sexta-feira, 1 de maio de 2020

Uma bela história de vírus (contra a virofobia ambiente...)



       por Guillaume Suing [*] 

       Entre 1915 e 1917, o biólogo autodidata Felix D'Herelle [1] descobriu uma
      nova forma de combate a epidemias, a "fagoterapia", a trabalhar para o
      Instituto Pasteur. Foi uma verdadeira revolução médica, uma promessa
      considerável para a investigação: D'Herelle utiliza contra estirpes de
       bactérias infecciosas variedades particulares de vírus chamados
       bacteriófagos, variedades seleccionadas a partir de uma rica
       biodiversidade natural ainda mal descoberta. Na natureza, mesmo que o
       fenómeno seja discreto à nossa escala, metade das bactérias do planeta é
      morta por estes bacteriófagos nas águas estagnadas ou residuais.

       De modo geral, os vírus são sem dúvida as formas de vida mais primitivas
      e as mais minúsculas (uma vez que escapam ao alcance dos microscópios
      ópticos clássicos), muito mais pequenas do que as bactérias, elas próprias
      muito menores do que as chamadas células "eucariótas" (que possuem um
      núcleo) das quais somos compostos.

       Os vírus são tão pequenos e primitivos (apenas alguns genes envoltos numa
      pequena casca de proteína inerte, ela própria coberta com moléculas que
      aderem às células-alvo) que muitos biólogos ainda as afastam do
      "dicionário" dos seres vivos, acreditando poder decidir à priori, por
      critérios arbitrários, a lista precisa. Os séculos XX e XXI já o
       confirmaram abundantemente: a biodiversidade dos vírus é imensa. De tal
      modo imensa que grande parte deles permanecem desconhecidos para nós
      porque, em vez de infectarem as nossas células, infectam... bactérias! Foi
      isolando múltiplas estirpes de tais bacteriófagos que Felix D'Herelle se
      tornou conhecido, desde o seu primeiro êxito contra a bactéria responsável
      pela disenteria.

       Evidentemente, se é preciso isolar, para cada estirpe de bactéria
       infecciosa, uma estirpe específica de bacteriófago dirigido contra ela, o
      trabalho dos biólogos prometia ser colossal e altamente dispendioso (em
      dinheiro mas também em energia e trabalho colectivo gasto)... e quando, em
      1928, Alexander Flemming descobre uma substância, a penicilina, capaz de
      destruir um espectro muito vasto de bactérias com um custo mais baixo e a
      possibilidade de um processo industrial relativamente simples, a escolha
      dos investidores ocidentais não se fez esperar. Era preciso evidentemente
      avançar com tudo o que podiam neste novo mercado sumarento dos
      antibióticos e remeter rapidamente para o museu os métodos arcaicos do
      Doutor D'Herelle.

       Não se trata aqui de desqualificar os imensos avanços ligados aos
       antibióticos, evidentemente, mas de fazer um balanço numa altura em que
      os investigadores médicos estão encostados à parede, uma vez que a maior
      parte das bactérias infecciosas adquiriu, sobretudo pela utilização mais
      do que maciça de antibióticos na criação intensiva, resistências múltiplas
      e duradouras à maior parte dos antibióticos actualmente conhecidos.

       Desde há alguns anos, numerosos investigadores ocidentais e numerosos
       doentes ocidentais insensíveis aos antibióticos e correndo um grande
      perigo, viajam a Tíflis, Geórgia, para beneficiarem da fagoterapia...
      Tíflis?

       Nos anos trinta, posto em quarentena no Ocidente, onde se instalava o
      reino dos antibióticos, D'Herelle foi acolhido na Geórgia com o seu aluno
      e colega soviético George Eliava, onde a sua fama foi indiscutível até ao
      final do século XX. Ele foi celebrado com os mais famosos (Oparin,
      Vernadski, Williams, Pavlov, Korolev, etc) como herói da ciência soviética
      e, tal como muitos destes sábios de renome que receberam medalhas da URSS,
      não era comunista – o que merece ser assinalado nestes tempos de confusão
      ideológica em que a ciência ocidental se apresenta como a mais
       "pragmática"... mas que frequentemente funciona com anátemas, lutas de
      interesses e guerras políticas entre laboratórios para obter
      financiamentos.

       "Na URSS, creio que a aplicação de maneira geral neste país do método dos
      tratamentos das doenças infecciosas pelo bacteriófago vai estar na origem
      de uma verdadeira revolução terapêutica", havia declarado D'Herelle com
       esperança. E se o homem hoje está caído no esquecimento entre nós, o
      centro Eliava de Tíflis passava a concentrar as esperanças de todos os
      infectologistas do planeta... Durante décadas, pacientemente, o poder
      soviético continuou a inventariar, patentear e reunir neste centro (e em
      outros no território soviético) todas as infecções bacterianas conhecidas
      ou novas que se manifestavam desde a Ucrânia até Vladivostoque,
       correlacionadas com uma estirpe de bacteriófago específicos isolados e
      concebidos como tratamento antibacteriano.

       No fundo desta história há uma "necessidade" dialéctica envolvendo o
      "acaso" da descoberta do primeiro bacteriófago, assim como a da penicilina
      a cair sobre um vaso de Petri em que Fleming cultivava bactérias foi a
      centelha do imenso mercado dos antibióticos (e dos lobbies e monopólios
      farmacêuticos assassinos), até os nossos dias. Mas esta necessidade,
      curiosamente, lança luz sobre uma abordagem fundamentalmente diferente da
       investigação científica (do ponto de vista do que se investia maciçamente
      com dinheiros públicos) entre o Oriente e o Ocidente.

       De um lado, no Ocidente, o que conta é sobretudo o curto prazo, o
       rentável, o tecnicamente reprodutível e o processo de produção mais
      simples e mais padronizado possível. É este o caso da indústria
      farmacêutica, voltada essencialmente para a produção de moléculas como os
       antibióticos, preferindo – para caricaturar – a química (de facto, a
      bioquímica) à biologia, o estável ao instável, a fixidês à evolução, o
       reducionismo ao holismo, o unidireccional à interacção e ao sistémico.

       Do outro lado, a Leste, investiu-se mais na biologia, biodiversidade, no
      vivo e nas propriedades já estabelecidas ao longo de milhões de anos de
       evolução, ao invés do efeito específico que tem sido absolutamente (e em
      vão) controlado e fixado. Em suma, uma abordagem dialéctica e dinâmica é
      tipicamente encontrada no Leste, mesmo entre os sábios não comunistas,
      enquanto no Ocidente, pelo contrário, encontra-se nas correntes dominantes
      um espírito reducionista, binário, em suma, mecanicista (a do "tudo
      genético" foi o mais sintomática até há pouco tempo).

       Pode-se encontrar na agronomia um duplo exemplo desta contradição
       epistemológica. No ocidente, em meados do século XX, voltou-se tudo para
      a química dos adubos e dos pesticidas (para a agricultura, utilizáveis
      quaisquer que fossem o solo e o clima, no momento que se desenvolveu
      suficientemente a monocultura intensiva) quando, no Leste [antes de
       Kruchov], em 1948 lançava-se o mais vasto plano de agroflorestação e de
      policultura da história, na base de um conhecimento agrobiológico do solo
      e das suas propriedades vitais, tudo sem pesticidas (conhecidos por
      destruírem cegamente toda vida que anima o solo). Os "auxiliares de
      cultura" (os insectos capazes de lutar contra parasitas que afectam as
      culturas, como prescreve por exemplo a permacultura) eram ali claramente
      preferidos às moléculas inertes que destroem não selectivamente toda forma
      de vida do solo). Do mesmo modo, o imenso banco soviético de sementes
      vegetais endémicas do mundo inteiro, criado pelo geneticista Vavilov e
      seus colaboradores antes da guerra, favorecia uma agrobiologia humilde e
      baseada no que existe, nas potencialidades do próprio mundo vivo,
      resultado de uma paciente e engenhosa evolução.

       Por outro lado, a pecuária no Ocidente desenvolveu-se sobre a indústria
      química (hormonas e antibióticos) com as consequências que hoje se
      conhecem (a maior parte das resistências aos antibióticos resulta
      nomeadamente da sua utilização maciça na pecuária intensiva por toda a
      parte do mundo). Visivelmente no Leste, pelo menos na medicina, apoiou-se
      sobre a imensa mas restritiva biodiversidade dos bacteriófagos, ao invés
      dos antibióticos, embora estes últimos naturalmente também tenham sido
      produzidos e prescritos.

       A agroecologia soviética pré-Khruchoviana ou (actualmente) a cubana
      assenta numa grande variedade de sementes endémicas (que o catálogo
      standard da Bayer Monsanto actualmente proscreve em toda a parte do
      mundo), possivelmente "reeducadas" para uma ou outra condição ambiental
      local, bem como auxiliares de culturas mais eficientes por serem o produto
      de uma evolução milenar e não de uns poucos testes realizados à pressa,
      estabilizados em vão para o "todo terreno" (como o glifosato utilizado em
      todo o mundo, qualquer que seja o solo e o clima). A agroquímica
      ocidental, como se sabe hoje (e se lamenta), é a sua antítese teórica e
      prática.

       Trazida progressivamente à razão, hoje encostada à parede, a ciência mais
      financiada (a ocidental) faz a sua autocrítica. Mesmo do ponto de vista da
      saúde, os antibióticos foram usados de tal modo pelo agrobusiness e pelas
      prescrições fáceis em medicina, que ao procurar alternativas críveis se
      redescobre, de modo bem mais dialéctico, não só os avanços da fagoterapia
      soviética (ocultando a sua origem) como também as benfeitorias do " 
      microbiota " (tão atacada pelos antibióticos, pelo business da
       substituição do leite materno e outros produtos triunfantes da indústria
      química), incluindo a manutenção do sistema imunitário e, portanto, da
      saúde humana.

       Esta é de facto uma atitude mais humilde face às imensas possibilidades
      ecológicas (no sentido científico do termo) que a ciência tenta agora
      ultrapassar os limites que se havia fixado por excesso de idealismo
      durante o século XX. Assim, apoia-se agora sobre a descoberta do
      microbiota (o conjunto dos microrganismos que vivem "com" cada um de nós e
      nos protegem de muitas bactérias indesejáveis, se os antibióticos não as
      tiverem sistematicamente destruído) para lutar contra as bactérias
       patogénicas – e o "higienismo" muito mecanicista dos anos 60 está agora a
      dar lugar a uma atitude mais sistémica em relação ao mundo dos
      microrganismos e do nosso sistema imunitário, que é agora visto como um
      complexo mini-ecosistema a respeitar e até a reforçar, ao invés de
       "substituir".

       E O COVID-19? 

       E o COVID-19 nisso tudo? Numerosas pandemias são não bacterianas mas sim
      virais e é o que este coronavírus hoje nos recorda cruelmente.
      Evidentemente, se muitos vírus são inofensivos (e mesmo úteis), como
      certas bactérias do nosso microbiota, alguns no passado causaram os piores
      danos às populações humanas. E desta vez, nada de antibióticos! Os
      antivirais são muito mais complexos e dependem sempre, de uma forma mais
      dialéctica, das potencialidades do próprio sistema imunitário humano, já
       adaptado em muitos aspectos à luta antivíral pela sua própria evolução e
      memória. É evidente que, neste domínio, não deixarão de surgir descobertas
       revolucionárias, a começar pelas complexas interacções que poderão
      eventualmente existir entre vírus "bons" e "maus" no meio natural que o
      homem domina actualmente, apoiando-se talvez nuns contra os outros. Estas
      descobertas não devem tardar a chegar, pois, estando tudo ligado num mundo
      material em constante evolução, com ou sem nós, o actual aquecimento
      climático está, como um efeito colateral mal conhecido, a descongelar um
      enorme permafrost árctico no qual adormeciam milhares de vírus antigos que
      a memória imunitária humana desde há muito esqueceu. As pandemias do tipo
      COVID-19 não deixarão portanto de se repetir e, perante uma investigação
      centrada unicamente na "química", frequentemente hostil à "biologia" (que
      é mais complexa e difícil de apreender ou de comercializar), a realidade
      infelizmente não perdoará qualquer erro.

       Onde os laboratórios de investigação ocidentais tentam produzir um
      medicamento único e patenteável para cada doença, de um modo idealista e
      reducionista, já percebemos, em plena pandemia, que a investigação
      pioneira chinesa ou cubana aposta, de uma forma inteiramente heterodoxa,
      no  "drug repositionning",  ou seja, na possibilidade de utilizar uma
      molécula contra patologias não relacionadas com o alvo original. O
      interferon alfa 2B recentemente reciclado pelos cubanos contra o COVID 19,
      o medicamento antipalúdico do tipo cloroquina testado para os conoravírus
      desde há vários anos na China, são exemplos bastante claros, ilustrando
       uma abordagem sistémica, não reducionista e, portanto, "dialéctica" da
      investigação médica. E é sem dúvida assim que devemos agora pensar a nossa
       "guerra" contra os agentes infecciosos: eles evoluem e adaptam-se?
       Utilizemos nós também a evolução das nossas armas e contra-fogos
      biológicos ao invés de acreditar cada vez no "remédio milagroso".

       É igualmente a necessidade que hoje desenvolve o  "drug repositionning", 
      uma vez que, apesar dos investimentos cada vez mais maciços, as novas
       moléculas descobertas na investigação médica estão a tornar-se cada vez
      mais raras: Com a globalização capitalista, toda epidemia está agora
      destinada a tornar-se uma pandemia, e todo agente infeccioso, maciça e
      rapidamente exposto à menor molécula antibacteriana ou antiviral, tem
      todas as oportunidades de evoluir, sofrer mutações e de sobreviver para se
       recompor durante um período de latência crucial (uma vez que a descoberta
      de uma vacina leva um certo tempo).

       De modo geral, agora é bastante claro que, enquanto os países
       capitalistas desmantelaram pacientemente os seus sistemas de saúde por
       não serem rentáveis a curto prazo, os países que emergiram do campo
      socialista, embora órfãos da União Soviética, ilustram-se por uma política
      totalmente inversa: Em Cuba a saúde faz parte das prioridades absolutas,
      com um número incalculável de médicos que fazem o país famoso (não é mais
      belo, mais humano, exportar conhecimentos saber ou saber fazer ao invés de
      produtos de consumo?) No triturador social europeu, é mesmo Cuba, a China
      e a Venezuela, e não Bruxelas, a que se apela por ajuda!

       A China, por seu lado, venceu o vírus através de um considerável esforço
      estatal que nenhum país entre os mais ricos do mundo é capaz de aplicar.
      Mesmo em tempos de "paz" sanitária, o socialismo sempre se preocupou em
      garantir a protecção sanitária das populações a qualquer preço: Todo
      edifício público, mesmo as escolas, era concebido para se tornar um
      hospital em caso de emergência e os serviços médicos eram implantados nos
      menores recantos do território, com um sistema de cuidados de saúde
      totalmente gratuito.

       A situação escandalosa em que o capitalismo liberal coloca toda a
       humanidade só com esta pandemia não está apenas em conflito com a
      superioridade do socialismo em matéria de protecção da saúde: É a própria
       investigação que é apontada a dedo, a montante.

       É provável que a China seja o primeiro país a desenvolver uma vacina
      contra a COVID-19, mas antes disso, os primeiros países a proporem
      tratamentos antivirais por reposicionamento de emergência foram Cuba
      (Interferon alfa 2B) e a China (cloroquina em particular), enquanto os
       intermináveis debates em França paralisam as decisões sobre o que poderia
      deter a catástrofe, devido a conflitos de interesses e querelas de ego...

       Não seria a ciência guiada pela "competição" estimulante entre egos de
      avental branco, mas por investimentos maciços do Estado e pelo trabalho
      colectivo dos funcionários? Que descoberta!

       Daí até um dia se admitir que mais "materialismo" e mais "dialéctica"
      acelera os avanços científicos ao invés de os retardar com "dogmatismo
      pró-soviético arcaico ", o prazo sem dúvida ainda será bem longo...

       Hoje, mais do que nunca, os nossos inimigos não são nem os vírus nem as
      bactérias, mas sim aqueles que – pelo chamariz do lucro – destroem as
      nossas melhores armas colectivas contra eles!


      27/Março/2020

       [1] Ver  Wikipedia ,  Enciclopédia Britânica 

       Ver também:
        Eliava Institute

      [*] Professor agregado de Ciências da Vida e da Terra.   Autor de
      Evolution: La preuve par Marx (2016), L'Ecologie réelle, une expérience
      soviétique et cubaine (2018), editora DELGA.

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/pandemia/suing_27mar20.html#asterisco
27/4/2020

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