sábado, 25 de julho de 2020


A improvável renovação das esquerdas institucionais
Raul Zibechi

A onda de ma­ni­fes­ta­ções do­min­gueiras no Brasil, a exigir a saída do pre­si­dente Jair Bol­so­naro, marcou um novo palco para os se­tores po­pu­lares or­ga­ni­zados, que estão saindo de um ex­tenso pe­ríodo de de­fen­siva. A con­fi­gu­ração so­cial e po­lí­tica dessas mo­bi­li­za­ções mostra mu­danças pro­fundas na re­a­li­dade do país.
Se­gundo todas as aná­lises e des­cri­ções dis­po­ní­veis, as ma­ni­fes­ta­ções contra o pre­si­dente foram mais nu­me­rosas do que as de seus de­fen­sores, algo ver­da­dei­ra­mente iné­dito já que Bol­so­naro con­segue mo­bi­lizar grupos re­la­ti­va­mente pe­quenos, mas muito ativos e agres­sivos. Em al­gumas ci­dades, como São Paulo, no do­mingo, dia 14 de junho, os bol­so­na­ristas mal jun­taram uma cen­tena de pes­soas em sua con­vo­ca­tória.
A se­gunda questão é que a mai­oria dos mo­bi­li­zados no campo po­pular contra o ra­cismo e o fas­cismo são jo­vens ne­gros e, como aponta uma in­te­res­sante aná­lise do so­ció­logo Rudá Ricci, em ci­dades como Belo Ho­ri­zonte havia também tra­ba­lha­dores de lim­peza ur­bana, de pe­quenas em­presas como far­má­cias e pa­da­rias, e ha­bi­tantes da pe­ri­feria.
“Eles são jo­vens, vi­eram para as ruas porque saem todos os dias”. E eles vão con­ti­nuar a sair. Há muito tempo eles en­frentam a po­lícia mi­litar, em seus bairros, nas fa­velas, em jogos de fu­tebol. Eles co­nhecem essa vi­o­lência ins­ti­tu­ci­onal desde que eram cri­anças”, aponta o so­ció­logo (https://bit.ly/2C9VI60). Deve-se acres­centar que muitas mu­lheres jo­vens estão saindo, em igual­dade de con­di­ções com os ho­mens.
A ter­ceira questão é que os slo­gans são mais ra­di­cais, muitos são de­li­ne­ados pela pri­meira vez nas ruas, tor­nando vi­sível a cul­tura negra e po­pular das pe­ri­fe­rias. A crí­tica ra­dical ao ra­cismo anda de mãos dadas com a de­núncia do au­to­ri­ta­rismo do go­verno Bol­so­naro. Eles atacam o que con­si­deram ser “ra­cismo es­tru­tural”, que co­meçou na es­cra­vidão e se per­petua há cinco sé­culos, e não é re­sol­vido por “cotas ra­ciais” para ad­missão nas uni­ver­si­dades.
Er­guem um an­tir­ra­cismo que é também an­ti­ca­pi­ta­lista, e quando apa­recem mu­lheres ne­gras, an­ti­pa­tri­arcal. Na minha opi­nião, este é um ponto cen­tral do que vem acon­te­cendo no Brasil, o que re­pre­senta uma rup­tura com o pas­sado ime­diato, quando o setor ativo da po­pu­lação negra se iden­ti­ficou com o pro­jeto de Lula e do Par­tido dos Tra­ba­lha­dores (PT).
A quarta questão é a de­ci­siva. O so­ció­logo Ricci, que não é um ra­dical nem um au­to­no­mista, mas foi um membro ativo do PT e pes­qui­sador do mo­vi­mento sin­dical, diz: “o que está acon­te­cendo com a es­querda tra­di­ci­onal? Como ela tem agido?” Ele res­ponde: “com ex­trema co­vardia. É uma es­querda des­co­nec­tada do mundo real, fo­cada nos va­lores da época do lu­lismo”.
De fato, os tor­ce­dores or­ga­ni­zados dos times de fu­tebol reu­nidos na as­so­ci­ação ANA­TORG (https://anatorg.com.br) e no grupo Somos De­mo­cracia, assim como a Frente Povo Sem Medo, o MTST e a CMP (Cen­tral dos Mo­vi­mentos Po­pu­lares), todos iden­ti­fi­cados como es­quer­distas ra­di­cais, par­ti­ci­param das ma­ni­fes­ta­ções de forma des­ta­cada.
Novas or­ga­ni­za­ções de baixo também estão sur­gindo, como a Frente de Mo­bi­li­zação da Maré, o maior com­plexo de fa­velas do Rio de Ja­neiro com 120.000 ha­bi­tantes em 16 bairros, criado por jo­vens co­mu­ni­ca­dores po­pu­lares no início da pan­demia (https://bit.ly/3d5xFC2).
A es­querda ins­ti­tu­ci­onal aban­donou as ruas por causa de pe­quenos cál­culos elei­to­rais, que a po­pu­lação negra or­ga­ni­zada chama de “es­querda branca de classe média”, e em al­gumas ci­dades, como Belém, pediu para não acom­pa­nhar as ma­ni­fes­ta­ções. Uma es­querda que se li­mita a fazer “um jogo es­té­tico” de pe­ti­ções on­line por what­sapp, com pouca ou ne­nhuma prá­tica in­ci­siva no mundo real.
As duas con­clu­sões mais im­por­tantes da breve aná­lise de Ricci, que par­ti­cipou nos dias de­ci­sivos de junho de 2013, abordam tanto a re­tração dessa es­querda quanto a re­no­vação em curso. Os cinco par­tidos de es­querda (PT, PCdoB, PSB, PSOL e PDT), têm um quinto dos ve­re­a­dores e pre­feitos no Brasil, o que ele de­fine como “um exér­cito po­lí­tico”. É daí que vem seu medo e co­vardia, como tes­te­munha a his­tória mun­dial da es­querda, quando é en­go­lida pelo jogo ins­ti­tu­ci­onal.
É por isso que a re­no­vação da es­querda virá de baixo e, em­bora não exista cer­teza de nada, serão pes­soas e co­le­tivos “mais pre­pa­rados pela vida, menos classe média, menos brancos e menos mas­cu­linos”.

Raul Zi­bechi é ci­en­tista po­lí­tico uru­guaio e atua há mais de 20 anos junto aos mo­vi­mentos po­pu­lares e so­ciais autô­nomos de todo o con­ti­nente.
Ar­tigo pu­bli­cado em es­pa­nhol no portal Desde Abajo e tra­du­zido ao por­tu­guês pela Edi­tora Terra Sem Amos.
In
CORREIO DA CIDADANIA
24/7/2020

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