIA, uma campanha terrorista
para frustrar a tomada de posse do presidente socialista []. Estas
políticas resultaram na criação de uma “área de propriedade social” onde
as principais empresas que condicionavam o desenvolvimento económico e
social do Chile (como o comércio externo; a produção e distribuição de
energia eléctrica; o transporte ferroviário, aéreo e marítimo; as
comunicações; a produção, refinação e distribuição de petróleo e seus
derivados; a siderurgia, o cimento, a petroquímica e química pesada, a
celulose e o papel) passaram a estar controladas ou, pelo menos,
fortemente reguladas pelo Estado. Todas essas impressionantes conquistas
foram realizadas em simultâneo com um programa alimentar, onde se
destacava a distribuição de meio litro de leite para as crianças.
Promoveu a saúde e a educação em todos os níveis, democratizou o acesso
à universidade e lançou um ambicioso programa cultural por meio de uma
editora estatal, Quimantú, que resultou, entre outras coisas, na
publicação de milhões de livros que foram distribuídos gratuitamente ou
a preços irrisórios.
Com a sua obra de governo e heroico sacrifício, Allende deixou um legado
extraordinário aos povos de Nossa América, sem o qual é impossível
compreender o caminho que os povos dessas latitudes começariam a
percorrer no final do século passado e que culminou com a derrota do
principal projecto geopolítico e estratégico dos Estados Unidos para a
região, o ALCA, em Mar del Plata em 2005. Allende foi, portanto, o
grande precursor do ciclo progressista e de esquerda que sacudiu a
América Latina no início deste século.
Ele também foi um anti-imperialista sem falhas e um amigo incondicional
de Fidel, do Che e da Revolução Cubana quando tal coisa equivalia a um
suicídio político e o convertia em carne de canhão para os sicário
mediáticos teleguiados a partir dos EUA. Mas Allende, um homem de uma
integridade pessoal e política exemplares, superou tão adversas
condições e abriu essa brecha que levaria às “grandes alamedas” onde as
mulheres e homens livres da Nossa América marchariam, pagando com a vida
a sua lealdade às grandes bandeiras do socialismo, da democracia e do
anti-imperialismo. Hoje, comemorando o 50º aniversário daquela vitória,
merece que o recordemos com a gratidão devida aos Pais fundadores da
Pátria Grande e a quantos inauguraram a nova etapa que conduz à Segunda
e definitiva Independência dos nossos povos.

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/salvador-allende-cinquenta-anos-apos-a/
7/9/2020

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