quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Mudança de paradigma na Palestina

 

 

Thierry Meyssan

O conflito sangrento que começou na Palestina geográfica acontece após
75 anos de mortíferas injustiças. Do ponto de vista do Direito
Internacional, os Palestinianos tem o direito e o dever de resistir à
ocupação israelita, tal como os Israelitas tem o direito e o dever de
responder ao ataque que sofrem. É da responsabilidade de todos ajudar a
resolver as injustiças de que os dois grupos são vítimas, o que não
significa apoiar a vingança cruel de alguns deles.
Além disso, o apoio que se possa dar aos povos palestiniano e israelita
não deve levar a amnistiar os seus respectivos dirigentes pelos crimes
que cometeram, nem as grandes potências que os manipularam.

*O Primeiro-Ministro israelita, Benjamin Netanyahu anuncia que Israel
está em guerra. Pela primeira vez na sua história, o Estado hebreu é
atacado no seu próprio território. Primeiro, ele vai “limpá-lo” , depois
lançará uma guerra contra-insurreição em Gaza, no do modelo da « batalha
de Argel » e da « operação Fénix » no Vietname : Tratar-se-á de uma
guerra muito suja, mortífera e ilimitada. Israel poderá restabelecer a
ordem em seu proveito, mas jamais poderá vencer. *

O Próximo-Oriente é um universo instável no qual muitos grupos se
enfrentam para sobreviver. Para simplificar, consideramos no Ocidente
que a sua população se compõe de judeus, cristãos e muçulmanos, mas a
realidade é muito mais complexa. Cada religião compõe-se ela própria de
uma infinidade de crenças. Por exemplo, na Europa e no Magrebe, estamos
cientes que os cristãos se dividem em Igreja Católica, Igrejas Ortodoxas
e Igrejas Protestantes, mas no Médio-Oriente existem dezenas e dezenas
de Igrejas diferentes. A mesma constatação é verdadeira no seio das
religiões judaica e muçulmana.

Cada vez que uma peça é modificada no tabuleiro, todos os outros grupos
têm de se reposicionar. É por isso que os aliados de hoje, serão talvez
os inimigos de amanhã, enquanto os inimigos de hoje eram os nossos
aliados de ontem. Ao longo dos séculos, todos se tornaram
simultaneamente vítimas e carrascos. Os estrangeiros que vão ao
Médio-Oriente identificam-se a priori com pessoas que têm a mesma
cultura que eles, a mesma fé, mas ignoram a sua história e não estão
preparados para a aceitar.

Se quisermos promover a paz, não devemos escutar unicamente aqueles de
quem nos sentimos próximos. Temos que admitir que a paz supõe resolver
não só as injustiças de que sofrem os nossos amigos, mas também as de
que sofrem os nossos inimigos. Ora, não é isso que fazemos
espontaneamente. Assim, nos meses precedentes, em França, ouvimos
exclusivamente o ponto de vista de certos Ucranianos face aos Russos, de
certos Arménios face aos Azeris e agora de certos
Israelitas(Israelenses-br) face aos Palestinianos.

Finalmente, entre as múltiplas fontes às quais podemos recorrer, devemos
distinguir aquelas que defendem os seus interesses materiais imediatos,
aquelas que defendem a sua pátria e aquelas que defendem princípios.
Contudo, as coisas são complicadas por grupos, não religiosos, mas
teocráticos. Estes últimos não defendem nenhum princípio superior, antes
utilizam uma linguagem religiosa para vencer.

Fixando estes pontos prévios, vamos aos factos.

O Hamas atacou Israel em 7 de Outubro de 2023, às 6 horas da manhã, quer
dizer, por ocasião do 50º aniversário da «Guerra de Outubro de 73»,
conhecida no Ocidente pelo nome israelita de «Guerra do Kippur». À
época, o Egipto e a Síria atacaram Israel de surpresa para ir em auxílio
dos Palestinianos. Mas Telavive, informada por Amã e apoiada por
Washington, esmagou os exércitos árabes. Anwar el-Sadat traíra os seus,
enquanto a Síria acabou perdendo o Golã.

A operação actual combina em simultâneo uma chuva de foguetes,
destinados a saturar a Cúpula de Ferro, e 22 ataques terrestres em
território israelita. Pela primeira vez na Palestina, os disparos de
foguetes foram dirigidos sobre centros de comando israelitas de maneira
a favorecer as acções dos comandos. Estas últimas são oficialmente
destinadas a fazer reféns de modo a poder negociar a sua troca com os 1.
256 detidos palestinianos em prisões de alta segurança. As infiltrações
tiveram lugar simultaneamente por via terrestre, marítima e aérea (com
ultraleves).

A preparação desta operação, a obtenção de Inteligência, a formação de
um milhar comandos e a transferência de armas exigiram meses, senão anos
de trabalho. Ora, cegos pela nossa convicção de superioridade, não o
vimos. Ela foi, portanto, concebida por Mohammad Daif, o chefe
operacional do Hamas, que havia desaparecido dos radares durante dois
anos e reapareceu ao lado do porta-voz do Hamas, « Abu-Obaida ».

Conseguindo detectar os foguetes, mas incapaz de os destruir a todos,
Israel encaixou pelo menos 3. 000 dos 7. 000 disparados. As redes
sociais e os canais de televisão árabes mostraram que o Hamas capturou
vários tanques e pelo menos o posto fronteiriço a Oeste da Faixa. Além
disso, ele atacou uma “rave party” no Kibutz Re’im, onde violou e
massacrou pelo menos 280 participantes. Por todo o lado, sequestrou um
grande número de reféns, incluindo generais. Os seus comandos penetraram
em várias cidades israelitas, disparando de metralhadora sobre os
moradores. Listam-se pelo menos 700 mortos e 2. 200 feridos graves do
lado israelita, o dobro do lado palestiniano.

Trata-se da mais importante acção palestiniana desde há meio século.
O que se passa é o fruto de 75 anos de opressão e de violação do Direito
Internacional. Dezenas de Resoluções do Conselho de Segurança das Nações
Unidas foram violadas por Israel, sem nenhuma sanção a respeito. Israel
é um Estado fora da Lei que não hesitou em corromper ou assassinar a
quasi-totalidade dos dirigentes políticos palestinianos.
Deliberadamente, ele impediu o desenvolvimento económico dos
Territórios, ao mesmo tempo favorecendo a criação de um Estado
palestiniano separado que controla parcialmente.

A frustração e o sofrimento acumulados ao longo de 75 anos traduzem-se
em comportamentos violentos e cruéis de alguns Palestinianos, cientes de
terem sido há muito tempo abandonados pela Comunidade internacional. No
entanto, os tempos mudam. A maioria dos membros das Nações Unidas, que
puderam constatar na Síria e na Ucrânia o falhanço militar dos
Ocidentais e a vitória da Rússia, já não se limitam a baixar a cabeça
perante os Estados Unidos. A Assembleia Geral reafirmou, por ocasião do
aniversário da autoproclamação da independência de Israel e do massacre
e expulsão dos Palestinianos (a Nakhba), que o Direito Internacional
está do lado dos Palestinianos e não dos Israelitas. O que não impede o
Hamas de cometer crimes de guerra.

A actual situação é uma situação sem saída para os dois campos. Após
três quartos de século de crimes, Israel já não pode fingir grande
coisa. A sua população está agora dividida. Durante os últimos meses, os
«sionistas negacionistas», isto é, os discípulos do Ucraniano Vladimir
Jabotinsky, favoráveis ao supremacismo judaico, tomaram o poder em
Telavive apesar da oposição de uma pequena maioria da população e de
gigantescas manifestações. Os seus jovens, que aspiram a viver em paz,
recusam servir nas Forças Armadas para brutalizar os árabes, mas ainda
assim juntaram-se a elas para defender as suas famílias que amam e o seu
país, no qual não acreditam.

Pelo Direito, os Palestinianos formaram um Estado, que obteve o estatuto
de observador nas Nações Unidas. À morte de Yasser Arafat, o chefe da
Fatah, Mahmud Abbas, foi eleito Presidente. Contudo, no seguimento da
vitória do Hamas nas eleições legislativas de 2007 e na impossibilidade
de fazer aceitar aos Ocidentais um governo do Hamas, os Palestinianos
envolveram-se numa guerra civil. Em resumo, a Cisjordânia é governada
pela Fatah, o Partido laico criado por Yasser Arafat. Mahmud Abbas e os
seus próximos são financiados pelos Estados Unidos, pela União Europeia
e por Israel. Enquanto a Faixa de Gaza está nas mãos do Hamas, quer
dizer, do ramo palestiniano da Confraria dos Irmãos Muçulmanos. Ela é
governada por indivíduos que não concebem o Islão do ponto de vista
espiritual, mas como uma arma de conquista. Eles são financiados
sobretudo pelo Reino Unido, Catar, Israel, Turquia, Irão e União
Europeia. Desde há 16 anos, os dois campos opuseram-se a quaisquer novas
eleições. Os seus dirigentes vivem num luxo mafioso que contrasta com as
condições de vida miseráveis do seu povo.

Aquando da sua criação, o Hamas era financiado pelo Reino Unido. Ele foi
apoiado pelos Serviços Secretos israelitas para enfraquecer a Fatah de
Yasser Arafat. Depois Israel combateu-o e assassinou o seu líder
religioso, o Xeque Ahmed Yassine. A seguir, de novo Israel usou o Hamas
para eliminar os dirigentes da Resistência palestiniana marxista, desta
vez. Assim, combatentes do Hamas enquadrados por agentes da Mossad e
jiadistas da Alcaida atacaram o campo palestiniano de Yarmuk no início
da guerra contra a Síria [1 <#nb1>]. Mas hoje, uma vez mais, o Hamas
combate o seu aliado de ontem, Israel.

Mohammad Daif é conhecido por ser o fundador das brigadas Izz al-Din
al-Qassam. Como todos os Irmãos Muçulmanos, ele é um supremacista
islâmico. Ele refere-se a Izz al-Din al-Qassam (1882-1935), um opositor
do mandato francês no Líbano e do mandato britânico na Palestina.
Portanto, ele não tem qualquer inspiração no antigo Mufti de Jerusalém e
aliado dos nazis, Amin al-Husseini, embora partilhe o seu
“anti-semitismo”. Em 2010 ele escrevia : «As Brigadas Izz ad-Din
al-Qassam... estão mais bem preparadas para continuar na nossa via
exclusiva onde não há alternativa, e é o caminho da jihad e da luta
contra os inimigos da nação e da humanidade muçulmana.... Dizemos aos
nossos inimigos : vós seguis pelo caminho da extinção (zawal), e a
Palestina ficará sendo nossa, incluindo Al Qods (Jerusalém), Al -Aqsa
(mesquita), as suas cidades e aldeias desde o mar ( Mediterrâneo) até ao
rio (Jordânia), do Norte até ao Sul. Vós não tendes direito a nem tanto
como um centímetro disso ». Mohammad Daif não é um militar, mas sim um
especialista em captura de reféns. A sua operação foi concebida para
este fim e não para libertar a Palestina.

No momento em que a saúde do Presidente Mahmud Abbas se deteriora, a
Fatah está dividida em três facções militares :
• a de Fathi Abu al-Ardate, o Chefe da Segurança Nacional
• a de Mohammad Abdel Hamid Issa (aliás « Lino »), comandante da Kifah
al-Mussallah (a luta armada). Ela insere-se na corrente de Mohamed
Dallan, 0 antigo chefe das Informações palestinianas que assassinou
Yasser Arafat. Ela é actualmente apoiada pelos Emirados Árabes Unidos.
• a de Munir Maqdah, antigo chefe militar da Fatah, que se aproximou do
Hamas, do Catar, da Turquia e do Irão.

No mês passado, confrontos opuseram estas três facções às dos islamistas
do Hamas, bem como do Jund el-Sham e do al-Shabab al-Moslem, dois grupos
jiadistas que combateram ao lado da OTAN e de Israel contra a República
Árabe Síria. Violentos combates tiveram lugar no campo de Aïn el-Héloué
(Sídon, Sul do Líbano). Na altura, eu interpretara-os à luz dos de Nahr
el-Bared (Norte do Líbano), em 2007 [2 <#nb2>], antes de perceber que
estavam ligados à agonia de Mahmud Abbas [3 <#nb3>].

Durante 75 anos, Telavive fez tudo o que estava ao seu alcance para
negar a igualdade entre todos, sejam judeus ou árabes. Pelo contrário,
desde o Apelo de Genebra, tem promovido « a solução de dois Estados »,
quer dizer, o plano colonial da última chance de Lord William Peel, que
os britânicos não conseguiram impor, nem no terreno, em 1937, nem nas
Nações Unidas, em 1948, mas que hoje em dia reúne consenso. Agora,
apenas os marxistas da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP)
pregam no deserto propondo criar um Estado único no qual cada homem
disporia de uma voz igual [4 <#nb4>].

Face ao que ele considera como uma invasão palestiniana, mas que do
ponto de vista palestiniano não é mais que um regresso a casa, o
Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu prometeu a vitória. Mas o que será
? Matar todos os combatentes do Hamas não resolverá 75 anos de
injustiça. Os seus filhos retomarão a sua chama tal como estes retomaram
a de seus pais.

Para atingir o seu objectivo, Benjamin Netanyahu deve primeiro unir os
Israelitas que ele dividiu. Seguindo o exemplo de Golda Meir durante a «
Guerra dos Seis Dias », ele deve fazer entrar a Oposição para o governo.
Assim encontrou-se com Yaïr Lapid e com o General Benny Gantz. No
entanto, o primeiro pôs como condição que os supremacistas judeus,
Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir, abandonem o governo, ou seja, que o
Primeiro-Ministro abandone o seu projecto político e o dos seus actuais
patrocinadores [5 <#nb5>], os straussianos da Administração Biden [6
<#nb6>].

Os dirigentes do Hamas apelaram aos refugiados palestinianos no
estrangeiro, a todos os árabes e a todos os muçulmanos para se unirem ao
seu combate. Os refugiados palestinianos, significa dizer primeiro a
maioria da população jordana e os do Líbano. Os árabes, quer dizer o
Hezbolla libanês e a Síria, dois poderes que renovaram com o Hamas no
decurso dos últimos meses. Os muçulmanos significa o Irão e a Turquia.

De momento, apenas a Jihad Islâmica, quer dizer, o Irão, e os diversos
grupos da Resistência da Cisjordânia se juntaram ao Hamas.

*Saindo da sombra, o Presidente Erdogan apelou, em 8 de Outubro, à
aplicação das Resoluções do Conselho de Segurança sobre a Palestina. *

Contrariamente ao que pretende o Wall Street Journal, não é o Irão que
dirige o Hamas. Isto é esquecer o acordo feito entre Hassan El-Banna, o
fundador dos Irmãos Muçulmanos, e Ruhollah Khomeini, o fundador da
República islâmica do Irão. Os dois grupos dividiram o mundo muçulmano
entre si e abstêm-se de intervir significativamente na esfera de
influência do outro. Teerão não para de afirmar ruidosamente o seu apoio
aos Palestinianos, mas a sua acção concreta na Palestina limita-se à
Jihad Islâmica.

Os dirigentes políticos do Hamas vivem na Turquia, sob a protecção dos
Serviços Secretos. É Ancara que dirige o Hamas e a operação « Dilúvio de
Al-Aqsa ». Inaugurando, no domingo, 8 de outubro, uma igreja ortodoxa
siríaca, o Presidente Recep Tayyip Erdoğan declarou, em tom meloso : «O
estabelecimento da tranquilidade, de uma paz duradoura e da estabilidade
na região através da solução da questão palestina de acordo com o
direito internacional é a prioridade absoluta sobre a qual nos
concentramos durante as nossas conversas com os nossos homólogos (…)
Infelizmente, os Palestinianos e os Israelitas, assim como toda a
região, pagam o preço do atraso na administração da justiça (…) Atirar
gasolina para a fogueira não beneficiará ninguém, incluindo os civis dos
dois lados. A Turquia está pronta a fazer a sua parte, da melhor forma
possível, para pôr fim aos combates o mais rapidamente possível e
aliviar a tensão crescente devido aos recentes incidentes ».

A escolha por Ancara em desencadear esta nova guerra depois de mal
esmagada a República de Artsakh, no Azerbaijão, e quando envia material
militar para a Rússia, em violação das medidas coercivas unilaterais dos
EUA, leva a pensar que os diplomatas turcos já não têm medo de
Washington, a qual, portanto, havia tentado assassinar o Presidente
Erdoğan, em 2016. Assim que esta operação estiver terminada, seguir-se-á
uma outra contra os Curdos, na Síria e no Iraque.

Se o Hezbolla entrar em cena, Israel não conseguirá repelir o ataque
sozinho. A sua existência só pode ser garantida com o apoio militar dos
Estados Unidos. Ora, a opinião pública dos EUA já não apoia Israel,
enquanto o Pentágono já não tem o poder para o defender. O que se passa
actualmente é uma das consequências da guerra na Ucrânia. Washington não
consegue fabricar munições suficientes para os seus aliados ucranianos.
Foi mesmo forçada a levantar munições dos seus stocks (estoques-br) em
Israel. E, já esvaziou lá os seus arsenais.

Nas primeiras horas do conflito, o Hezbolla disparou alguns foguetes
contra as quintas de Chebaaa, ou seja, sobre o território disputado
entre o Líbano e Israel. Mostrou assim que apoia a Resistência
palestiniana dento da retórica da «unidade de frentes». Mas não entrou
na guerra, porque desconfia do Hamas que teve de combater na Síria. E de
quem não partilha a ideologia, a da Irmandade.

Todos os dirigentes ocidentais garantiram que condenam as acções
terroristas do Hamas e que apoiam Israel. No passado, nada fizeram para
resolver as injustiças na Palestina e estas posições de princípio
atestam que não o farão agora. Por seu lado, a Rússia e a China,
recusando tomar partido pelos Palestinianos ou pelos Israelitas,
apelaram, não à aplicação das regras ocidentais, mas ao respeito pelo
Direito Internacional. Encontra-mo-nos agora face a uma situação onde
todos os intervenientes deliberadamente sabotaram antecipadamente cada
solução, de modo que é agora quase impossível evitar que tudo isto não
termine num banho de sangue.

Em
VOLTAIRE.NET
https://www.voltairenet.org/article219800.html
11/10/2023

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