sexta-feira, 17 de julho de 2020

Pandemia e luta de classes




// António Avelãs Nunes


Num artigo que constitui uma notável visão de conjunto, um destaque,
entre muitos outros possíveis: «A pandemia deixou claro que as receitas
do neoliberalismo são só para os pobres, porque são eles os condenados a
sofrer as consequências das leis do mercado e das políticas impostas
para garantir as liberdades do capital. Os ricos e os grandes potentados
do capital vivem do Estado (dos impostos pagos por quem trabalha), que
lhes garante lucros abundantes sem riscos nem falências, que asfixia o
“estado social” que protege os trabalhadores mas alimenta o “estado
social para as empresas”»

1. Em 2008, a Sr.ª Merkel defendeu que a origem da crise estava nos
excessos do mercado. Agora, a pandemia veio mostrar que o mundo depende
da aspirina que (quase só) se produz na Índia e que a Europa e os EUA
dependiam da China no que toca à produção de máscaras de protecção
individual e de ventiladores utilizados nas unidades de cuidados
intensivos. Há quem fale dos excessos da deslocalização de empresas
industriais e até da necessidade de salvaguardar a «soberania
farmacêutica e sanitária.» Tudo bem. Mas é ainda mais importante
garantir aos povos a soberania alimentar, energética, financeira, a
soberania no que toca ao controlo dos portos e aeroportos e das empresas
de telecomunicações, das empresas de transporte aéreo e de todo o
conjunto das empresas estratégicas, aquelas em que assenta a verdadeira
soberania.

Em nome da liberdade de circulação do capital (a mãe de todas as
liberdades do capital), inventou-se a internacionalização, a
deslocalização de empresas industriais para os paraísos laborais, em
busca de mão-de-obra barata e sem direitos. Os países emergentes seriam
a fábrica do mundo, ficando as ‘metrópoles’ com os serviços ‘nobres’
(estratégicos) da investigação e concepção, os serviços financeiros e o
turismo. Tudo para permitir ao grande capital aumentar a taxa de
exploração (nas ‘metrópoles’ e nas novas ‘colónias’) e contrariar a
tendência para a baixa da taxa média de lucro que as chamadas crises do
petróleo (anos 1970) trouxeram à luz do dia.
A desindustrialização registada nos países mais industrializados
arrastou consigo a subversão da estrutura produtiva (e da estrutura do
emprego) e a ruptura das fileiras produtivas em vários sectores, ficando
a nu os perigos destes excessos do capital. Fala-se agora da necessidade
de re-industrialização. E fala-se também da necessidade de temperar o
radicalismo do comércio livre imposto ao mundo através da OMC.

2. Nos últimos anos, o mundo tem sido fustigado por várias pandemias:
SARS – 2003; H1N1 – 2009; MERS – 2012; Ébola – 2014; Zica – 2016. E os
especialistas têm relacionado o seu carácter recorrente com as agressões
ao ambiente motivadas pela mercantilização da vida, sacrificada ao
objectivo da maximização dos lucros. Admite-se que a destruição brutal
da floresta esteja a destruir o habitat natural de muitos animais
selvagens (portadores de vírus com os quais convivem bem), empurrados
para zonas onde é mais fácil e mais frequente o contacto com os humanos,
facilitando assim a passagem desses vírus dos animais para as pessoas,
que não têm anti-corpos para os enfrentar. Daí o carácter recorrente das
pandemias e a provável ocorrência de outras em futuro próximo. O
capitalismo, que até aqui gerava crises cíclicas, parece gerar agora
também pandemias cíclicas, com efeitos desastrosos no plano económico e
social. Vale a pena levar a sério estes avisos: a defesa do ambiente tem
que estar no centro da nossa luta contra o capitalismo, pelo socialismo.

3. A pandemia deixou claro que as receitas do neoliberalismo são só para
os pobres, porque são eles os condenados a sofrer as consequências das
leis do mercado e das políticas impostas para garantir as liberdades do
capital. Os ricos e os grandes potentados do capital vivem do estado
(dos impostos pagos por quem trabalha), que lhes garante lucros
abundantes sem riscos nem falências, que asfixia o estado social que
protege os trabalhadores mas alimenta o estado social para as empresas
(«corporate welfare», em bom português…).
Confirma-se o que já sabíamos: quando as coisas correm mal, todos os
neoliberais exigem que o estado faça tudo para salvar as empresas e para
fazer os trabalhadores pagar a crise. Mais uma vez, enquanto milhões de
milhões são entregues ao sector financeiro e às grandes empresas,
abandonam-se os trabalhadores ao desemprego, situação que, em países
como os EUA, significa a perda da casa e do seguro de saúde. É o que
está a acontecer com os cerca de 40 milhões de trabalhadores americanos
que caíram no desemprego. A pandemia está a aumentar a pobreza e a
acentuar as desigualdades.

Em meados dos anos 1950, alguém escreveu que o liberalismo só poderia
ser levado à prática pela força das armas. A vida confirmou isto mesmo.
Os pinochets e os suhartos semeados pelo imperialismo já o tinham
deixado claro, dramaticamente. Agora, perante a atitude patologicamente
irresponsável do Presidente do Brasil (que representa interesses e
poderes que estão muito para além dele), muitos vêm falando da ameaça de
genocídio dos povos indígenas da Amazónia.

O que se passou na Europa com as políticas de austeridade posteriores à
crise aberta em 2008 não deixou dúvidas sobre a vocação totalitária do
neoliberalismo. Agora, na ‘Europa civilizada’, o Primeiro-Ministro da
Holanda (um dos campeões do neoliberalismo) não teve vergonha de vir a
público defender que «os pacientes mais idosos ficarão a receber
tratamento em casa, considerando-se que, dadas as poucas hipóteses de
sobrevivência, será mais humano deixá-los [morrer, digo eu] nos seus
lares». Para o Sr. Mark Rutte (e para todos os Trumps e Ruttes), os
idosos são «bocas inúteis»: não produzem nada e só dão despesa. Se eles
morrerem, a segurança social pode diminuir as suas despesas (pode mesmo
deixar de existir) e as finanças sãs agradecem. É uma frieza assassina e
genocida, a lembrar o ‘profissionalismo’ dos carrascos de Auschwitz (por
alguma coisa se chamou ao nazismo a peste castanha), sempre preocupados
em agir segundo as regras da racionalidade económica capitalista,
buscando empenhadamente ‘tecnologias’ capazes de melhorar a eficiência
(a produtividade) do genocídio.

4. A tentativa de esconder o papel decisivo do estado é uma construção
ideológica destinada a fazer crer que tudo decorre, naturalmente, das
leis naturais do mercado. Mas a História mostra que foi o estado que
construiu o mercado e que o estado esteve sempre presente na economia,
porque o capitalismo exige a presença do estado capitalista. E as
políticas neoliberais têm exigido sempre um estado forte, capaz de
impor, pela violência, o fascismo de mercado, contra os trabalhadores.

Com a pandemia, todos puderam ver que o neoliberalismo não significa o
fim do estado-nação: a economia parou, à escala mundial, não por razões
do mercado, mas por imposição do estado; e são os estados nacionais que
se perfilam como as únicas entidades que podem organizar o processo de
recuperação da economia. Como se tivéssemos saído de uma guerra, há quem
entenda ser necessário regressar à economia de guerra (ao comunismo de
guerra) dos tempos da Segunda Guerra Mundial. Todos esperam que os
estados nacionais recuperem as empresas, recuperem os serviços públicos,
assumam o comando da revitalização da economia e da re-industrialização.
A luta pela democracia é a luta por políticas públicas que sirvam os
trabalhadores e não o grande capital.
A pandemia permitiu a todos perceber que, ao contrário do que defendem
os neoliberais, os malfadados serviços públicos são essenciais quando é
necessário salvaguardar direitos tão fundamentais como o direito à saúde
e o direito à vida. Sem serviços públicos de qualidade não há democracia
digna desse nome.

Já se sabia que os EUA não têm um sistema público de saúde. A pandemia
revelou as dificuldades da Itália para lhe fazer frente, mas mostrou que
o défice dos EUA quanto a médicos e camas de hospital por mil habitantes
é ainda maior. No Reino Unido, foi preciso o Primeiro-Ministro ser
infectado com alguma gravidade para ele próprio assumir que foi o
Serviço Nacional de Saúde que o salvou e que é necessário investir mais
no National Health Service.

Em Portugal, foi o SNS (tão debilitado pelas políticas de sucessivos
governos do PS e da direita) que tirou das suas fraquezas as forças
necessárias para lutar contra a pandemia e salvar a vida de muitos
portugueses. Os ‘negociantes’ da saúde recusaram-se a receber doentes
(com o COVID-19 ou outros), porque tiveram medo da contaminação, porque
recearam não estar à altura das exigências do momento, talvez,
sobretudo, porque se aperceberam de que o momento não era para fazer
grandes negócios. A Ministra da Saúde disse na AR (20.5.2020) que não
foi possível recorrer aos privados para obter ajuda no combate à
pandemia porque, mesmo os que tinham convenções com o estado, entraram
em lay-off, disseram que queriam suspender as convenções em vigor,
disseram que não estavam disponíveis, disseram que tinham medo:
«fecharam-se quando o País mais precisava deles» e «isso fica agarrado à
pele, não desaparece.»

5. – A pandemia veio mostrar que a solidariedade não faz parte dos
valores do mundo capitalista. Para se exibir junto dos seus apaniguados
como um ‘macho’, Trump retirou o apoio financeiro dos EUA à OMS quando
ela mais precisa de ajuda. E os defensores da civilização cristã e
ocidental recusaram na ONU a proposta de levantamento das sanções
ilegais impostas a países como o Irão e a Venezuela, de modo a facilitar
a aquisição de produtos médicos indispensáveis ao combate à pandemia. Na
Europa, a Alemanha e a França proibiram a exportação de ventiladores e
máscaras para países em situação de emergência, como a Itália. Valeu aos
italianos a solidariedade da China e de Cuba.

A pandemia veio confirmar que a ‘Europa’ é exactamente o contrário do
que apregoam os apóstolos do culto europeísta: é incapaz de se assumir
como uma entidade solidária. Porque isso não está na sua natureza. Por
outro lado, a luta contra o coronavírus tem servido de pretexto para
disseminar outra pandemia ainda mais grave, reforçando os fascismos já
instalados em vários países da ‘Europa democrática’, de que são exemplos
mais destacados a Hungria e a Polónia. E, por toda a parte, os
interesses de sempre, estão a fazer tudo para que se reforce a campanha
(em marcha acelerada desde 2008) no sentido de reduzir os direitos
fundamentais dos trabalhadores e mesmo os direitos, liberdades e
garantias. Modos autoritários de gestão estão a ser adoptados como algo
normal em várias esferas da sociedade, até mesmo nas universidades
públicas. Há que estar atento a estes desvios, porque é a democracia que
está em causa.

A pandemia mostrou que a Cuba socialista – apesar de sofrer, há décadas,
os pesados danos causados pelo bloqueio ilegal imposto pelos EUA, com a
cumplicidade da ‘Europa’ – tratou dos seus problemas, ajudou a Itália e
ainda enviou material médico e uma equipa de 200 médicos para ajudar a
África do Sul (para além do auxílio que prestou a outros países). E
mostrou que o Vietname foi capaz de ultrapassar a crise pandémica sem
vítimas e ainda teve disponibilidade para oferecer 440 mil equipamentos
de protecção pessoal aos EUA. Foi uma nova vitória do povo vietnamita
sobre o arrogante imperialismo americano.

O ‘filme’ do que se tem passado nestes últimos meses obrigou o mundo a
recordar que a China vem aumentando, há décadas, o investimento em
investigação científica, representando, actualmente, 25% do investimento
mundial neste domínio. A China está na vanguarda do conhecimento em
áreas estratégicas como os semi-condutores, a computação quântica e a
inteligência artificial. Os EUA, em vez de responderem no mesmo terreno,
aumentam o seu já monstruoso orçamento militar (40% do orçamento
mundial). A guerra nunca trará (nunca trouxe) a solução: nas condições
actuais, significará o holocausto global.

6. É nos períodos de dificuldade que se conhecem as pessoas. E também os
estados e os sistemas económico-sociais. Neste tempo de pandemia, o
mundo assistiu ao reaparecimento da pirataria, desta vez nos aeroportos
por onde transitavam máscaras e ventiladores saídos da China com destino
a determinados países, mas desviados em benefício dos estados piratas.
Mais uma vez, o capitalismo fica muito mal na fotografia.

Mas esta pandemia veio igualmente revelar outras pandemias tanto ou mais
perigosas do que ela. O Director do Programa Alimentar Mundial falava há
pouco da «pandemia de desnutrição» que ameaça muitos milhões de
trabalhadores em todo o mundo. Segundo dados da OMS, nos primeiros cinco
meses deste ano morreram, em todo o mundo, 237.469 pessoas de
coronavírus; mas morreram 327.262 de malária e 3.731.427 de desnutrição.
São muitas pandemias, que não podem resolver-se através de acções de
caridade por mais bem-intencionadas que elas sejam.

Estudos vários indicam que as desigualdades aumentam nas ocasiões de
pandemia, dentro da cada país e entre os vários países. Já todos vimos
como esta pandemia está a atingir muito mais duramente os pobres e as
minorias étnicas ‘inferiores’. Para o mundo de gente que vive nas ruas
das grandes cidades da ‘sociedade da abundância’ o conselho das
autoridades médicas para que fiquem em casa parece uma brincadeira de
mau gosto ou uma manifestação de humor negro. O mesmo se diga da
situação dos milhões de pessoas em todo o mundo impedidas de trabalhar e
aconselhadas a ficar em casa, sem poderem contar com o mínimo apoio do
estado. Que casas têm os milhões que vivem em favelas, com este ou com
outros nomes? De que vivem estas pessoas se não trabalharem? Dizer-lhes
que fiquem em casa é quase o mesmo que dizer-lhes que morram da ‘cura’
para não morrerem da doença.

A OMS falou já de infopandemia. E há quem fale da pandemia de
info-falsidades (ou pandemia de fake news). A verdade é que a pandemia
do coronavírus tem sido transformada pelos interesses dominantes em
objecto de luta política, nomeadamente por parte dos EUA, que viu
expostas as suas debilidades quando se trata de defender a vida e não de
provocar a morte.

Outros têm aproveitado a onda para semear um clima de medo, que leve as
pessoas, especialmente os trabalhadores, a aceitar o que lhes oferecem,
porque os tempos não estão para brincadeiras. Os ‘fabricantes de
notícias’ sabem muito bem que o medo é paralisante e priva as pessoas do
discernimento e da coragem necessários para enfrentar as situações
difíceis. Por isso difundem o medo e o pânico. Cabe-nos fortalecer a
confiança no futuro.

7. Em finais de Abril, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma
Declaração/Apelo na qual se defende a colaboração internacional para a
descoberta de uma vacina e se proclama o direito de todos, em todo o
mundo, a aceder a ela, logo que seja descoberta. Esta é a única atitude
digna dos homens.

A verdade, porém, é que a corrida a esta vacina está a transformar-se em
instrumento de luta política e comercial entre as grandes potências. Uma
vergonha para o mundo. Trump já tocou trombetas anunciando que a chegada
dos EUA em primeiro lugar à obtenção de uma vacina será (mais) uma
vitória do seu projecto America first, transformando em propaganda
eleitoral uma questão tão relevante para todo o mundo. Empenhado em
ganhar esta ‘corrida’, para a qual parte mal colocado, o governo
americano tem tentado ‘conquistar’ vários laboratórios fora dos EUA,
oferecedendo-lhes financiamento gratuito com a contrapartida de serem os
EUA os primeiros a receber a vacina.

A Administração Trump tentou adquirir um laboratório alemão que tinha
alguma investigação promissora nesta área. Mas o governo alemão fez
gorar o negócio, alegando que «a Alemanha não está à venda». Mais falado
tem sido o caso do laboratório francês SANOFI, um dos maiores grupos
farmacêuticos à escala mundial e o primeiro na área das vacinas,
resultante da fusão de duas empresas públicas deste sector, alimentado
por investigação desenvolvida no sector público e financiado com muitos
milhões de euros que saem anualmente do erário público. A certa altura,
soube-se que a SANOFI tinha feito com uma empresa americana do ramo um
acordo de parceria financiado pelo governo dos EUA, que exigiam ser os
primeiros a receber a vacina. Perante o escândalo, Macron teve de vir a
público dizer que «a vacina contra o COVID-19 devia ser um bem global»,
um bem «à margem das leis do mercado». O governo francês terá avançado
com mais dinheiro e a SANOFI recuou, depois de a França e a Alemanha
terem conseguido reunir cerca de sete mil milhões de euros destinados à
investigação para a descoberta da vacina.

Um sinal de esperança vem da mensagem enviada pelo Presidente da China à
73.ª Assembleia Mundial da Saúde (18.5.2020). Nela, a China anuncia um
donativo de 2 mil milhões de dólares para ajudar os países
subdesenvolvidos a enfrentar as exigências e as consequências económicas
e sociais do coronavírus e anuncia que a vacina COVID-19 que vier a ser
produzida na China «converter-se-à num bem público mundial.»

Este é o caminho. Parece óbvio que, uma vez descoberta uma vacina, ela
deverá ser considerada património comum da Humanidade e colocada à
disposição de todos os povos do mundo.

8. Perante a pandemia, a ‘Europa’, enquanto entidade, ainda pouco mais
fez do que discursos.

O Banco Central Europeu (BCE) tem feito o que fez depois da crise aberta
em 2008: comprando títulos da dívida pública no mercado secundário,
fornece liquidez a baixo custo aos bancos para que estes continuem a
fazer os seus negócios de sempre. Esquece-se o fundamental: o dinheiro
fácil não chega para que os ‘empreendedores’ invistam. Nenhum
capitalista investe quando há tanta capacidade produtiva por utilizar,
quando as incertezas abundam e quando não há expectativas de lucro.

Se não pensarmos em alterações estruturais profundas, dizem os livros
que, nestas situações, só o estado pode promover políticas de promoção
do emprego e de combate ao desemprego, fazendo os investimentos que os
privados não fazem; só as despesas públicas podem criar riqueza e
emprego e distribuir rendimento pelas famílias, para que estas alimentem
o consumo interno, essencial, num país como o nosso, para dar vida às
pequenas e médias empresas que são a base da nossa estrutura produtiva,
que criam riqueza e emprego.

Esta política exige medidas que combatam a fraude e a evasão fiscal; que
façam depender os descontos patronais para Segurança Social do volume de
negócios ou dos lucros globais e não do número de trabalhadores; que
aliviem a carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho e que tributem
as grandes fortunas, os rendimentos do capital e as transacções
financeiras; que se traduzam em transferências significativas do estado
para as famílias mais pobres (prestações sociais).

E exige um sistema de controlo efectivo da banca, dos seguros e dos
mercados financeiros. E a presença de um banco central que financie as
políticas públicas pela via da emissão de moeda, sem gerar dívida
pública, e que compre títulos da dívida nacional directamente ao estado,
no mercado primário, sem a intermediação da banca privada. É o que se
passa nos EUA, no Reino Unido, na Rússia, na China e em tantos outros
países. Mas a ‘Europa’ é o bastião da independência dos bancos centrais,
uma invenção dos monetaristas/neoliberais que se traduz na privatização
dos estados nacionais, colocados na mesma situação de uma qualquer
empresa ou de uma qualquer família: quando precisam de dinheiro vão aos
bancos e estes é que decidem se financiam (e em que condições) ou não
financiam as políticas públicas. O BCE é o banco dos bancos, mas não é o
banco central nem da UE nem dos estados-membros que adoptaram o euro
como moeda única.

O chamado Banco de Portugal não é um verdadeiro banco central: é uma
simples sucursal do BCE, obrigado a cumprir as ordens do ‘patrão’. Em
benefício do BCE, perdemos a soberania monetária: não controlamos a
emissão de moeda, não definimos as taxas de juro nem as taxas de câmbio
(não podemos utilizá-las como instrumento de política), não definimos os
índices da inflação, nem sequer somos titulares do direito de supervisão
sobre os bancos que operam no nosso País (todos nas mãos do capital
estrangeiro, salvo a CGD). Perdemos também a soberania orçamental,
porque é a ‘Europa’ que dita os limites do défice orçamental e os
limites da dívida pública, e porque o OE é agora aprovado em Bruxelas,
limitando-se a AR a carimbar a decisão dos eurocratas de serviço.
Enquanto continuarmos assim não passamos de colónias do grande capital
financeiro.

9. É já claro que vão ficar muito para trás os países mais pobres e mais
débeis, com menor capacidade para enfrentar, com recursos próprios, a
crise económica e social associada à pandemia. Ao abrigo da
flexibilização do regime das ajudas de estado, a Alemanha já ajudou as
empresas alemãs com muitos milhões de euros, mas outros países não podem
fazer o mesmo.

Actuando mais uma vez como ‘donos’ da ‘Europa’, a França e a Alemanha
vieram anunciar o propósito de uma ‘ajuda’ de 500 mil milhões de euros
(que poderia não ser um empréstimo…) para combater a crise. Ora este
montante é cerca de 1/3 do valor reclamado pelos países mais carecidos
de ajuda, e diz-se que tem de ser utilizado tendo em conta «as
prioridades da UE». Tudo claro. É mais uma proposta inserida na
estratégia de ‘colonização’ das periferias europeias pelas duas
potências dominantes: é preciso evitar que as indústrias estratégicas
caiam nas mãos de investidores não europeus, não para garantir o seu
controlo pelos povos dos estados-membros da UE (a privatização, a preços
de saldo, é a palavra de ordem), mas para garantir o seu controlo pelo
grande capital alemão e francês. É mau que a EDP seja controlada por
capitais chineses (e, para Portugal, é mau, a meu ver), mas já seria
óptimo se fossem empresas alemãs ou francesas as donas da EDP (como
acontece com a PT), porque assim se garantiria a soberania económica e
industrial da UE…

O curioso é que, de imediato, um dos vice-presidentes da Comissão
Europeia veio lembrar que o Pacto de Estabilidade e Crescimento não foi
suspenso e que, passada a onda, é necessário regressar às boas práticas
das finanças sãs (cortar nas despesas sociais para evitar o défice das
contas públicas e ‘libertar’ o dinheiro necessário para pagar os
encargos da dívida). Esta ‘Europa’ não tem segredos, é sempre igual a si
própria: imperialista, neoliberal, austeritária, que sacrifica os povos
para salvar os bancos.

10. Na sequência da proposta franco-alemã, a Comissão Europeia anunciou
que vai propor ao Conselho Europeu a criação de um Fundo de Recuperação
de 750 mil milhões de euros, obtidos através de um empréstimo contraído
pela Comissão, que os estados-membros amortizarão mais tarde, entre 2027
e 2058. Em princípio, 500 mil milhões de euros serão transferidos a
fundo perdido, mas o valor global fica muito aquém do que o próprio
Parlamento Europeu considera necessário. Por outro lado, já se anunciam
cortes de 3% no Quadro Financeiro 2021-2027, o que significa que
Portugal vai receber menos do Fundo de Coesão e da PAC. Por outro lado,
a Comissão vai falando no lançamento de impostos europeus, através dos
quais diz poder recolher mais 420 mil milhões de euros. Um caminho
perigosíssimo (essas receitas são subtraídas aos orçamentos nacionais) e
sem base legal, porque só estados soberanos podem criar impostos e a UE
não é um estado federal nem existe uma soberania europeia.

No momento em que escrevo, a ‘ajuda’ da UE continua incerta, porque o
Conselho Europeu (CE) ainda não reuniu para aprovar a proposta da
Comissão. A decisão do CE tem de passar depois pelo Parlamento Europeu,
para regressar depois ao Conselho, lá para Outubro. Muita água ainda tem
de passar por baixo das pontes… A própria Presidente do BCE veio a
público criticar a lentidão com que a questão está a ser tratada, porque
ela atrasa o combate às dificuldades e aumenta o custo do ‘tratamento’.

Alguns já dizem, sem base séria, que Portugal receberá uma pipa de
massa: 15 mil milhões de euros a título de subvenção, e 11 mil milhões a
título de empréstimo. Ainda não se sabe quando chegará e muito menos
como chegará, através dos vários ‘instrumentos’ (oito, parece) que
filtrarão o acesso à pipa. Mas adivinha-se que, se vier, a ‘ajuda’ há-de
vir ‘envenenada’. Segundo os critérios da proposta franco-alemã, parece
que Portugal seria um contribuinte líquido: país solidário, iríamos
ajudar outros mais carecidos. Pode ser que não sejamos contribuinte
líquido segundo os critérios da proposta da Comissão. Mas é certo que,
em termos absolutos, vamos receber muito menos do que a Alemanha, a
França, a Itália e a Espanha.

Dizem alguns ‘comentadores’ que a atribuição da ‘ajuda’ há-de ser,
certamente, condicionada à adopção de reformas estruturais…, de que logo
apontam, como mais prováveis, as reformas da legislação laboral. O
Ministro Santos Silva já falou de «uma agenda de reformas ambiciosa» e
de «planos nacionais de investimentos e de reformas» que terão de ser
negociados com Bruxelas e terão de respeitar as prioridades definidas
por Bruxelas (que podem não ser as nossas). As nuvens vão-se adensando…

Por falta de espaço não falarei aqui das complicações que poderão
resultar do tão falado acórdão do Tribunal Constitucional Alemão. É
dífícil fazer prognósticos a este respeito. É provável que nem o Governo
alemão nem o Banco Central alemão queiram exactamente o que resulta
deste acórdão. Mas o Tribunal Constitucional é, na Alemanha, uma
instituição quase sagrada e não é provável que seja desrespeitado. Se
ele vier a decidir que as instituições alemãs (Parlamento, Governo e
Banco Central) deverão pôr termo à sua participação nos programas de
aquisição de títulos da dívida pública pelo BCE, o que vai acontecer? A
Alemanha sai do euro? A UE e o euro aguentam ataques virais deste tipo?

11. Em Portugal, os responsáveis ao mais alto nível vêm insistindo no
apelo ‘patriótico’ à unidade nacional, que dizem indispensável à
recuperação da economia. Sem fazer juízos de intenções, direi que não é
um gesto inocente, porque as escolhas políticas nunca são inocentes.
Parece-me claro que ele visa desmobilizar os que não estão dispostos a
abdicar da luta pelos seus direitos. Foi fácil o acordo quanto às
medidas recomendadas pela ciência para combater a pandemia. Mas não é de
esperar o mesmo quanto à definição de políticas económicas e sociais
capazes de ultrapassar os problemas decorrentes da pandemia.

Sabemos hoje que o regime de lay-off simplificado (alegadamente para
salvar as empresas e travar o aumento do desemprego) beneficiou
sobretudo as grandes empresas: 54% de entre elas estão a receber ajudas
do estado (quase 40% do total das ajudas), sendo que só 27% das
microempresas e 32% das pequenas empresas recebem apoio do estado por
essa via. Os 800 mil trabalhadores atingidos por esse regime perderam
1/3 do seu salário (pagando o estado 84% do restante). A ‘fatalidade’ de
sempre: em caso de crise, os trabalhadores que paguem a crise.

O Governo anunciou há pouco o Programa de Estabilização Económica e
Social, acompanhado da declaração de que tudo foi feito para salvar as
empresas, para recuperar a economia e para salvaguardar o emprego e o
rendimento dos trabalhadores e das famílias mais carenciadas. Se as boas
intenções bastassem, tudo estaria resolvido. Mas não bastam. Não posso
analisar aqui em pormenor o Programa do Governo. Mas penso que ele não
foi tão longe como seria justo e bom para a economia. O regime de
lay-off simplificado mantém-se até ao fim de Julho. Apesar das melhorias
prometidas, os trabalhadores acabarão por perder, este ano, dois ou três
meses de salário, um tributo muito mais pesado do que a taxa adicional
de 0,02% que será aplicada à banca (se for…). Vale a pena recordar que,
durante vários anos, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, as
taxas marginais dos impostos sobre os rendimentos mais elevados e sobre
sucessões e doações atingiram, mesmo nos EUA, valores próximos dos 90%.
Porque não se lança um imposto sobre as grandes fortunas? Porque não se
tributam as transacções financeiras? Os lucros das grandes empresas
portuguesas vão ser tributados ou vão continuar a refugiar-se na Holanda
(a Holanda ‘virtuosa’, que não quer ouvir falar de solidariedade
europeia)? Uma exigência mínima: o dinheiro destas ajudas não pode sair
da Segurança Social, mas do Orçamento do Estado.

A pandemia veio provar que os privados não existem para tratar da saúde
das pessoas, mas para ganhar dinheiro à custa da saúde das pessoas. O
comportamento dos empresários da saúde foi vergonhoso (ou criminoso:
desertaram quando o País estava em guerra contra um inimigo poderoso).
Como disse a Ministra da Saúde, isso fica colado à pele, não desaparece.
É um ferrete para sempre. Pois bem. Vai o Governo extrair todas as
consequências do que disse a Ministra? Vai investir a sério no SNS ou
vai injectar mais dinheiro para depois o transferir para os privados?
Vai acabar com as parcerias público-privadas na saúde ou vai continuar a
financiar os ‘mercenários’ do sector, enriquecendo quem deserta da luta
em plena batalha? Se tudo continuar na mesma, direi, parafraseando a
Ministra, que essas atitudes ficarão para sempre coladas à pele do
governo que as tomar. Já está colada à pele deste Governo a vergonha de
não acabar com as taxas moderadoras no SNS. Porque não aproveita agora,
para dizer aos portugueses que o SNS é o único serviço de saúde que conta?

E o que se vê não é nada animador. Em Coimbra, acaba de ser anunciado o
encerramento da urgência do Hospital dos Covões. Antes de o associarem
aos HUC para o liquidar (aspiração de sempre dos ‘barões’ da Faculdade
de Medicina), aquele Hospital era um hospital a sério, com várias
unidades de referência. E faz falta em Coimbra. A sua ‘morte’ só se
justifica por força de interesses corporativos ou para abrir espaço ao
negócio da saúde em Coimbra (com a funcionamento em pleno do Hospital
dos Covões o comércio da saúde não teria grande futuro na cidade do
Mondego).

O que vai fazer o Governo português? Vai continuar a ser o melhor aluno
da ‘Europa’? Ou vai opor-se ao roubo de direitos aos trabalhadores
(disfarçado de reformas estruturais) que já se anuncia como moeda de
troca de uma ‘ajuda’ que ainda não se viu? Num país com tantas
deficiências (e tantos ‘buracos negros’) na luta contra a corrupção
(denunciados até pelas instâncias comunitárias), o dinheiro vai ser
gasto em segredo ou vai haver transparência democrática? O Governo vem
gastando fortunas com as PPP, mas os OE não esclarecem em que condições.
O Governo transferiu (e continuará a transferir) milhões e milhões para
o Novo Banco, mas nem a Assembleia da República conhece o contrato que
compromete o estado português. É uma vergonha para a democracia. Vai
fazer o mesmo com a ajuda à TAP?

12. Sabemos todos que as classes sociais existem e que a luta de classes
(que não esteve de quarentena nestes últimos dois ou três meses) ganha
redobrada importância em situações como a que vivemos. Porque o estado
capitalista, como estado de classe, vai actuar (com máscara ou sem
máscara) na defesa dos interesses dominantes, como está na sua natureza
(esperar outra coisa é como pedir peras ao olmo…).
A situação exige uma resposta rigorosa e firme. A luta de classes vai
revestir-se de especial dureza e a luta ideológica vai ser, mais uma
vez, um dos palcos mais importantes da luta de classes.

/Fonte:
http://www.omilitante.pcp.pt/pt/367/Economia/1442/Pandemia-e-luta-de-classes.htm?tpl=142/

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/pandemia-e-luta-de-classes/
17/7/2020

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