quarta-feira, 13 de maio de 2020

O que é 'capital fictício'?




*por Marx Memorial Library *

O "ouro das fadas" nas fábulas infantis é dinheiro mágico – uma fortuna
que logo se desfaz e se revela como folhas, poeira ou lixo inútil. Mais
coloquialmente, é a riqueza precária ou ilusória que pode desvanecer-se
tão rapidamente quanto é adquirida. Esse foi certamente o caso de alguns
especuladores na sequência da crise bancária global de 2007-2008.

As vítimas reais, é claro, foram famílias comuns da classe trabalhadora
que em consequência perderam suas poupanças, suas casas, seus empregos
e, por vezes, suas vidas.

A crise não foi algum tipo de aberração. Marx destacou que, embora as
crises sejam inerentes ao capitalismo, as que envolvem o que ele chamou
de "capital fictício", um subconjunto do capital financeiro, eram centrais.

Para a maioria das pessoas capital financeiro significa dinheiro, ou
melhor, dinheiro no banco para além do que é necessário à sobrevivência
e que potencialmente possa ser investido para ganhar mais dinheiro. A
maioria das pessoas não tem muito dele e aquele que têm não lhes rende
muitos juros.

Mas algumas pessoas têm aos montes, corporações e bancos têm ainda mais.
Por vezes eles investem em capital "produtivo": matérias-primas,
energia, materiais e serviços e, acima de tudo, maquinaria (os "meios de
produção") e na força de trabalho dos trabalhadores que empregam.

Marx chamou a isto de "capital real" ao lado de "capital monetário" – os
fundos reais utilizados. Isto permite-lhes produzirem uma mercadoria
cuja venda realiza um lucro – mais capital financeiro – o qual pode ou
não ser reinvestido.

O "Capital fictício" é diferente. O capitalismo depende do crédito e da
dívida. Sempre dependeu. Se você contrair um empréstimo – comprar alguma
coisa com o seu cartão de crédito por exemplo (dois séculos atrás
poderia ter sido um empréstimo de um agiota para comprar sementes ou
ferramentas), tem de trabalhar para reembolsá-lo – com juros. O dono de
uma fábrica que contrai um empréstimo para expandir está a "apostar" o
seu reembolso com a exploração de futuros empregados.

O que há de novo hoje é o domínio global da financiarização – e o facto
de que uma proporção crescente do capital financeiro é, para usar o
termo de Marx, "fictícia".

Hoje, o "capital fictício" é independente da produção real de
mercadorias (bens ou serviços). No fundo, ele consiste essencialmente de
"pretensões" /("claims") / financeiras sobre bens e serviços que ainda
não foram produzidos (e que poderão nunca virem a ser produzidos), a
promessa de ganhos futuros com base na mais-valia criada por
trabalhadores que ainda não foram empregados.

Inclui acções, quotas e outros valores mobiliários, os quais, disse
Marx, são "meramente um título de propriedade de uma porção
correspondente da mais-valia a ser realizada por ela" – conferindo
essencialmente ao seu possuidor uma participação em lucros futuros, uma
fatia do valor apropriado do trabalho daqueles que o produziram.

O capital fictício de hoje envolve a invenção de produtos financeiros
"em papel" (na verdade electrónicos) cada vez mais complexos, tais como
derivativos, activos titularizados e hipotecas em moeda estrangeira,
tudo inimaginável na época de Marx e cada vez mais distanciado da
produção de mercadorias físicas.

A tecnologia financeira ou "fintech" – o reforço automatizado dos
serviços financeiros – é um dos principais focos de inovação e de
investimento global, particularmente na Grã-Bretanha pós-Brexit, onde o
investimento especulativo dobrou no ano passado para cerca de £37,5 mil
milhões.

Hás exemplos que vão desde plataformas de /crowdfunding/
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Financiamento_coletivo> (empresas como
Kickstarter e GoFundMe), passando por aplicativos inteligentes de
investimento e negociação de acções, até novas blockchain e criptomoedas.

Marx não apenas cunhou o termo "capital fictício" como dedicou bastante
esforço a analisá-lo. Um capítulo intitulado /Crédito, capital fictício
e crise / no volume III de /O capital / demonstra como o capitalismo se
torna cada vez mais dependente do crédito e da dívida como
elementos-chave do capital fictício.

Hoje, crédito e dívida – desde o saldo do seu cartão de crédito até à
dívida nacional – são fundamentais para o capitalismo. Ao nível
individual, agências de cobrança perseguem os devedores por conta de um
credor.

Mas o próprio crédito é uma mercadoria: ele é comprado e vendido. E se
bastantes pessoas incumprirem, há um problema.

A par da dívida e muitas vezes intimamente ligada a ela, particularmente
desde o colapso de 2008, uma componente cada vez mais importante do
capital fictício é o "capital morto", tipificado por propriedades vazias
e pelo "banco" de terras para desenvolvimento, com valor de uso não
realizado, não produzindo renda mas a valorizar-se em termos de valor de
troca – e produzindo um "lucro" nocional para seus proprietários – a
cada dia que passa.

O lucro está ali, certo, mas o capital físico real e sua capacidade de
produzir produtos úteis não mudou absolutamente nada.

A parte "fictícia" do capital fictício geralmente só se torna visível
publicamente num momento de crise, mais particularmente durante o
colapso de uma companhia ou de um banco, quando o capital social ou o
"dinheiro" depositado (pelo qual o investidor tem um recibo) se torna
sem valor.

Naquilo em que a crise actual difere das anteriores é no papel do Estado
a intervir para salvar o sistema económico. Sem isto, o consenso – tanto
da direita quanto da esquerda – era que teria entrado em colapso na sua
totalidade. E, naturalmente, a "prosperidade" que [a intervenção]
retornou é restrita a um número relativamente pequeno de indivíduos.

A intervenção do Estado para salvar a economia não é nada de novo.
Engels ressalta (em nota de rodapé do volume III de O Capital) que o
Banco da Inglaterra era capaz de "emitir qualquer quantidade de notas
bancárias, independentemente da reserva de ouro em seu poder; portanto,
de criar uma quantidade arbitrária de capital fictício em papel-moeda e
de usá-lo para o objectivo de fazer empréstimos a bancos, corretores de
câmbio e, por meio deles, ao comércio".

A partir da década de 1930, o "padrão ouro" foi abandonado (inicialmente
nos EUA a fim de acabar com a Grande Depressão) para ser substituído por
"moeda fiduciária" /("fiat money") / – moeda emitida por governos mas
não vinculado a qualquer activo específico, cujo "valor" é
essencialmente uma questão de fé e que pode ser usada para comprar
alguma coisa.

"As reservas fraccionais da banca" – a prática normal pela qual as
reservas mantidas por um banco são apenas uma fracção de seus passivos
para com os depositantes (o que permite que a oferta de moeda cresça
para além da base monetária criada pelo banco central) significa que o
estado tem de actuar como prestamista de último instância para esses
bancos comerciais.

Em consequência, na crise de 2007-8 o Banco da Inglaterra criou moeda
nova, electronicamente, a partir do nada, um processo chamado
"facilidade quantitativa" /("quantitative easing", QE). /

Parte dela – cerca de 45 mil milhões de libras – foi usada para
"comprar" acções do RBS [Royal Bank of Scotland], agora avaliadas em
menos da metade do que o contribuinte pagou por elas. E quantias muito
mais altas foram supostamente "injectadas" na economia – não através do
investimento directo na produção, transportes, educação ou serviços de
saúde, mas sim na recompra de títulos dos bancos comerciais, que então
ficavam livres para usar o dinheiro como quisessem.

A QE continua a crescer – de £200 mil milhões em 2009 para cerca de £435
mil milhões em 2018. Os valores foram ainda maiores no ano passado, a
fim de combater os efeitos do Brexit – cerca de um quarto do PIB da
Grã-Bretanha.

E após a pandemia do Covid-19 eles provavelmente crescerão ainda mais,
pois a moeda, injectado supostamente para apoiar a produção, o emprego e
os serviços essenciais, acaba por escorar um sistema financeiro
fracassado, grande parte do qual em paraísos fiscais além-mar.

O "capital fictício" escora o sistema capitalista à custa de cortes
cruéis em serviços de educação, saúde e bem-estar, níveis crescentes de
dívida pessoal e institucional (incluindo governos nacional e locais),
exploração acrescida para os trabalhadores e desigualdade crescente. O
fardo, como sempre, recai sobre as pessoas comuns.

11/Maio/2020

*Respostas anteriores (este é o número 63) podem ser encontradas em
https://tinyurl.com/FullMarx <https://tinyurl.com/FullMarx> .

O próximo curso on-line da Biblioteca Memorial Marx e da Escola dos
Trabalhadores, Sindicatos, Classe e Poder começa na segunda-feira 18 de
Maio. Pormenores em https://tinyurl.com/MMLOnlineLearning
<https://tinyurl.com/MMLOnlineLearning> .

Ver também:
# Capital fictício <http://resistir.info/crise/capital_ficticio2.html> ,
L. N. Krasavina
# Reflexões sobre a crise
<https://www.resistir.info/crise/remy_nov12_p.html> , Remy Herrera
# Alucinações circulatórias da moeda e do capital fechando o ciclo
<https://www.resistir.info/financas/alucinacoes_18ago19.html> , José
Martins
# Criptomoedas: do fetichismo do ouro ao hayekgold
<https://www.resistir.info/financas/criptomoedas_vf.html> , Paulo
Nakatani e Gustavo Moura de Cavalcanti Mello
# Não, o coronavirus não é o responsável pela queda das cotações bolsistas
<https://www.resistir.info/financas/coronavirus_04mar20.html> , Eric
Toussaint
# Roubo ou exploração?
<https://www.resistir.info/crise/roberts_13set19.html> , Michael Roberts
# O capital fictício, como a finança se apropria do nosso futuro
<https://www.resistir.info/v_carvalho/capital_ficticio_11mar15.html> ,
Daniel Vaz de Carvalho
# Crise: algumas perguntas e respostas
<https://www.resistir.info/jf/crise_faq.html> , Jorge Figueiredo
# **La crisis global y el capital ficticio
<http://resistir.info/livros/crisis_global_y_capital_ficticio.pdf> ,
Consuelo Silva Flores e Claudio Lara Cortés

O original encontra-se em
morningstaronline.co.uk/article/f/what-is-fictitious-capital
<https://morningstaronline.co.uk/article/f/what-is-fictitious-capital> *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/crise/capital_ficticio3.html
13/5/2020

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