– É de recear uma retaliação sangrenta
*por Ollie Vargas [*]
Conhecida como região de Chapare, o Trópico de Cochabamba é um santuário
do presidente eleito Evo Morales pois tem ali a sua mais dedicada base
de apoio. Desde o golpe de 10 de Novembro
<https://thegrayzone.com/2019/12/05/middle-class-bolivia-learned-love-coup/>
a região tornou-se efectivamente um território em auto-governo de onde a
junta militar está ausente.
A polícia e os militares foram totalmente retirados desta área no
princípio do golpe
<https://thegrayzone.com/2019/11/14/oas-us-coup-bolivia-evo-morales/> e
disseram-lhes que o seu retorno só seria bem-vindo se se "ajoelhassem e
pedissem desculpas" à comunidade.
Nesta faixa de terra de 12 mil quilómetros quadrados, centenas de
sindicatos floresceram ao longo dos anos. Passei vários dias com as
bases sindicais, a testemunhar como elas dirigem a sociedade de um modo
colectivo e como organizaram uma resistência feroz ao governo golpista
de extrema-direita que ameaça destruí-los.
Apesar da resiliência exibida aqui, há também uma sensação de temor.
Líderes sindicais contaram-me que se o estado decidir militarizar a
região, como tem ameaçado
<https://www.la-razon.com/nacional/Chapare-Gobierno-plan-Policia-FFAA-Gobierno_0_3276872313.html>
, um banho de sangue é praticamente inevitável. Se uma irrupção violenta
acontecer, ela poderia desfazer a estrutura social que eles têm estado a
construir tenazmente ao longo de décadas.
*Transformar a região *
Chapare sempre teve um alto grau de auto-governo, devido às necessidades
da comunidade. Quando os governos neoliberais bolivianos da década de
1980 encerraram um grande número de minas estatais em Oruro e Potosi,
muitos trabalhadores rurais "relocalizados" nesta região tropical
dedicaram-se ao plantio de coca e outras culturas.
A presença de antigos trabalhadores mineiros, que tomaram parte nas
lutas revolucionárias
<https://www.facebook.com/teleSUREnglish/videos/1470703153069260/> dos
sindicatos de mineiros da Bolívia, incutiu nas comunidades indígenas
camponesas uma tradição proletária radical.
Um sindicato de Chapare denominado Llalagua, em homenagem a uma das
maiores antigas cidades mineiras no Norte de Potosi.
A relocalização, contudo, esteve longe de ser um processo suave. Os EUA
naquele tempo estavam a agravar a sua chamada "guerra às drogas",
utilizando-a como pretexto para intervir militarmente na América Latina.
A DEA (Drug Enforcemente Administration) associou-se aos militares
bolivianos para declarar guerra aos camponeses e tentava erradicar a coca.
Os comandantes naquele esforço foram agentes da DEA, as tropas
bolivianas serviam como infantaria à sua disposição
<https://movimientos.org/es/albasi/show_text.php3%3Fkey%3D19142> . Foi
dado tanto poder à DEA que ela podia determinar
<http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/clacso-crop/20120710080915/05tres.pdf>
quem podia entrar e sair da área.
Foi durante as lutas contra a presença dos EUA que Evo Morales ascendeu
ao topo das estruturas sindicais em Chapare. E na confrontação com a DEA
e os militares bolivianos desenvolveu-se um nível de organização
extraordinário.
Hoje, há seis federações sindicais na região e dentro de cada federação
há numerosas "centrais", desde umas poucas até 30. Dentro de cada
central há vários sindicatos, até 10, conforme a dimensão da comunidade.
E cada sindicato tem aproximadamente 100 a 200 membros.
Os sindicatos têm base geográfica, de modo que cada pequena localidade é
um sindicato. Famílias inteiras estão incorporadas nos sindicatos com
base na sua parcela de terra. O número total de sindicatos em Chapare é
da ordem de centenas, embora seja difícil especificar a cifra exacta
porque o número e a dimensão variam muito conforme a localização.
Devido à fraca presença do estado, os sindicatos organizam a maior parte
dos aspectos da vida diária. Eles estabelecem planos para projectos de
infraestrutura, administram a terra e disputas sociais na comunidade,
gerem os media locais e, naturalmente, organizam as actividades
políticas dos camponeses.
Em 2006 o então presidente Evo Morales iniciou um esforço impetuoso de
reforma agrária, trazendo grandes territórios para as mãos dos
trabalhadores e libertando membros do sindicato de relacionamentos
exploradores com os seus antigos latifundiários.
Os sindicatos não abandonarão facilmente estas vitórias.
*Assumindo o golpe *
Desde o golpe, esta resistência de Chapare com base sindical assumiu o
papel de policiamento.
Em 10 de Novembro, quando ficou claro que o golpe havia subjugado o
governo eleito de Evo
<https://thegrayzone.com/2019/12/15/mas-regroups-bolivia-coup-leaders-eating-alive/>
, a polícia cautelosamente fugiu da área, escapando para a cidade
vizinha de Cochabamba.
Os responsáveis do golpe sabiam que a organização social era tão sólida
em Chapare que eles nunca seriam capazes de conter a resistência. E
estavam certos. Após a imposição do golpe, quase todas as esquadras de
polícia na região ficaram sob o ataque da população local.
Israel, um jornalista local numa estação sindical chamada Radio
Kawsachun Coca, explicou: "O povo estava tão enraivecido que ninguém
podia travá-lo".
Israel reflectia o que disse pouco depois Senobio Carlos, o presidente
da municipalidade de Puerto Villaroel. "Nós nunca dissemos à polícia e
aos militares para sair; eles fugiram", disse Carlos. "De facto, houve
uma base militar em que os soldados não conseguiram sair antes de os
manifestantes bloquearem todas as saídas. Eu pessoalmente fui lá e
disse-lhes que garantiria a sua segurança se se juntassem à comunidade e
não virassem suas armas contra nós".
Carlos disse que foi alcunhado de traidor pela sua própria comunidade
por tentar negociar com os soldados, os quais choramingavam por
misericórdia. Desde então, a posição da comunidade endureceu-se. Líderes
sindicais agora dizem que a polícia é totalmente desnecessária e só pode
voltar se "se ajoelharem e pedirem perdão
<https://www.lostiempos.com/actualidad/pais/20191208/policia-chapare-antes-que-pida-perdon-rodillas>
".
Com as forças de segurança golpistas expulsas da área, os trabalhadores
estabeleceram aquilo a que chamam a polícia sindical, sob o comando da
comunidade. Conheci-os quando estavam a fazer guarda numa reunião
sindical e estavam sem quaisquer armas, além de alguns bastões. Eles
foram seleccionados pela comunidade e eram plenamente responsáveis
perante ela.
*A polícia sindical *
Toda a gente com quem falei em Chapare parecia contente com a ausência
da polícia do estado na área. Um membro da municipalidade, Limbert, da
cidade local de Ivirgarzama, disse: "Agora estamos mesmo mais seguros
sem a polícia. Eles costumavam cobrar portagens ilegais aos motoristas
de camião; emboscavam pessoas que estavam voltando para casa à noite e
roubavam seus telefones. Agora não temos isso; qualquer um pode passear
em segurança no Trópico.
Ainda assim, algumas bases militares permaneceram intactas na região. Lá
dentro, adolescentes locais estão a cumpri seu serviço militar.
Quando o golpe se desencadeou, informou uma jornalista local chamada
Sabina, os pais desses jovens cercaram a base militar e pediram aos
filhos que não ficassem do lado do golpe.
Desde então, as tropas têm estado activas, mas concordam em permanecer
apenas dentro de sua base. Todas as outras unidades militares fugiram.
*Haverá um massacre à frente? *
Embora a polícia não tenha sido capaz de entrar outra vez na região, o
governo golpista tem tentado punir os residentes de Chapare por
expulsá-la. A junta cortou todos os serviços do banco público, Banco
Union, o qual na maior parte da região é o único banco nacional com
caixas multibanco (ATMs).
Além disso, o ministro do Interior do regime, Arturo Murillo, ameaçou
negar a todo o Chapare o direito de votar em quaisquer próximas eleições
– a menos que os seus residentes permitam a reentrada da polícia.
O polícia leal a Murillo, cuja alcunha é El Bolas (que significa "aquele
com bolas", em referência à sua postura machista e atitude violenta),
anunciou que estão a preparar-se para "entrar, em conjunto com as forças
armadas, no Trópic. de Cochabamba, a fim de estabelecer o estado de
direito nesta área". Eles ainda não explicaram exactamente como o fariam
isso, mas o único caminho possível seria através da invasão e ocupação
militare.
"A polícia não pode voltar, o povo não a aceitará", disse Segundina
Orellana. Quando lhe perguntei o que se poderia fazer para combater uma
potencial invasão ela disse que a região se levantaria e esperava que
isso empurraria o resto do país a fazer o mesmo.
Não é difícil ver porque a comunidade não aceita o retorno da polícia.
Em 15 de Novembro, membros do sindicato desta região estavam a marchar
rumo à cidade de Cochabamba e foram baleados por oficiais, alguns a
partir de helicópteros. Nove foram mortos naquele dia, no que agora é
conhecido como o massacre de Sacaba.
*A guerra de informação dos media bolivianos intensifica-se *
Chapare é uma das mais demonizadas regiões do país. Os media de
referência bolivianos habitualmente retratam a sua população como um
conjunto de narco-terroristas, lançando afirmações sem provas, como o
mito de militantes colombianos das FARC controlam os protestos
<https://www.lostiempos.com/actualidad/pais/20191121/mercenarios-similares-narcos-terroristas-lideran-conflictos>
.
A realidade é totalmente oposta, pois a produção de coca foi realmente
reduzida <https://twitter.com/OVargas52/status/1206196787142373376> sob
o governo Evo, enquanto ela disparou em países aliados dos EUA como o
Peru e a Colômbia.
Os próprios sindicatos da Bolívia desempenham um papel nisso pois
asseguram que a produção é controlada e destinada aos usos tradicionais.
De facto, a maior parte dos chamados /cocaleros / (plantadores de coca)
também produzem frutas, arroz, queijo e outros produtos agrícolas.
A sua comunidade beneficiou-se com a inundação de projectos de
infraestrutura pública e de investimentos em serviços públicos sob o
governo Evo Morales. Mas agora tudo isso acabou. Mas eles ainda estão
ali, tão determinados como sempre no seu compromisso com o partido do
presidente eleito, o Movimiento al Socialismo (MAS).
Apesar de os media da oposição e as ONG favoráveis à mudança de regime
afirmarem que os moradores daqui actuam por serem obrigados pelos
líderes sindicais, a realidade é exactamente o oposto. De facto, os
membros dos sindicatos habitualmente são mais radicais do que os seus
dirigentes.
Fui a numerosas reuniões sindicais com um líder da federação chamado
Julian Cruz e vi como ele foi forçado pela sua base a explicar porque
não era um traidor por negociar um acordo de paz com o regime saído do
golpe.
A natureza participativa deste movimento é notável. Julian explicou-me
como ele tem de comparecer a todas as reuniões de todas as centrais
sindicais dentro da sua federação e que, se não o fizer, os membros do
sindicato o levarão para a selva e "amarrar-me-ão a uma árvore durante
24 horas" como punição por falta de transparência.
Poucos sindicatos nos Estados Unidos ou na América do Norte como um todo
podem contar com esse nível de engajamento popular.
Ao observar a campanha dos media contra os camponeses de Chiapas
sente-se que esta demonização é um prelúdio ao banho de sangue.
A reportagem dos media do massacre de Sacaba foi instrutiva, pois a
imprensa nacional falsamente falsificou a matança como um caso de " fogo
cruzado
<https://www.paginasiete.bo/nacional/2019/11/16/fuego-cruzado-entre-cocaleros-ffaa-deja-al-menos-seis-muertos-237561.html>
". Apoiantes do golpe apontam para esta cobertura unilateral como prova
de que não houve carnificina, mas sim um choque armado com cocaleros
narco-terroristas.
A falta de provas de que os manifestantes estavam desarmados e de que
nem um único polícia tenha morrido é de pouca importância para os medida
determinados a travar uma guerra de informação.
"Os media dizem que somos terroristas armados, mas na realidade não
temos nada para nos defender se os militares atacarem", explicou um
jovem camponês chamado Eleuterio Zurita, que ofereceu protecção a
jornalistas. "O objectivo de um ataque seria romper a organização
sindical que temos aqui, assim espero que o mundo possa nos apoiar e
mostrar a verdade".
*Mapear um caminho de volta ao poder *
A natureza autónoma de Chapare surgiu da necessidade prática de sustento
e autodefesa, não de uma devoção à ideologia anarquista. Actualmente
todos os sindicatos estão a realizar reuniões de emergência, não para
discutir a administração dos assuntos locais, mas sim para delinear uma
estratégia sobre como enfrentar o golpe nacionalmente e, assim,
recuperar o poder do estado.
Em todas as reuniões a que compareci, membros do sindicato aprovaram uma
resolução comprometendo-se a contribuir com doações da base para a
campanha do MAS, não para ser usada aqui, mas pelas secções do MAS em
outras partes do país onde o partido não é tão forte.
Foi assim que o MAS floresceu desde seus primeiros dias. Portanto, seria
difícil imaginar o partido a propor uma lista eleitoral que não
contivesse uma manifestação desta tradição organizadora.
Os próximos dias e semanas determinarão se este espaço radical de
resistência será afogado em sangue pela junta boliviana. Se ele
sobreviver, será a base a partir da qual a esquerda ressuscitará seu
projecto nacional.
In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/bolivia/chapare_27dez19.html
27/12/2019
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