sexta-feira, 15 de maio de 2020

Uma escalada militar, em meio à “crise pandêmica”




 por José Luís Fiori
  e William Nozaki

Esse movimento se tornou mais veloz depois que o governo de Donald Trump
passou a atacar e destruir suas antigas alianças, e todos os consensos
éticos, culturais e institucionais que ordenaram o mundo durante o
século XX.


Eu gostaria de enfatizar que qualquer ataque de um submarino americano
de mísseis balísticos, independentemente de suas características, será
percebido como um ataque com armas nucleares. E, de acordo com nossa
doutrina militar, uma ação desse tipo seria considerada motivo para uso
retaliatório de armas nucleares pela Rússia./


Quando a China identificou a existência da epidemia do coronavírus, em
dezembro de 2019, o mundo já estava sob pressão de duas grandes forças
ou tendências internacionais de longo prazo, e altamente corrosivas: a
da “saturação sistêmica”[3] <#_ftn3> e a da “fragmentação ética”[4]
<#_ftn4> em escala global. Desde seu nascimento na Europa, durante o
“longo século XVI” (1450-1650), o “sistema interestatal” expandiu-se de
forma contínua, e de maneira cada vez mais acelerada, até alcançar sua
plena globalização no final do século XX, em uma história que não foi
linear. Esta envolveu uma competição e uma belicosidade quase
permanentes entre seus Estados, que aumentaram seu poder, individual e
coletivamente, na forma de grandes “explosões expansivas”, como a que
estamos vivendo no início do século XXI. Essas “explosões expansivas”
começaram no século passado, com a plena incorporação de grandes
unidades territoriais, como foi o caso da Índia, e depois da China e da
Rússia, em um sistema composto por 60 Estados ao fim da Segunda Guerra,
e que hoje conta com cerca de 200 membros. No passado, quando ocorreram
explosões similares, provocadas pelo aumento da pressão competitiva,
elas foram acompanhadas, invariavelmente, de um aumento da desordem
interna do sistema, de um movimento expansivo deste para fora de suas
antigas fronteiras e, finalmente, de algum tipo de “guerra hegemônica”
que ajudou a refazer a ordem e a hierarquia do sistema, depois de sua
expansão dentro e fora da Europa. E tudo indica, neste início do século
XXI, que a própria tendência à “fragmentação ética” do sistema mundial –
em pleno curso – torne o atual processo de explosão e entropia o mais
amplo da História.

Esse movimento se tornou mais veloz depois que o governo de Donald Trump
passou a atacar e destruir suas antigas alianças, e todos os consensos
éticos, culturais e institucionais que ordenaram o mundo durante o
século XX. Ele abriu mão de uma liderança ética mundial que os Estados
Unidos conquistaram depois da Segunda Guerra, deixando o sistema mundial
sem um poder de arbitragem em última instância, o que deverá se
prolongar depois desta crise, desenhando um mundo sem nenhum tipo de
“/pax/” americana, chinesa, russa, ou mesmo europeia. Neste sentido, se
pode afirmar que existe uma alta probabilidade de que o mundo esteja
marchando na direção de uma “guerra hegemônica”, inevitável no longo
prazo, mesmo que não se possa dizer quando e onde ela ocorrerá.


Foi sobre esse “pano de fundo” que se instalou a pandemia do
coronavírus, junto com a “crise do petróleo”, provocando uma devastação
imediata na economia mundial, com consequências que devem se prolongar
pelos próximos anos. Hoje já existe total consenso sobre a gravidade
desta crise, e já é possível antecipar algumas de suas consequências
econômicas. No entanto, ainda não se tem dado a devida atenção a uma
série de outros acontecimentos na área militar, que têm se desenvolvido,
inclusive, como consequência provável da própria “crise bioeconômica”,
em particular nas três grandes potências capazes de alterar o rumo do
sistema mundial através de suas decisões de responsabilidade
exclusivamente nacional.

A China, onde a epidemia foi identificada, foi o primeiro país a
experimentar o seu impacto econômico, com a interrupção da produção,
aumento do desemprego e a ruptura de todos os seus circuitos e fluxos
econômicos da produção e do crédito. E foi também o primeiro país a
sofrer o impacto político e militar da epidemia, com o enfraquecimento
inicial do governo de Xi Jiping, que depois retoma as rédeas da situação
com o sucesso de sua política sanitária e começa  imediatamente um
movimento  de  afirmação do poder militar chinês no Mar do Sul da China,
com o surgimento dentro da própria China de setores nacionalistas que
volta a propor a ocupação militar imediata de Taiwan. É sabido que  a
China construiu, nos últimos anos uma frota significativa  de navios de
guerra, submarinos, barcos anfíbios e  hoje já dispõe da capacidade de
destruir, com mísseis DF-21, qualquer embarcação que navegue a menos de
1.500 km de suas costas, o que tornaria possível uma ofensiva imediata
sobre Taiwan, apesar de que ela tenha sido rejeitada pelo governo de Xi
Jiping..

No caso da Rússia, o impacto imediato da crise foi ainda mais violento
do que na China, devido à dependência fiscal russa do preço
internacional do petróleo. E tudo indica que a crise desencadeou ou
acelerou uma disputa interna de poder, dentro e fora do Kremlin,
envolvendo setores ultraliberais que ainda controlam o Banco Central e
as grandes empresas privadas, e setores nacionalistas e militaristas que
também estão defendendo uma espécie de “fuga para frente” militar, na
direção do Báltico, da Bielorússia e da própria Ucrânia. Ninguém mais
duvida que a Rússia já recuperou sua posição de liderança militar na
fronteira tecnológica do desenvolvimento de novas armas estratégicas,
com mísseis e armas submarinas hipersônicas que lhe dão uma capacidade
de resposta avassaladora, no caso em que se sinta ameaçada.

O mesmo vem acontecendo, de forma ainda mais extensa e visível, nos
Estados Unidos, neste momento em que se sentem atacados e fragilizados
pelo avanço gigantesco da epidemia e da crise econômica em seu
território, e por culpa – em grande medida – do próprio governo de
Donald Trump. Este desqualificou a ameaça epidêmica e agora terá que
enfrentar uma tentativa de reeleição presidencial que parecia
assegurada, mas que já não está mais tão fácil, em uma sociedade que
ficou ainda mais dividida e polarizada com o avanço da epidemia e da
crise econômica. É exatamente isso que parece explicar o grande
movimento de reafirmação do poder militar norte-americano em curso em
todo o mundo e de forma absolutamente explícita. Seja no Golfo Pérsico,
onde os Estados Unidos aumentaram recentemente seu poder de fogo, com um
sistema de drones mais modernos e letais (como é o caso do MQ-9 Reaper),
junto com um exército de 80 mil homens, agora distribuídos em torno do
Irã. E o mesmo está acontecendo na região do Oceano Glacial Ártico, no
Mar de Barents, onde a frota naval norte-americana ingressou nas últimas
semanas pela primeira vez desde 1980. No mesmo momento em que os EUA e a
OTAN realizavam exercícios militares no Mar Báltico, utilizando
bombardeiros B-1B supersônicos e com capacidade nuclear, junto com o
anúncio da instalação de um novo sistema de foguetes na Europa Central,
próximo da fronteira ocidental da Rússia. O mesmo vem se repetindo no
Mar do Japão, no Mar do Sul da China, e mais recentemente, no próprio
Caribe, com o deslocamento de navios de guerra, /destroyers/, submarinos
e aeronaves de vigilância, que se somaram à IV Frota, e a pressão
constante dos Estados Unidos contra o governo venezuelano de Nicolas Maduro.

Tudo isso poderia parecer uma mera “jactância” americana, feita com o
objetivo ostensivo de escapar de problemas internos através da
reafirmação da superioridade militar global inconteste dos Estados
Unidos. Sobretudo porque Estados Unidos, China e Rússia, em particular,
teriam grande dificuldade econômica de enfrentar uma guerra frontal
neste momento, e provavelmente ainda por alguns anos. Mas é exatamente
neste ponto que aconteceu, nas últimas semanas, uma mudança militar
capaz de alterar radicalmente todas as perspectivas e prognósticos futuros.

Foi exatamente aí que as coisas se complicaram, com o anúncio recente de
uma “mudança operacional” promovida simultaneamente pelas Forças Armadas
norte-americanas e russas. Em primeiro lugar, o governo dos EUA anunciou
que já haviam tornado operacional o uso de uma bomba nuclear de “baixa
intensidade”, com uma potência equivalente a um terço da bomba de
Hiroshima (5 kilotons). Além disso, a nova arma, W76-2, seria instalada
nos mísseis Trident utilizados pelos 14 submarinos USS Tennesse da frota
americana, e poderia ser utilizada pelas Forças Armadas norte-americanas
no caso de conflitos ou guerras “limitadas” ou “regionais”. Em seguida,
os EUA anunciaram um exercício militar com simulação de uma guerra
nuclear limitada contra a Rússia. E foi como resposta a esse anúncio, e
em particular a esse exercício militar americano, que a porta-voz do
Departamento de Assuntos Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova,
declarou que a Rússia responderia com um ataque nuclear maciço contra os
Estados Unidos caso algum submarino americano fizesse qualquer tipo de
lançamento de míssil, independentemente de este carregar ogivas atômicas
ou não. A partir desse momento, a prática do “/bullying/ militar” contra
países considerados adversários ou estratégicos, por parte dos Estados
Unidos, transformou-se num jogo extremamente perigoso.

Não é difícil de calcular as consequências dessa simples “mudança
operacional”, num mundo em plena transformação, provocada por sua
“saturação sistêmica” e “fragmentação ética”, sem contar com qualquer
tipo de instituição, autoridade ou poder capaz de arbitrar divergências,
e sem nenhum tipo de liderança com legitimidade universal. Num mundo
como este, esgotada a diplomacia, só restam as armas, e a partir de
agora qualquer falha involuntária ou erro de cálculo pode transformar um
conflito regional numa catástrofe de grandes proporções. Isto vale para
o Golfo Pérsico, bem como para o Mar do Sul da China, e também para o
Caribe, dada a disputa entre os Estados Unidos e a Venezuela, que
envolve ainda os interesses econômicos da China e a proteção militar da
Rússia.

Normalmente, seria muito pouco provável que os Estados Unidos aceitassem
ou iniciassem uma escalada atômica dentro do seu próprio “hemisfério
ocidental” e junto de suas fronteiras. De fato, é muito pouco provável,
mas não é impossível, porque uma vez anunciada a decisão de resposta
mútua com armas nucleares limitadas, entre EUA e Rússia, já não se pode
excluir a possibilidade, mesmo que remota, de um conflito atômico, ainda
que acidental, no Caribe e na Amazônia Sul-Americana.


A simples existência dessa possibilidade obriga a uma mudança radical da
sociedade brasileira com relação a suas próprias Forças Armadas, que não
têm representação, nem o direito de impor aos brasileiros a vassalagem
militar com relação aos Estados Unidos, pois isso pode induzir o Brasil
e os brasileiros a cometer um crime abominável contra seu próprio povo,
contra seus irmãos latino-americanos, e contra toda a humanidade.

Maio de 2020

[1] <#_ftnref1> Professor titular do Programa de Pós-graduação em
Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e do Programa de
Pós-Graduação em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), Coordenador
do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do
Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ; pesquisador do
Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis
(INEEP).

[2] <#_ftnref2> Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de
São Paulo (FESPSP) e diretor técnico do Instituto de Estudos
Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).

[3] <#_ftnref3> J.L.Fiori. /O Poder Global e a Nova Geopolítica das
Nações/. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 40.

[4] <#_ftnref4> J.L.Fiori. “Ética cultural e guerra infinita” in /Sobre
a Guerra/. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 398.

In
GGN
https://jornalggn.com.br/artigos/uma-escalada-militar-em-meio-a-crise-pandemica-por-jose-luis-fiori-e-william-nozaki/
15/5/2020

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