quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A indiscutível ditadura dos banqueiros





por João Carlos Lopes Pereira [*]

Diz-se que o direito de propriedade é o direito real que dá a uma pessoa
ou entidade (dito «proprietário») a posse de uma coisa, em todas as suas
relações e consequências. É, por isso, o direito, ou a faculdade de usar,
gozar e dispor dessa coisa, além do direito de reavê-la de quem
injustamente a possua ou detenha. É um direito absoluto, perpétuo e
exclusivo.

Por outro lado, segundo a filosofia política e económica, as regras, as
disposições e as directivas da União Europeia, que são do mais neoliberal
que podia haver, o Estado deve ser a entidade que menos património pode
ter. Aliás, nenhum património na posse do Estado seria, para ela, UE, o
ideal. Pelo contrário, os privados – pessoas e entidades – podem possuir
tudo aquilo a que conseguirem deitar a mão, não havendo outro limite para
a possessão a não ser o céu. Tudo deve ser privado, a começar na banca e a
terminar no ar (logo que haja tecnologia que torne o desiderato possível),
passando pela água.

Mas serão as coisas exactamente assim? Será assim que elas se passam, na
prática, para todos nós e para toda a propriedade? Logo veremos que não.

Comecemos pelo caso de um banco e de uma companhia aérea. Nacionalizar um
banco que esteja de boa saúde não é possível. Diz a UE que é roubar o
banqueiro. Mas nacionalizar um banco falido é coisa perfeitamente
aceitável. Os lucros para os banqueiros; os prejuízos para os
contribuintes do costume. Porém, assim que nós, os contribuintes,
resgatarmos o banco, nele investindo milhares de milhões de euros, ele
deverá ser entregue, a qualquer preço, a um novo banqueiro. Aqui, os
proprietários de facto – os tributados que salvaram o banco com o dinheiro
dos seus impostos – não têm o direito de ser os seus legítimos donos, pois
esse direito é consignado a um outro banqueiro privado, ainda que não
tenha coberto, sequer, o valor que os contribuintes pagaram (vide BPN, por
exemplo). Significa que todos os cidadãos foram obrigados a oferecer a
outra pessoa o banco que compraram. A isto chama-se um acto de pura
espoliação, e por isso, totalmente desconforme com as mais elementares
bases e pressupostos não só do direito, mas de um regime democrático. É
saque desenfreado. Puro e duro.

É inquestionável, deste modo, que a noção de propriedade, posse,
utilização, gozo e tudo aquilo que resulta da aquisição de um bem, varia
de acordo com o proprietário, podendo valer tudo, ou podendo nada valer.
Foi o caso do Banif, como foi o caso do BPN.

Ora, o Estado pôde investir o dinheiro dos contribuintes para salvar
bancos privados – os tais BPN e Banif, por exemplo – mas já não pôde
investir o dinheiro dos contribuintes para salvar uma companhia aérea que
era do Estado – neste caso, a TAP. Ou seja: que era dos contribuintes.

Chega-se à conclusão que o direito comunitário não é assim tão direito
quanto isso. Parece mais um direito feito – ou encomendado – por
banqueiros/Investidores, do que um direito feito a pensar na vida, na
saúde e na felicidade de milhões de seres humanos.

Mas generalizemos ainda mais esta filosofia comunitária no que respeita à
consagração da dominação de tudo pelo privado, para podermos ver até que
ponto ela é – ou não é – uma coisa séria e plena de regras equitativas –
ou sérias, imparciais – e, principalmente, democráticas.

Vejo que os fundadores da União Europeia, Maurice Schumann (francês
[nascido em Luxemburgo]), Konrad Adenauer (alemão) e Alcide de Gasperi
(italiano), todos liberais convictos, eram todos eles, também,
democratas-cristãos. A sua visão do liberalismo considera a liberdade
individual (não de todos, como estamos a ver – e melhor veremos mais à
frente) como sendo o mais importante valor cultural dos europeus e do
cristianismo. De acordo com essa visão – segundo os fundadores da UE – a
função dos estados soberanos europeus é proteger os direitos de
propriedade e a economia de livre mercado numa Europa de fronteiras
abertas, permitindo desta forma o livre comércio de bens, serviços e
ideias.

Tudo muito bonito, a principiar por isto: "A função dos estados
soberanos europeus é proteger os direitos de propriedade".

Mas face ao que disse atrás, quando se fala nos direitos de propriedade,
o que apetece logo questionar é: mas direitos de propriedade, de quem?

E a razão da pergunta é muito simples. É que sendo todos nós
proprietários de alguma coisa – uns, de muitas; outros, de poucas, podendo
ser, neste caso, uma pequena reforma, ou as poupanças de uma vida –
parece-me que o princípio de protecção dos direitos de propriedade só se
aplica a quem for, realmente, um proprietário gigantesco. Daqueles que
dominam os próprios estados.

Será, por exemplo, que eu – como qualquer um de nós – sou proprietário
absoluto do meu dinheiro, legalmente adquirido, seja o meu salário, seja a
minha reforma, sejam as minhas poupanças? Será que Estado protege o meu
direito de proprietário desses bens? Mas será mesmo?

Então, porque será que um banqueiro pode ser dono de um banco que eu
comprei, porque o paguei em sociedade com todos os outros cidadãos
contribuintes do meu país, mas que, feitas as contas, não posso, sequer,
tomar posse dele, ainda que, face à lei que defende o direito à
propriedade, ele deveria ser incontestavelmente meu? E o meu salário, e a
minha reforma, e as minhas poupanças serão coisas minhas, privadas,
sagradas, intocáveis? Mas serão mesmo?

Para se compreender o nexo de todas estas questões, enunciarei algumas
perguntas que me parecem legítimas dos pontos de vista social e político,
como legítimas e adequadas me parecem as respostas que lhes dou. Assim:

Queremos acabar com as crises financeiras?

Queremos acabar com as "bolhas" disto, daquilo e daqueloutro?

Queremos acabar com a falta de investimento?

Queremos acabar com o défice e com a dívida pública?

Queremos acabar com o desemprego?

Queremos uma economia saudável?

Queremos?

Então, acabemos com a banca privada. Nacionalizemos a banca. [NR]

Ponhamos a economia ao serviço do país e das pessoas, em vez de pormos as
pessoas e o país ao serviço da economia de mercado – dos mercados, querem
eles dizer – que é o outro nome do Capital Financeiro (que não é o
Sistema Financeiro) ou dos Investidores.

Porquê?

Porque acabaremos, assim, com os mecanismos que permitem a transferência
da riqueza produzida no(s) país(es) para os bolsos dos chamados
Investidores, o que depaupera as finanças nacionais e obriga o(s)
país(es) a endividar(em)-se e a pagar(em) juros que o(s) subjugará(ão)
ad eternum per secula seculorum.

Por outro lado, se a banca for estatal, o dinheiro não desaparece em
offshores, nem em rioforte nenhum, nem em créditos para os amigos (que
não é para pagar), nem em quadros Miró.

Acabem, em suma, com a ideia falaciosa, sofística, que os banqueiros e o
Sistema Financeiro são a mesma coisa. Um banco faz parte do Sistema
Financeiro, mas não passa disso. Um banqueiro não é dono de outra coisa
que não seja o seu capital. O Capital Financeiro. Os banqueiros não podem,
portanto, ser os donos do nosso dinheiro – o que lhes demos a guardar e o
que a UE exige agora que lhes demos, transferindo para nós as
responsabilidades e os custos de crimes que não cometemos.

De facto, desde o dia 1 de Janeiro de 2016, a mesma União Europeia que
defende que – e cito outra vez: " É função dos estados soberanos
europeus proteger os direitos de propriedade ", determina que as minhas
poupanças (que são propriedade minha), possam ser utilizadas para salvar o
negócio privado de um banqueiro. Isto é: para salvar um banco privado,
deixo de ter direito absoluto, perpétuo e exclusivo sobre a minha
propriedade. Sobre o meu património. Para isso, já o direito de
propriedade deixa de ser um direito real que dá a uma pessoa a posse de
uma coisa, em todas as suas relações e consequências. Deixa de ser um
direito absoluto, perpétuo e exclusivo.

Dizendo de outra maneira: eu não sou dono do meu dinheiro. Eu não tenho
protegido o direito de considerar meu – e, portanto, intocável – aquilo de
que sou proprietário (as minhas poupanças, neste caso), já que a UE
considera que esse património está à mercê do banqueiro a quem as confiei,
seja para lhes dar descaminho (como deram nos BPN, no BPP, nos BES e no
Banif), seja, depois, para lhe salvar o negócio.

Não há prova mais clara, nem mais elucidativa, nem mais – acrescente-se –
descarada de como esta Europa não é uma Europa dos cidadãos, nem uma
Europa democrática. É uma Europa do Capital Financeiro, o qual tem rédea
solta para dominar o Sistema Financeiro e – o que é pior – para ter nas
mãos o próprio Poder Político e, através dele, os povos e os países.

Isto é: um banqueiro pode fazer desaparecer o dinheiro que lhe confiei;
um banqueiro pode ficar com um banco que eu salvei com os meus impostos;
e um banqueiro ainda pode, para além disso, ficar com os nossos depósitos,
acima de determinado valor, para resgatar o banco que ele afundou.

Resumindo: um cidadão trabalhador não tem direito a ser proprietário nem
do fruto do seu trabalho; mas um banqueiro tem direito a deitar mão ao meu
património para seu proveito próprio. Chamem a esta Europa o que quiserem.
Mas, por favor, não lhe chamem – nem a brincar – democrática.

A solução? Repito: retiremos ao Capital Financeiro o poder de usar em seu
proveito o Sistema Financeiro. Para os mais indecisos, peço-lhes que
pensam no que nos aconteceu nos últimos anos e que me respondam:

- A Economia – Portugal, os portugueses – pode estar nas mãos de
gangsters engravatados e de colarinho branco?

- Portugal e os portugueses podem estar nas mãos de gente como Oliveira e
Costa, Dias Loureiro, João Granadeiro, Ricardo Salgado e de bandos
nebulosos como os que dominaram o Banif?

- O CAPITAL FINANCEIRO – a banca privada e os investidores – podem, por
isso, ter o SISTEMA FINANCEIRO nas mãos?

- Os políticos podem ser tão desonestos e mentirosos ao ponto de
fazer-nos acreditar que salvar um banco é salvar o Sistema Financeiro, em
vez ser, apenas, salvar o Capital Financeiro?

Só pode haver, creio eu, uma resposta honesta para isto: NÃO! NÃO PODEM!

E, finalmente, se o meu dinheiro, apesar de meu – de ser minha
propriedade – me pode ser retirado para salvar a propriedade de um
banqueiro, será que a sociedade em que vivo é uma democracia? Ou não será,
se quisermos chamar às coisas os nomes que se lhes adequam, que vivo em
ditadura?

- A ditadura? Mas ditadura de quem? – Perguntará alguém muito ingénuo, ou
muito distraído.

Francamente! A ditadura de quem?! A Ditadura dos Banqueiros, ora de quem
haveria de ser?


05/Janeiro/2016

[NR] A nacionalização da banca é condição necessária mas não suficiente.
Será preciso também retirar à banca o poder que ela tem actualmente de
emissão monetária (através da concessão de crédito a partir do nada) – o
qual terá de ser devolvido ao Estado. Além disso será indispensável o
controle dos fluxos transfronteiriços de capital, bem como muitas outras
medidas.

Ver também:
A punção das contas bancárias já foi legalizada
Lei 23A/2015, de 26 de Março
EU Bank Recovery and Resolution Directive (BRRD)

[*] Ex bancário e autarca , autor de "A mosca na vidraça" e outras obras.

In
Resistir.info
http://resistir.info/portugal/ditadura_banqueiros_05jan16.html
7/1/2016

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