sábado, 16 de janeiro de 2016

Ocupando a futuridade





Por Giovanni Alves.

O movimento de ocupação das escolas públicas do Estado de São Paulo pelos
estudantes secundaristas que lutam contra o projeto de reorganização e
fechamento de escolas do governo Geraldo Alckmin pode ser considerado o
movimento social de maior expressão político-simbólica no Brasil de hoje. Foi um
sopro de esperança no Brasil – e principalmente no Estado d São Paulo – assolado
pela estupidez da classe média liberal e mediocridade politica e sindical
incapaz de canalizar as energias dos movimentos sociais das camadas médias
assalariadas indignada e da classe operária insatisfeita numa perspectiva de
mudanças social efetiva para além do politicismo vigente. O movimento social da
juventude insurgente contém um significado radical: a re-apropriação
democrático-radical do espaço escolar. Indo além de sua imediaticidade política,
o movimento de ocupação das escolas públicas pelos estudantes secundaristas é
efetivamente uma crítica radical dos protocolos estranhados da gestão escolar em
suas múltiplas dimensões. A moçada insurgente quer uma nova escola pública que
deixer de ser um sistema burocrático e ideológico insensível às demandas dos
sujeitos-produtores do processo de ensino-aprendizagem – não apenas professores,
mas servidores administrativos e estudantes secundaristas.

O pólo protagonico de luta contra a política de educação pública dos governos do
PSDB tem sido historicamente os professores que lutam há décadas por dignidade
salarial. Inclusive em 2015 a APEOESP conduziu uma greve de 100 dias
reivindicando principalmnte melhores salários e mudança na precarização
contratual do professores do Estado de São Pauo. O governo Alckmin se manteve
impassível rejeitando a negociação coletiva com a entidade sindical que
representa os docentes do ensino público. Não é novidade que a precarização do
trabalho docente nas escolas públicas do Estado de São Paulo assumiu hoje
dimensões catastróficas. A profissão de professor tornou-se um sina danada pela
falta de perspectivas salariais e reconhecimento social e profissional. É claro
que não se trata apenas da realidade do Estado mais rico do País – o que é um
contrasenso, mas trata-se de uma política nacional de desprezo pela valorização
salarial e profissional dos professores no Brasil. Não iremos tratar neste
artigo da miséria do trabalho docente das escolas públicas no Brasil. Degrada-se
o trabalho de educação de crianças e adolescentes, esteios da futuridade do
Paìs. A crise da educação em sua dimensão pública é uma forma crucial da
alienação do capital em seu patamar histórico de crise estrutural, expressando
em s e ara si, a desvalorização da atividade social, humana e profissional, do
professor de educação pública, o produtor da educação entre crianças e filhos
adolescentes das famílias das camadas médias baixas e camadas populares da
sociedade brasileira, o verdadeiro esteio da barbárie social que avança nas
condições do capitalismo catastrófico no Brasil. É um tema candente cuja solução
política eencontra-se distante principalmente no cenário de crise orçamentária
dos Estados brasieiros.

Entretanto, em 2015, diante do projeto de reorganização escolar do governo
Alckmin, surgiu de modo imprevisivel, um novo sujeito protagonico de luta social
contra a degradação da educação pública. Provavelmente nem o governo Alckmin,
nem a própria APEOESP, a entidade sindical dos professores, acrediatavam que os
estudantes secundaristas rebeldes assumiriam com a estratégia de ocupação das
escola pública do Estado de São Paulo, o protagnismo contra o projeto de
reorganização escolar do governo do PSDB – intitulado eufemisticamente de
“reforma dos ciclos”. Por trás da “reforma dos ciclos” temos o fechamento de
escolas públicas, o amento de alunos em salas de aula – degradando, deste modo,
mais ainda o processo de ensino-aprendizagem – e a constituição de um modo de
organização escolar como ante-ala da terceirização da gestão escolar (como
ocorreu nos Estados de Goias e ará, administradões politicas do PSDB). Enfim, a
uurpação da coisa pública pela lógica privatista.

Poderiamos dizer que os estudantes secundaristas que ocuparam o território das
escolas públicas, conseguiram elaborar, em si, uma crítica radical da escola
pública tal como existe hoje, indo além das demandas econômico-corporativas do
movimento sindical de professores. O sindicalismo dos professores nunca
conseguiu efetivamente elaborar na prática sindical, uma crítica da gestão
escolar autocrática na escola e na sala de aula. A crítica dos conteúdos
curriculares sem sentido que contribuem para que o desinteresse pelo processo de
ensino-aprendizagem nunca assumiu um carater sistematico capaz de mobilizar o
conjunto de professores, muitos deles imbuidos da cultura de autoritarismo que
caracterzou as relações sociais nas instituições disciplinares como a escola
pública. Talvez muitos professores e funcionários das escolas não tenham a
perspectiva da dimensão política e histórica radical do ato de rebeldia dos
meninos e meninas que decidiram ocupar aquilo que estava efetvamente alienado
deles – não apenas o espaço escolar em si, mas o próprio sentido da educação e
do espaço coletivo da escola pública degradado pela lógica neoliberal (a
violência endêmica nas salas de aula de alunos contra porfessores, çor exemplo,
representa uma escola pública cerceada pela lógica alienado do capital).

De certo modo, a ocupação organizada e auto-gerida das escolas públicas pelos
coletivos de estudantes secundaristas conseguiu, nesse pouco tempo de movimento
social, crescer, cativar a sociedade paulista e ir além, no plano do imaginário
da juventude rebelde mais avançada politicamente, das demandas
político-corporativas da mera luta contra a reorganização escolar do governo
Alckminn. É isto que as midias hegemonicas querem – reduzir o movimento de
ocupação estudantil a luta contra a reestruturação escolar do governo do PSDB.
Após o recuo do governador Alckmin, revogando o decreto-lei da reorganização
escolar, os poderes constituidos do Estado burguês, querem que as escolas
públicas sejam desocupadas e que tudo volte a ser como antes. Entretanto, por um
curto lapso de tempo histórico, reconfigurou-se o espaço escolar nas escolas
públicas ocupadas. Percebeu-se que uma nova escola pública é possivel. A escola
ocupada tornou-se não mais um aparelho burocrático de ensino-aprendizagem ou
aparelho ideológico do Estado propriamente dito (como diria Louis Althusser). De
repente, os estudantes secundaristas tornaram-se produtores associados da
educação como formação humana, elabrando pautas de atividades culturais e
parecrias com a comunidade local e a sociedade capazes de dar sentido pleno à
atividade educacional.

Na verdade, o ato da ocupação no sentido territorial – um espaço como relação de
poder – significou a afirmação da democracia direta dos estudantes secundaristas
que participam da ocupação num primeiro momento, contra a lógica tecnocrática de
reorganização das escolas públicas sem promover a discussão pública ampla e
irrestrita com a sociedade civil organzadas do Estado de São Paulo,
principalmete APEOESP e entdades de representação estudantil. Por trás da lógica
tecnocrática existem interesses ocultos e escusos que movem a intencionalidade
política do governador Geraldo Alckminn. Como não poderia deixar de ser assim,
governos de direita odeiam a discussão democrática e a consulta popular,
adotando práticas autocráticas de administração da coisa pública à margem dos
produtores sociais, como ocorria, por exemplo, na ditadura civil-militar. Na
verdade, o Estado brasileiro de cariz neoliberal apesar do fim da ditadura
civil-militar preserva a cultura autocratica da gestão da coisa pública
persistem que convive ao lado de seus aparelhos de repressão, como a Policia
Militar. Enfim, ocupar o território da coisa pública tornou-se o ato supremo de
afirmação da democratização da res pública. No fundo, reside um carecimento
radical que se manifesta com vigor na juventude proletária: o anseio de
re-apropriar-se dos espaços de vida alienada pela pseudo-concreticidade da vida
cotidiana.

Como movimento social lastreado numa espontaneidade indignada e rebelde,
característico da juventude na flor da idade, o ato de ocupação organizado
possui múltiplas significações. Como salientamos acima, a intencionalidade
direta é barrar o projeto de reorganização escolar do governo Alckminn. Mas para
além do ato politico-corporativo, o processo de ocupação estudantil possui um
significado imanente de crítica da estrutura escolar pública com sua gestão
autocrática por parte de dirigentes de escolas e inclusive, professores e
funcionários públicos insensiveis à cultura libertária. Como podemos apreender
no video-documentário “Ocupação”, de Giovanni Alves (Projeto CineTrabalho/Práxis
vídeo, 2015), o espaço de autonomia constituido pelos estudantes secundaristas
que ocuparam de forma organizada e auto-gerida as escolas públicas, fez aflorar
carecimentos radicais para além da mera demanda político-corporativa de impedir
a reestruturação escolar do governo do PSDB. Na verdade, a ocupação tornou-se um
espaço de aprendizagem político-radical da cidadnia ativa, resgate inestimável
dos valores fundantes e fundamentais para a formação da consciência de classe:
autonomia, solidariedade e união. Aboliu-se num lapso de tempo histírico, a
alienaçao escolar que os educava para a subalternidade proletária. A experiencia
coletiva da ocupação educa-os – ou cria a possibilidade de educação – para os
valores da luta e resistência do precariado em formação. A ocupação está sendo
para os estudantes secundaristas rebeldes, muitos deles originariamente não
envolvidos com o movimento estudantil, a aula de política mais importante do
resto da vida deles. Esta juventude secundarista, de origem proletária,
representa o que podriamos denominar de precariado seminal, o precariado em
formação, que incorpora e expressa na sua espontaneidade juvenil, aquilo que
Karl Marx considerou fundamental na classe social do proletariado: a
Selbsttätigkeit, movimento espontâneo e autônomo do proletariado, isto é, a
auto-atividade histórica do proletariado.

Deste modo, com a ocupação da escola pública eles vivem a experiencia da nova
sociabilidade democraica radical. Um espaço de autonomia inédito que explicita
os sonhos imanentes da emancipação social. Energias utópicas restritas à
espontaneidade e temporalidade cnstrangedora do tempo histórco social
manifestam-se de modo bruto. Por um lapso de tempo histórico rompe-se com a vida
alienada do cotidiano burguês (familia, escola, lazer). Pelos depoimentos vistos
no documentário “Ocupação”, critica-se na prática, as instâncias repressivas da
vida burguesa – não apenas o governo Alckminn, parte compositivas do Estado
neoliberal no Brasil, mas também a gestão escolar autocrática de dirigentes e
professores das escolas públicas e inclusive, os conteúdos escolares sem sentido
para a juventude do século XXI. Crítica-se também a família repressiva, com
alguns pais, seduzidos pela mídia neoliberal hegemônica, proibindo filhos de
participarem do movimento de ocupação escolar e desqualificando o próprio valor
da ação política. Nesse caso, o conflito geracional que permeia as familias
expõe a dialética da vida onde os jovens educam efetivamente os mais velhos.

Finalmente, os estudantes secundaristas que participam das ocupações estudantis
se auto-criticam como pessoas humanas, contestando não apenas a dominação
política do capital e as práticas de exploração do trabalho que contaminam os
loci escolares, mas. Por exemplo, a sociabilidade de opressão de gênero. A
alteridade do outro é reconhecida e abomina-se as práticas discriminatórias e
preconceituosas. O outro-como-concorrente interverte-se em outro-como-próximo.
Um detalhe: o protagonismo das mulheres no movimento de ocupação estudantil das
escolas públicas é flagrante. Na verdade, no seio do movimento estudantil que
ocupa as escolas públicas contesta-se radicalmente o machismo como forma de
autocracia sociometabolico do capial. Na verdade, o coletivo das ocupações
estudantis anseia – como utopia social – uma sociabilidade humana de novo tipo
para além da miséria brasileira. Trata-se de uma tarefa árdua de crítica
biopolítica da vida cotidiana. Infelizemnte, não é dentro dos limites do
movimento de ocupação escolar que ocorre nas escolas públicas do stado de São
Paulo que se efetivará a mudança social necessária se afirmar a utopia da nova
socialibilidade libertária.

Enfim, o precariado seminal constituído pelos estudantes secundaristas que
ocupam as escolas públicas expõem de modo dilacerante as contradições radicais
do capitalismo global. Contestam a função ideológica da escola pública como
instância de formação e reprodução das relações de exploração da força de
trabalho. A escola capitalista é uma pequena fábrica onde se cultiva a
disciplina e o assujeitamento de classe. Os estudantes são pequenos operários
submetidos aos rudimentos de relações sociais de exploração. Eles são
trabalhadores assalariados em formação, isto é, individualidades pessoais de
classe que compõem o precariado do amanhã – o precariado seminal. Na medida em
que aprendem a rebelar-se, re-apropriam-se da humanidade que está sendo alienado
de si – ou melhor, ocupam a futuridade que está lhes sendo roubada. Na verdade,
abre-se uma fratura na subjetividade burguesa hegemonica, sendo, deste modo, o
movimento de ocupação dos espaços públicos pelos próprios cidadãos proletários,
um elemento compositivo daquilo que John Holloway denomina de fissurar o
capitalismo (provcar fissuras na estrutura de poder do capital). Talvez o velho
Herbert Marcuse – e mesmo Ernst Bloch – tenham conseguido vislumbrar, na década
de 1960, caracterizada pelas manifestações estudantis nos EUA e Europa
Ocidental, a pulsão proletária – no sentido de Selbsttätigkeit, – da juventude
rebelde. Os “trinta anos perversos” do capitalismo global (1980-2010) procurou
enquadrar e manipular a juventude proletária, castrando seus sonhos concretos de
contestação social, reduzindo-os aos sonhos, valores e expectativas de mercado.
Entretanto, a crise do capitalismo neoliberal abriu fraturas na subjetividade
reificado do precariado – a juventude altamente escolarizada inserida em
condições de trabalho e vida precária. Aliás, o fenômeno do precariado indicou a
irrupção de carecimentos radicais incapazes de serem efetivados pelo capitalismo
catastrófico – capitalismo neoliberal na etapa de crise estrutural do capital.

Portanto, o elemento essencial da estratégia de ocupação de espaços públicos
pelos cidadãos proletários – como ocorre hoje com a ocupação estudantil das
escolas públicas no Estado de São Paulo – é o sentido de re-apropriação da coisa
pública alienada. Na verdade, trata-se efetivamente de luta contra a alienação n
sentido radical. O público torna-se o coletivo auto-gerido. Diríamos mais –
hoje, mais do que nunca, a estratégia de ocupação organizada e auto-gerida dos
territórios públicos, torna-se a principal estratégia de luta contra a
degradação das instâncias de produção de valores civilizatórios que caracteriza
o capitalismo global no século XXI.

Na medida em que a prática da ocupação de espaços públicos pelos próprios
cidadãos e produtores sociais cria, amplia e envolve a comunidade local e a
sociedade em particular, buscando apoio em outras instâncias associativas e
sindicais e organizações da sociedade civil, ela cria um fato político
hegemonico capaz de conter a degradação dos espaços de produção dos valores
civilizatórios. Torna-se um elemento fundante de socialização da política
radical e construção da hegemonia social e cultural. De repente, ocupa-se não
apenas escolas públicas, mas também, por exemplo, hospitais públicos, terras
públicas, etc. A re-apropriacao da coisa pública na era da sociedade neoliberal
torna-se um ato de cidadania ativa e momento de formação da consciência de
classe necessária, pois o que presenciamos com as ocupações é uma forma complexa
de luta de classes que caracteriza hoje a sociedade brasileira, exigindo, sob
pena de colapsar sob seus próprios limites estruturais, expandir-se para a
processualidade política social e democrático-institucional capaz de transformar
– no sentido de sua extinção – o próprio Estado político do capital.

Enfim, a estratégia política de ocupar como modo de fissurar a reificação
capitalista é a estratégia essencial de luta não apenas contra a degradação da
coisa pública – e inclusive do fundo público, que direciona cada vez recursos do
orçamento público para interesses do capital – mas de luta contra a degradação
da pessoa humana-que-trabalha, buscando resgatar as individualidades pessoais do
estranhamento social que as dilacera.

O capital hoje é uma máquina de dilacerar a subjetividade, a sociabilidade e a
individualidade das pessoas humanas que trabalham. A prática social de
reapropriacao coletiva e auto-gerida da coisa pública é uma prática de luta
contra a “captura” da subjetividade; de resgate da alteridade do
Outro-como-proximo contra o mundo social do individualismo possessivo,
concorrência e machismo; e também reapropriacao dos valores culturais das
objetivações civilizatórias alienados pela máquina de imbecilização cultural e
miséria espiritual da indústria cultural burguesa. Enfim, a estratégia de
ocupação dos espaços públicos – mesmo na sua dimensão contingente – é um aviso
de alerta que precisamos resgatar (e ocupar) com urgência, a futuridade
condenada pela barbárie social e o extermínio civilizatório do capital.

Finalmente, é importante salientar que a ocupação organizada e auto-gerida pelos
estudantes secundaristas é um acontecimento transcotidiano, isto é, um lapso
radical, luminoso e diruptivo, que fratura a pseudo-concreticudade da vida
escolar cotidiana. Entretanto, posui limites estruturais candentes –
principalmente numa conjuntura de reação histórica do capital. Caso não se
altere a correlação política das forças sociais no Brasil e não se extinga
efetivamente o Estado capitalista neoliberal – o que obviamente improvável nas
condições históricas do Brasil hoje, tendo em vista a hegemonia burguesa no País
–, o ato de ocupação como prática de luta e contestação social, não se tornará
efetivamente sustentável no sentido de instaurar uma nova materialidade social.
Ao invés do delírio esquerdista de lideranças da extrema-esquerda que incitam as
ocupações, não vivemos numa conjuntura revolucionária como por exemplo, a Rússia
de 1917 ou o Chile de 1972. A experiência das ocupações estudantis é um delicada
flor da utopia social do precariado seminal, um aviso de alerta para as forças
sociais demcráticas, ppulares e socialistas que almejam mudar a sociedade
brasileira. Entretanto, o valor da ocupação estudantil das escolas públicas
reside na sua própria dinâmica contingente de reconfigurar as subjetivudades do
precariado seminal.

A experiência do precariado seminal, o precariado em formação, é a experiência
social de resgatar a futuridade alienada. Os estudantes secundaristas serão o
precariado do amanhã. Talvez seja importante refletirmos sobre a luta candente
do precariado contra a futuridade alienada. Por isso, o que o precariado seminal
expõe com a ocupação da coisa pública é a luta pela futuridade no sistema do
capital que consome o futuro. Luta pela democracia radical, luta pelo fundo
público e luta contra a degradação da pessoa humana. Estes são os indícios
radicias do movimento social contingente da ocupação estudantil das escolas
públicas do stado de São Paulo que assistimos em 2015. No fundo, é uma reação
contingente à lógica neoliberal que impulsiona o capital como contradição viva.
Na ótica liberal, não existe nada para além do capitalismo e sua lógica do
mercado, a não ser o próprio capital em sua forma arcaica (as experiências
pós-capitalistas do século XX). No princípio, era o homem burguês – eis o que
diz o livro dos “Genesis” do capital. Esta é a perspectiva epistemológica e
moral da economia política tão criticada por Marx. A presentificação histórica
do capitalismo tal como operava a economia politica é a versão clássica (e
elegante) da presentificação crônica que entorpece o precariato sob o
capitalismo manipulatório. Como observou o filósofo Henri Bérgson no começo do
século XX, “nós praticamente só percebemos o passado”, com o “presente puro
sendo o avanço invisível do passado consumindo o futuro”. O que significa que o
“presente puro” não existe; ele é apenas “o passado consumindo o futuro”. O que
Bergson descreve, sem o saber, é a ontologia da temporalidade do capital, onde o
passado, com sua inércia amortecedora, domina o presente, eliminando as chances
de uma ordem futura qualitativamente diferente. Na verdade, para I. Mészáros a
temporalidade do capital é uma “temporalidade decapitada”, isto é, temporalidade
restauradora, “a paralisante temporalidade restauradora do capital”, tendente a
construir um “futuro” como uma espécie de versão do status quo ante. Deste modo,
a temporalidade do capital que hoje se afirma não é uma temporalidade aberta,
mas sim uma temporalidade fechada que não liga o presente a um futuro de verdade
que já se abre à frente.

No caso dos “precários”, eles tem a percepção clara da temporalidade fechada do
capital, percepção estranhada de perda do futuro que os projeta, no plano da
contingencia, na “presentificação crônica” do metabolismo social do capital.
Ideologicamente, na sua consciência contingente, incorporam a presentificação
histórica do capitalismo posta pela consciência liberal. Na verdade, a
consciência liberal só traduz, no plano ideológico, o modo de ser da
“paralisante temporalidade restauradora do capital”.

Nas condições do poder da ideologia e da constituição da “multidão” do
precariado, coloca-se hoje, mais do que nunca, a necessidade radical da luta
ideológica que, num mundo social do trabalho precário, torna-se mais candente
tendo em vista a exacerbação da manipulação como modo de afirmação do capital
como sociometabolismo estranhado. A ansiedade perante o futuro não se trata
apenas de um problema social (vínculos laborais precários, baixos salários,
falta de direitos laborais), mas sim, trata-se de um problema existencial que
corrói a individualidade pessoal. Na verdade, a precariedade interdita a vida
pessoal do sujeito de classe. É a alienação/estranhamento na sua dimensão
radical.

Para a camada social do precariado, trabalhadores jovens-adultos altamente
escolarizados que não conseguem se inserir na cidadania salarial construída pelo
Estado de Bem-estar social, o principal problema da precariedade é “esse futuro
que nos estão a tirar”. Esta percepção de futuro hipotecado é um traço
recorrente no discurso de indignação de jovens adultos-adultos que construíram
sua individualidade pessoal de classe baseada na perspectiva da carreira e
perspectiva de consumo. Educação, emprego/carreira e consumo foi a implicação
subjetiva da juventude construída pelo capitalismo europeu de bem-estar social e
reproduzida nas últimas décadas pelo discurso social-democrata.

Na verdade, o capitalismo manipulatório que se constituiu nos “trinta anos
perversos” se baseou na seguinte implicação paradoxal:

Por um lado, o discurso de compatilização entre capitalismo liberal, democracia
representativa e Estado de bem-estar social. Construiu-se, a partir daí, a
utopia educacional da juventude baseada na idéia do capital humano onde a alta
escolaridade seria o lastro do emprego-padrão por tempo indeterminado,
perspectiva de carreira profissional e o ethos do consumismo. É o ideal da boa
vida no interior da ordem burguesa, onde se renuncia a utopia da emancipação
social pela utopia dos pequenos sonhos individuais de carreira e consumo. A
cultura neoliberal disseminou nos “trinta anos perversos” de capitalismo global
os valores-fetiche do individualismo possessivo. Esta perspectiva ideológica do
capitalismo mais desenvolvido, envolveu em sua larga maioria, a “classe média”
assalariada, lastro político dos partidos socialistas e sociais-democratas.

Por outro lado, ao lado do discurso ideológico social-democrata, a partir da
década de 1980, ocorreu, sob pressão da acumulação capitalista predominantemente
financeirizada, a corrosão persistente do Estado-Providência. Desde a década de
1980, no núcleo orgânico do capitalismo global (EUA e União Europeia), governos
conservadores e neoliberais (e inclusive, governos socialistas e
sociais-democratas) passaram a adotar políticas de cariz neoliberal que
contribuíram para a corrosão do Estado social.

De modo lento e persistente, amplia-se a mancha de precariedade laboral sob a
vigencia da flexibilidade laboral. Instaurou-se a era da precarização estrutural
do trabalho, com a disseminação de várias modalidades do trabalho precário ao
lado do desemprego de massa que atinge principalmente a juventude trabalhadora
europeia. Nos “trinta anos perversos” de crises financeiras persistentes do
capitalismo global, aprofundou-se, principalmente entre a geração nascida na
década de 1980 e que na década de 2000 busca realizar seu sonho de cidadania
salarial, a frustração com as promessas sociais-democratas.

Entretanto, a implicação paradoxal do capitalismo social-democrata agudizou-se
na mesma medida em que aumentou a capacidade de manipulação ideológica e
ilusionismo político da ordem burguesa hipertardia. Na era de precarização
estrutural do trabalho, as jovens gerações de proletários de “classe média” que
constituem o precariado, vivem sob o fogo cruzado do capitalismo manipulatório.

No plano da consciência de classe contingente, expõe-se a carência de futuridade
Torna-se cada vez mais claro na percepção da consciência de classe contingente
que o capitalismo global hipotecou o futuro de jovens-adultos que cumpriram tudo
aquilo que a ordem burguesa receitou para obterem o sucesso, mas não encontraram
um “lugar ao sol”, com a incapacidade do próprio sistema inclui-los como força
de trabalho produtiva. Na verdade, a carência de futuridade do precariado é a
projeção no plano da consciência de classe contingente, da carência do comunismo
posto hoje, mais do que nunca, como necessidade histórica civilizacional.

No livro Para além do capital, István Meszários, um dos críticos radicais da
perspectiva ideologia social-democrata, observou o seguinte: “A inalterável
temporalidade histórica do capital é a posteriori e retrospectiva. Não pode
haver futuro num sentido significativo da expressão, pois o único ´futuro´
admissível já chegou, na forma dos parâmetros existentes da ordem estabelecida
bem antes de ser levantada a questão sobre ‘o que deve ser feito'”. Portanto, é
sob as condições da crise estrutural do capital que se explicita com vigor um
dos traços candentes da ordem burguesa e uma particularidade radical da nossa
época histórica que se distingue de outras épocas do capitalismo histórico: a
interdição persistente da futuridade.

Quando o sistema do capital não consegue “incluir” em seus parâmetros
sócio-reprodutivos, trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados de
acordo com as prescrições e proscrições da ordem burguesa, há algo de podre no
reino da Dinamarca. O espectro do precariado, como o espectro de Hamlet, é
expressão do apodrecimento da ordem burguesa.

Finalmente, podemos nos interrogar: o que acontecerá com a escola pública no
Estado de São Paulo após a dissolução das ocupações estudantis? Ela será a mesma
escola pública que existia antes do movimento contra a reorganização escolar do
Alckminn? Como serão recompostas (ou não) relações sociais autocráticas e
repressivas no interior do espaço escolar público? Esta é uma interessante
questão a ser investigada sociologicamente. Mais uma vez a sociedade brasileira
nos surpreende em 2015 com a irrupção do precariado seminal no seio do baluarte
neoliberal e pólo histórico de reação política do País: o Estado de São Paulo.

In
Blog da Boitempo
http://blogdaboitempo.com.br/2015/12/07/ocupando-a-futuridade/#more-13814
7/12/2015

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