quarta-feira, 16 de setembro de 2020

A crise brasileira: reflexões implacáveis

 
 
*por Jorge Figueiredo *

Capa de 'Reflexões sobre a crise brasileira' /"Reflexões sobre a crise
brasileira" / [1] <#notas> , a obra mais recente de Edmilson Costa, é um
livro instigante. Tem o grande mérito de deixar de lado a pequena
política e ir às questões de fundo, àquelas que realmente interessam.
Obras como esta são uma raridade no Brasil, onde aparentemente está toda
a gente voltada para questões eleitoreiras e estritamente dentro do
quadro institucional (cada vez mais podre) em vigor. O secretário-geral
do PCB é dos poucos economistas brasileiros com perspectiva histórica e
que, numa óptica de classe definida, tem coragem suficiente para agarrar
o touro pelos cornos. Grande parte dos economistas vulgares preocupa-se
em fazer a "gestão da crise" – mas não em traçar os caminhos para a sua
superação.

Nos países da periferia a teorização disto é mais complicada do que nos
centrais. A maioria dos países que hoje são desenvolvidos fez as suas
revoluções burguesas no passado. Na Grã-Bretanha foi feita com Cromwell
(1649), em França com a Revolução de 1789, nos EUA com o fim da Guerra
de Secessão (1865), no Japão com a queda do shogunato (1868) que
liquidou o feudalismo niponico. Em alguns foi feita de cima para baixo,
como na Alemanha com a reunificação bismarckiana (de direita) e na
Itália com a unificação garibaldiana (de esquerda mas apropriada a
seguir pela direita). Mas países que chegaram atrasados na história – as
colónias e quase-colónias da Ásia, África e América Latina – não puderam
mais fazer as suas revoluções burguesas. Suas economias foram desde o
princípio orientadas para o exterior. A apropriação de grande parte do
seu excedente por potências coloniais ou imperiais impediu a criação de
burguesias locais fortes – o que gerou classes dominantes locais
dependentes e serviçais ao estrangeiro, não aos seus próprios povos. Só
alguns poucos economistas – como por exemplo Jorge Beinstein, Rui Mauro
Marini, Prabhat Patnaik, Nildo Ouriques – tiveram a lucidez de encarar
esta realidade. A maioria tem-se limitado a papaguear o que dizem
cartilhas neoliberais ou keynesianas.

Os ensaios agora reunidos por Edmilson Costa não pecam por este defeito.
Eles foram sistematizados em duas partes: a conjuntura política e a
conjuntura económica. A primeira faz uma análise da crise brasileira,
enquadrada na actual terceira crise sistémica global do capitalismo (a
primeira foi de 1873-1896 e a segunda de 1929-1945). As deficiências de
compreensão e/ou a pusilanimidade das coligações petistas, que levaram
ao /impeachment, / são ali analisados. O reflexo no Brasil da actual
fase de financiarização da crise global é o presente desmonte do Estado
brasileiro. A destruição do pouco que fora conquistado pelo seu povo
começou com a privatização da Previdência; a reforma trabalhista; as
privatizações selvagens de empresas públicas; a entrega das reservas
petrolíferas às transnacionais e das empresas estatais que as
exploravam; austeridade fiscal; a entrega da base militar de Alcântara
aos EUA, etc. Note-se que essas malfeitorias, intensificadas no governo
Bolsonaro, começaram durante governos anteriores, inclusive do PT. Por
isso mesmo, observa o autor, "o Partido dos Trabalhadores foi abandonado
pelos proletariado nas principais regiões industriais do país" (p.44).

Um tema muito comentado nos media é o da psicopatia do presidente
Bolsonaro, que o leva a cometer declarações estapafúrdias quase diárias.
No entanto, observa o autor, tais bizarrices "cumprem um papel funcional
e compõem um método de acção política da extrema-direita que também é
observado em outras partes do mundo". As suas posturas toscas e/ou
grosseiras marcam a agenda política e mediática. Elas "contribuem para
distrair a população dos verdadeiros problemas do país, como a recessão,
o desemprego, o caos nos transportes, na saúde e a incompetência do
governo em resolver esses problemas". É o circo para distrair as multidões.

Na opinião de Edmilson Costa, as classes e fracções de classe que agora
comandam o governo são três:   "a) Bolsonaro e seus filhos, pentecostais
e neopentecostais, corruptos e fascistas orgânicos;   b) militares de
direita, reacionários, saudosistas da ditadura, entreguistas e
privatistas, mas com certa racionalidade do ponto de vista da política
externa e menos bizarro do ponto de vista dos costume;  c) os
representantes da ditadura do mercado, dos grandes monopólios
industriais e de serviços, da oligarquia financeira e do agronegócio,
além da estrutura jurídica para dar feição legal às contra-reformas".
São blocos que actuam de modo unitário, embora possa haver pequenos
choques entre eles quando a política do governo fere o interesse de
alguma fracção.

*Organizar a resistência, com paciência e sem desespero *

"Trata-se de uma da conjunturas mais dramáticas da nossa história (...)
Estamos diante de uma luta de classe aberta, onde o inimigo resolveu
tirar a máscara em relação aos seus objectivos e declarar guerra à
maioria da população brasileira", afirma Edmilson (p.60). Diante deste
quadro, conclui, é preciso "organizar a resistência, com paciência e sem
desespero". Mas para isso será preciso abandonar a política de
conciliação de classe promovida pelo PT. Por isso, é de criticar
sectores da esquerda que apostam todas as suas fichas no processo
eleitoral em detrimento das manifestações populares.

A ideia actual de que a "saída" estaria numa eleição de Lula à
Presidência em 2022 é jogar areia nos olhos do povo. Para já a
possibilidade de candidatura de Lula nem sequer está garantida do ponto
de vista jurídico. Além disso, nunca se explicita o programa que seria
desenvolvido por um eventual governo Lula . A proibição da candidatura
de Evo Morales na Bolívia; o exílio do Equador do ex-presidente Rafael
Correa; o suicídio do ex-presidente do Peru, Alan García, deveriam fazer
meditar a direcção do PT que aponta ao povo caminhos "fáceis" mas
inviáveis. Mas fica a suspeita de que ela aponta tais caminhos porque
tem outros objectivos em mente: não romper com a burguesia rentista que
domina o Brasil e sim acomodar-se a ela. "Tentam criar a ilusão de que
se Lula voltar à presidência fará um governo diferente porque aprendeu
com o passado. É pura ilusão, pois se Lula ganhar novamente fará um
governo pior que o anterior, em função das condições objectivas da
conjuntura e das alianças com as mesmas forças do passado que está
costurando agora", afirma Edmilson (p. 143). Na verdade, a Revolução
Brasileira nunca será fácil e é desonestidade política apregoar o
contrário.

A segunda parte do livro, a da conjuntura económica, analisa
extensamente o capitalismo monopolista brasileiro. O grau de
monopolização indica um capitalismo maduro e desenvolvido. Isso pode ser
avaliado através de classificações como as 1000 maiores empresas, os 500
maiores grupos, etc. Examinando apenas as 100 maiores, verifica-se que
58% do conjunto de grupos são controlados por capital nacional e em 2018
eles facturaram 38% do PIB brasileiro. Os restantes 42 grupos,
controlados pelo capital internacional, foram responsáveis por 18,3% do
PIB, mas controlavam os sectores mais dinâmicos.

A análise de Edmilson rompe com a teorização antiga (e errada) do PCB de
que haveria uma burguesia nacional com interesses opostos à burguesia
internacional, o que a transformaria numa potencial aliada. Na verdade,
ambas estão estreitamente imbricadas uma com a outra numa amálgama
inseparável. Isto é ainda mais verdadeiro agora, na actual etapa da
financiarização do capitalismo. Já nem sequer se pode detectar
diferenças entre capital industrial e financeiro, pois as empresas
industriais também fazem aplicações no mercado financeiro.

Isto leva ao exame do "carácter das transformações no Brasil", em que
Edmilson conclui que "o carácter da revolução do país é socialista, não
existindo mais espaço para as chamadas lutas de libertação nacional
envolvendo todo o povo, inclusive sectores da burguesia, contra um
imperialismo externo que sufocaria as possibilidades de desenvolvimento
da nação" (p.247). E o autor recorda o triste exemplo dos governos de
aliança do PT: "a burguesia quando avaliou que o seu aliado não era mais
funcional para seus interesses, descartou-o de maneira humilhante".

O autor dedica também um capítulo à "independência do Banco Central".
Assim, constata que o BC opera com autonomia "desde o início do período
neoliberal no começo da década de 1990 e cumpriu como bom aluno aplicado
todas as determinações do Consenso de Washington" (p.250). Ou seja, o BC
do Brasil tem estado ao serviço dos rentistas, que se locupletam com
juros estratosféricos. Mas como os abutres são insaciáveis, querem
acabar até com as migalhas que eram distribuídas à população (programa
Bolsa Família, redução de pensões e de salários da função pública, etc).
As várias políticas cambiais que têm sido adoptadas (câmbio fixo, bandas
cambiais, câmbio flutuante) são igualmente analisadas por Edmilson.

"A oligarquia financeira tomou a chave do cofre" é o título do capítulo
15. Verifica-se que a crise económica, social e política brasileira
mudou de patamar com o impeachment da presidente Dilma Rousseff. A
partir daí, o poder foi usurpado por uma gangue de oligarcas corruptos,
cujos principais personagens dominam o Parlamento brasileiro e vários
escalões da administração. Ao seu lado estão os "ladrões de casaca que
tomaram de assalto todos os ministérios da área económica e social para
impor aos trabalhadores uma violenta regressão social e a entrega do
património público e das riquezas nacionais para os monopólios nacionais
e internacionais", constata Edmilson (p.265).

*O mimetismo do PT *

No Brasil chamam de "ajuste fiscal" aquilo que na Europa é denominado de
"austeridade fiscal". É do que trata o capítulo 16, cujo título
significativo diz que foi feita para "cevar os banqueiros e rentistas".
Aqui se analisa o fenómeno do "mimetismo", processo da natureza em que
animais procuram camuflar-se, adaptar-se e confundir-se com o meio
ambiente ou outras espécies. Mas na vida política trata-se de "um
fenómeno degenerado que transforma as organizações políticas e sociais
em instrumentos inteiramente diferentes que pregavam no início da sua
existência, mudam de plumagem, de programa e objectivos e levam seus
militantes e simpatizantes a frustrações, acomodação, além de derrota
moral e política", observa Edmilson. E conclui: "Esse fenómeno serve
como uma luva para a trajectória do Partido dos Trabalhadores (PT) nos
últimos 20 anos e, especialmente, desde que assumiu o governo, há 12
anos. Como um camaleão proletário, exerceu seu mimetismo de maneira
impressionante, ao se adaptar de tal forma ao sistema que passou a ser
um dos seus principais organismos, se não o principal, da ordem que
antes dizia combater" (p.285).

O penúltimo capítulo intitula-se "Paulo Guedes, um assassino social a
serviço dos rentistas". A caracterização é justa, pois todo o curriculum
vitae do sr. Guedes tem sido no campo da especulação financeira, como
Chicago boy e colaborador de Pinochet. Na verdade, pode-se dizer que ele
é medíocre pois pouco sabe de gestão macroeconómica – nunca cuidou
disso. Economistas burgueses como Delfim Netto, o autor do chamado
"milagre" no tempo da ditadura militar-empresarial, sabe mais dormindo
de gestão de política económica do que o sr. Guedes acordado. Mas na
verdade isso pouco importa:   ele não foi nomeado ministro para gerir de
facto a economia e sim para fazer o trabalho sujo pretendido pela classe
parasitária. A um magarefe não se exige grande ciência.

Finalmente, o livro conclui com uma análise aos 20 anos do Plano Real, a
nova moeda introduzida no governo F.H. Cardoso em substituição ao antigo
Cruzeiro. "Foi uma tragédia para o conjunto dos trabalhadores e para a
economia nacional. Em contrapartida, um paraíso para os banqueiros
nacionais e internacionais, os especuladores financeiros, os grandes
monopolistas e o agronegócio", afirma Edmilson (p.331).

15/Setembro/2020

[1] Ed. Instituto Caio Prado Jr., S. Paulo, 2020, 360 p., ISBN
978-65-87543-01-7

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/jf/resenha_rcb_set20.html#notas
16/9/2020

Nenhum comentário:

Postar um comentário