terça-feira, 14 de julho de 2020

“Nosso objetivo como jornalistas deve ser tomar os meios de comunicação de massa”


IELA 15 Anos - Elaine Tavares - YouTube
“Nosso ob­je­tivo como jor­na­listas deve ser tomar os meios de co­mu­ni­cação de massa”, afirmou a nossa nova co­lu­nista Elaine Ta­vares, nesta en­tre­vista na qual a apre­sen­tamos a você, lei­tora e leitor do Cor­reio da Ci­da­dania.
Elaine já atua como jor­na­lista há dé­cadas, tendo pas­sado por te­le­vi­sões, jor­nais e rá­dios de todo tipo, do campo co­mer­cial ao po­pular – e é neste campo onde tem atuado nos úl­timos 22 anos através de rá­dios co­mu­ni­tá­rias, do IELA (Ins­ti­tuto de Es­tudos La­tino-Ame­ri­canos da UFSC) e de di­versos ou­tros pro­jetos. Dona de uma ca­pa­ci­dade crí­tica ímpar, pu­demos con­versar sobre as mais va­ri­adas e im­por­tantes ques­tões que en­tre­laçam o jor­na­lismo e a so­ci­e­dade, es­pe­ci­al­mente na atual con­jun­tura de pan­demia mis­tu­rada aos avanços do ca­pital e de um go­verno de ex­trema-di­reita em nosso país.
“O jor­na­lismo não pode ser neutro nem im­par­cial, ele tem que se com­pro­meter com a ví­tima, com a ‘co­mu­ni­dade de ví­timas do ca­pital’. Temos que des­mis­ti­ficar a ideia da neu­tra­li­dade e saber que temos con­dição, sim, de falar a partir do lugar do opri­mido, e isso não sig­ni­fica que vamos fazer um jor­na­lismo sub­je­tivo ou da nossa pró­pria von­tade, mas que vamos cons­truir e pro­duzir a in­for­mação de tal ma­neira que a pessoa possa re­co­nhecer o que é sin­gular, o que é par­ti­cular e o que é uni­versal”, afirmou Elaine.
Ao longo da con­versa, o leitor po­derá notar que todas as ideias ex­postas nesta breve in­tro­dução são pro­fun­da­mente to­cadas pela en­tre­vis­tada, que, entre ou­tras coisas, de­fende a im­por­tância do jor­na­lista fugir da prá­tica bu­ro­crá­tica da pro­fissão e buscar a cri­ação de ma­te­rial que traga uma pers­pec­tiva ampla e uni­ver­sa­li­zante do fato no­ti­ciado. In­cluindo as im­pres­sões do re­pórter. Se­gundo Elaine, sem essa ca­ra­te­rís­tica, o jor­na­lismo vira preza fácil para a atual in­dús­tria de dis­paros de no­tí­cias falsas, entre ou­tras mi­sé­rias da atu­a­li­dade que jogam contra a função da pro­fissão.
“Como é que eu, Elaine Ta­vares, jor­na­lista de Flo­ri­a­nó­polis, que tra­balha em uma rádio co­mu­ni­tária, posso com­petir com o ga­bi­nete do ódio do Edu­ardo Bol­so­naro? Vou dis­parar minha ma­téria no má­ximo uma cen­tena de vezes por dia, en­quanto que uma mídia co­mer­cial ou uma mídia da di­reita, dessas que estão aí para fazer a ca­beça das pes­soas, dis­param mi­lhões de men­sa­gens por mi­nuto. Qual é a nossa efi­cácia e como vamos com­petir com isso? A ba­talha não está dentro da rede, mas na nossa ca­pa­ci­dade de cons­truir, fora do jor­na­lismo, no pro­cesso po­lí­tico, uma pos­si­bi­li­dade de trans­for­mação desse sis­tema, porque senão podem mudar as pla­ta­formas, mas sempre vamos estar em des­van­tagem”, ana­lisou.
Leia a se­guir a en­tre­vista com­pleta.
Cor­reio da Ci­da­dania: Em pri­meiro lugar muito obri­gado por aceitar o con­vite para ser co­lu­nista do Cor­reio da Ci­da­dania, é um prazer enorme tê-la co­nosco. E para co­meçar a nossa con­versa, pu­bli­camos em março um ar­tigo teu cha­mado ‘Os car­re­ga­dores de voz’, onde pu­demos ler uma boa re­flexão crí­tica sobre o papel do jor­na­lismo na so­ci­e­dade. Pode co­mentar um pouco mais a res­peito da atu­ação dos meios de co­mu­ni­cação di­ante da atual con­jun­tura?
Elaine Ta­vares: Es­tava co­men­tando esses dias com o Miro, do Barão de Ita­raré, que tinha fi­cado feliz du­rante esse pe­ríodo da pan­demia porque vimos como de re­pente, do nada, o jor­na­lismo re­agiu. O jor­na­lismo es­tava quase morto, nin­guém mais dava bola pra jor­na­lista, e com a pan­demia o jor­na­lismo veio com força. Os te­le­jor­nais am­pli­aram seu tempo e enfim fi­zeram boas ma­té­rias e pro­du­ziram in­for­mação. Achei isso fan­tás­tico em um pri­meiro mo­mento, e fi­quei bem ani­mada, pensei: ‘que bom, quem sabe agora pegam firme’.
Mas de­pois in­fe­liz­mente vi que não cor­res­pondeu. Isso mostra o que o Adelmo Genro, teó­rico gaúcho e autor de O Se­gredo da Pi­râ­mide – para uma te­oria do jor­na­lismo mar­xista, já dizia no seu tra­balho em 1987, em que de­finiu o quanto que a in­for­mação jor­na­lís­tica é uma ne­ces­si­dade subs­tan­cial, ou seja, as pes­soas têm ne­ces­si­dade dela. E é por isso que quando essa in­for­mação re­al­mente apa­rece, como apa­receu agora, as pes­soas vão buscar ali onde ela está. Então, fi­quei con­tente em um pri­meiro mo­mento. Mas ao mesmo tempo, e por outro lado, o jor­na­lismo fica só no plano da in­for­mação. E mesmo agora o que vemos é aquele jor­na­lismo que não con­segue ul­tra­passar esse plano. O má­ximo que esse jor­na­lismo con­segue chegar é a esse viés li­beral de ‘ouvir os dois lados’. E não se dão conta, ou não querem se dar conta, de que o jor­na­lismo tem muitos lados e que temos que trazer para o leitor, o es­pec­tador ou o ou­vinte uma pers­pec­tiva uni­ver­sa­li­zante da­quele fato no­ti­ciado.
E o jor­na­lismo não faz isso. Não fez agora na pan­demia e con­tinua não fa­zendo. Por­tanto esse jor­na­lismo co­mer­cial re­al­mente não tem nada para nos ofe­recer, ele não é jor­na­lismo. Como diz Noam Chomsky, é uma pla­ta­forma de pro­pa­ganda do sis­tema que está aí.
E o mais triste é que na ver­dade, quando vamos buscar in­for­mação nos meios de co­mu­ni­cação mais al­ter­na­tivos, vemos que também acabam re­pro­du­zindo essa forma de fazer jor­na­lismo. Abordam te­má­ticas que o jor­na­lismo co­mer­cial não aborda, mas também acabam pro­du­zindo um jor­na­lismo da mesma forma, do mesmo jeito. Esse quadro acaba sendo bas­tante frus­trante pra gente. E se olharmos para o jor­na­lismo de causa, e muito do jor­na­lismo al­ter­na­tivo e in­de­pen­dente, muitos se uti­lizam das fontes ofi­ciais e de ma­neiras de cons­trução da no­tícia muito se­me­lhantes – é sempre a mesma coisa. Também é um jor­na­lismo de car­re­ga­mento de voz, como de­fini no ar­tigo, não tem a im­pressão do re­pórter, não tem o con­texto his­tó­rico, apenas ofe­rece in­for­ma­ções quase que pon­tuais.
In­fe­liz­mente o jor­na­lismo é uma prá­tica que não vemos na mídia co­mer­cial e muito pouco nas mí­dias al­ter­na­tivas.
Cor­reio da Ci­da­dania: O que pensa do Cor­reio da Ci­da­dania? Que tipo de jor­na­lismo re­pre­sen­taria, na sua opi­nião, uma missão nossa e dos veí­culos como o nosso? O que po­demos trazer de novo para o mundo e para a pro­fissão?
Elaine Ta­vares: Acom­panho o Cor­reio há bas­tante tempo, fi­quei muito hon­rada de ser con­vi­dada para par­ti­cipar, gosto muito de ver meus textos pu­bli­cados, também leio bas­tante o jornal, está aqui nos fa­vo­ritos. É claro que a gente busca nessas mí­dias, entre elas o Cor­reio, as te­má­ticas que não en­con­tramos na mídia co­mer­cial. São mí­dias im­por­tantes.
Eu sou da mídia al­ter­na­tiva, eu tra­balho com isso há 40 anos, estou há 22 anos na rádio co­mu­ni­tária, então eu sei da im­por­tância do jor­na­lismo al­ter­na­tivo que tra­balha com ou­tras pers­pec­tivas e abor­da­gens. O que eu queria dizer é que o jor­na­lismo al­ter­na­tivo e in­de­pen­dente é apenas ‘jor­na­lismo’, ou seja, po­dermos trazer a in­for­mação de tal ma­neira que o leitor possa ab­sorver a uni­ver­sa­li­dade do fato. Aquilo que o Adelmo Genro nos en­sina, de não ficar só numa par­ti­cu­la­ri­dade da re­a­li­dade, de trazer para o leitor a at­mos­fera to­ta­li­zante do fato em si. E isso é muito di­fícil fazer.
Eu sei dessa di­fi­cul­dade e con­verso com os co­legas jor­na­listas sobre isso. Todos sa­bemos como é caro fazer re­por­tagem, não é fácil, mas a gente tinha que ter como meta, como o sul da nossa exis­tência en­quanto mídia al­ter­na­tiva, pelo menos uma vez por se­mana fazer um ma­te­rial assim. É como disse, não basta a gente fale do que se ig­nora nos meios co­mer­ciais, mas também é pre­ciso falar de tal ma­neira que a gente também não ma­ni­pule o leitor, que não traga as nossas ver­dades sobre o fato, que a gente possa pro­duzir jor­na­lismo pro­pri­a­mente dito.
Vejo a di­fi­cul­dade em chegar a isso em vá­rios dos nosso veí­culos, e en­tendo. Não temos tempo, não temos di­nheiro, não temos os re­cursos para uma grande re­por­tagem. Mas o que eu sempre in­sisto é que de­vemos fazer um es­forço de pro­duzir jor­na­lismo. Não apenas ar­tigos de opi­nião ou textos pan­fle­tá­rios, que acabam não sendo muito bem quistos – as pes­soas não querem um texto pan­fle­tário, querem um texto que traga in­for­mação e for­mação, para que ela possa sair dali, não apenas in­for­mada, mas também for­mada na­quela te­má­tica.
Cor­reio da Ci­da­dania: Como en­xerga as mu­danças pelas quais a pro­fissão passou nos úl­timos anos com o ad­vento e apri­mo­ra­mento dos smartphones e suas redes so­ciais?
Elaine Ta­vares: Ainda hoje es­tava es­cre­vendo aqui uma con­fe­rência que vou dar para as rá­dios co­mu­ni­tá­rias jus­ta­mente tra­zendo essa dis­cussão.
Até bem pouco tempo eu dizia que as redes so­ciais ti­nham um papel im­por­tante mas que a vida ma­te­rial é mais im­por­tante. A im­por­tância das redes se deu jus­ta­mente pois ela trazia mais vi­si­bi­li­dade à vida real. No en­tanto, as redes aca­baram se fe­chando em si mesmas e sendo es­paços que re­pro­duzem a men­tira, a ma­ni­pu­lação e a de­for­mação de opi­nião, que é o que es­tamos vendo agora.
Mas eu sempre tive a cer­teza de que mesmo nesse es­paço o jor­na­lismo po­deria se fazer como um lugar de res­piro, ou seja, um lugar onde as pes­soas po­de­riam re­al­mente buscar uma in­for­mação de qua­li­dade. Que a pessoa sou­besse que de­ter­mi­nado jor­na­lista está ali pro­du­zindo uma ma­téria com uma pers­pec­tiva de to­ta­li­dade. Uma ma­téria que tenta trazer o má­ximo de vi­sões sobre o tema, para que as pes­soas possam se in­formar e ver cre­di­bi­li­dade na­quilo, porque o mundo da in­ternet é muito du­vi­doso, as men­tiras e bo­atos apa­recem com muito mais força do que a ver­dade e a ci­ência. Tenho per­ce­bido que o jor­na­lismo também não apro­veita esse es­paço.
E vejo ainda como a mídia al­ter­na­tiva, por exemplo as rá­dios co­mu­ni­tá­rias, usam como fontes as no­tí­cias que saem nos jor­nais co­mer­ciais, ou seja, não produz in­for­mação local, não produz in­for­mação de qua­li­dade, e toma as ‘ofi­ciais’ como ver­dade. Re­su­mindo, é o que eu sempre digo: o pro­blema não é a rede, mas o que fa­zemos dentro dessa rede.
Es­crevi o se­guinte em um texto sobre a questão das redes: ‘Como é que eu, Elaine Ta­vares, jor­na­lista de Flo­ri­a­nó­polis, que tra­balha em uma rádio co­mu­ni­tária, posso com­petir com o ga­bi­nete do ódio do Edu­ardo Bol­so­naro? Vou dis­parar minha ma­téria, no má­ximo uma cen­tena de vezes por dia, en­quanto que uma mídia co­mer­cial ou uma mídia da di­reita, dessas que estão aí para fazer a ca­beça das pes­soas, dis­param mi­lhões de men­sa­gens por mi­nuto. Qual é a nossa efi­cácia e como vamos com­petir com isso?’
O pro­blema é que a ba­talha não está dentro da rede, mas na nossa ca­pa­ci­dade de cons­truir, fora do jor­na­lismo, no pro­cesso po­lí­tico, uma pos­si­bi­li­dade de trans­for­mação desse sis­tema, porque senão podem mudar as pla­ta­formas, mas sempre vamos estar em des­van­tagem.
Muitas vezes as pes­soas me atiram muita pedra na ca­te­goria, por isso. E não é que eu sou pes­si­mista, sou re­a­lista. Dentro do ca­pi­ta­lismo, o má­ximo que po­demos fazer é re­sistir e já basta! Pre­ci­samos atacar, pre­ci­samos cons­truir ou­tras formas de vida, que sig­ni­fi­quem para o jor­na­lismo se ex­pressar de uma ma­neira mais in­te­res­sante em uma outra so­ci­e­dade, porque nessa aqui nós não temos chance.
Cor­reio da Ci­da­dania: No seu blog pes­soal, você rei­vin­dica o con­ceito de Jor­na­lismo de Li­ber­tação. Pode ex­plicar um pouco, para além da mor­fo­logia, o que pensa sobre isso e como se aplica ao fazer jor­na­lismo?
Elaine Ta­vares: Esse con­ceito de Jor­na­lismo de Li­ber­tação eu fui buscar no En­rique Dussel, um teó­rico ar­gen­tino, um dos cri­a­dores da Fi­lo­sofia da Li­ber­tação, de onde saiu a Te­o­logia da Li­ber­tação É uma fi­lo­sofia muito pro­funda, com uma base muito sim­ples. Ele diz o se­guinte: “em um mundo em que tudo se desfez, onde não há mais as grandes nar­ra­tivas, o que sobra de uni­versal? O que pode valer aqui, na Índia, na China, em Ban­gla­desh e nos EUA?” Ele vai res­ponder: “é a ví­tima do ca­pital, a co­mu­ni­dade de ví­timas do ca­pital”.
Esta é uma uni­ver­sa­li­dade que deve nos ir­manar, e aí ele co­loca no sen­tido de quem quer trans­formar a re­a­li­dade. Então isso vai chegar na se­guinte dis­cussão pra mim: o jor­na­lismo não pode ser neutro nem im­par­cial, como já sa­bemos. Ele tem que se com­pro­meter com a ví­tima, com a co­mu­ni­dade de ví­timas do ca­pital. Então temos que saber que quando vamos re­pro­duzir uma in­for­mação, es­ta­remos re­pro­du­zindo desse ponto de vista: o da ví­tima do ca­pital. Os tra­ba­lha­dores, as mu­lheres, os ne­gros, os in­dí­genas, enfim, essas ca­te­go­rias que estão sob opressão. Esse é o sen­tido do jor­na­lismo de li­ber­tação: des­mis­ti­ficar a ideia da neu­tra­li­dade e saber que temos con­dição, sim, de falar a partir do lugar do opri­mido, e isso não sig­ni­fica que vamos fazer um jor­na­lismo sub­je­tivo ou da nossa pró­pria von­tade, mas que vamos cons­truir e pro­duzir a in­for­mação de tal ma­neira que a pessoa possa re­co­nhecer o que é sin­gular, o que é par­ti­cular e o que é uni­versal.
Temos que deixar claro para o leitor que há um ponto de vista que está co­lo­cado do lado das ví­timas, porque seria do feitio do jor­na­lismo. Parte da ne­ces­si­dade de dis­cutir o jor­na­lismo que não pode abrir mão de ter um ponto de vista. Ou vocês pensam que o pes­soal lá da Folha não tem um ponto de vista? Eles pro­duzem o jor­na­lismo deles a partir do ponto de vista da classe do­mi­nante. E o jor­na­lismo de li­ber­tação vai pro­duzir a partir do ponto de vista da classe tra­ba­lha­dora.
Cor­reio da Ci­da­dania: Que ou­tras se di­fi­cul­dades são im­postas além da questão ma­te­rial e de re­cursos que fazem com que esse jor­na­lismo, e não o nosso, seja he­gemô­nico?
Elaine Ta­vares: Tem a ver também com a for­mação que re­ce­bemos na uni­ver­si­dade. A uni­ver­si­dade é um nú­cleo de con­ser­va­do­rismo. A uni­ver­si­dade em si, a ins­ti­tuição uni­ver­si­dade é um braço ar­mado da classe do­mi­nante. Não po­demos es­perar ter dentro da uni­ver­si­dade os ins­tru­mentos para lutar contra isso.
A uni­ver­si­dade quando forma um jor­na­lista, já o faz para ser dessa ma­neira. Ela já te co­loca dentro de uma forma. Lembro aqui na UFSC que ti­vemos uma ba­talha no curso de jor­na­lismo que ins­ti­tuiu uma cá­tedra da RBS du­rante longo tempo, uma emis­sora aqui de Santa Ca­ta­rina, a mais forte, do grupo Si­rotski. Então ima­gina um curso de jor­na­lismo com uma cá­tedra da RBS, o que esse curso tem a ofe­recer? Pra­ti­ca­mente o se­guinte: ‘Como ser um jor­na­lista da RBS’. E o que é ser um jor­na­lista da RBS? É ser um jor­na­lista que não ques­tiona. É ser um jor­na­lista que não é crí­tico, que vai re­pro­duzir o dis­curso do poder, da classe do­mi­nante, e isso es­tava sendo en­si­nado dentro da es­cola.
Tanto aqui nessa cá­tedra ci­tada, quanto em ou­tros es­tados com cá­te­dras se­me­lhantes vin­cu­ladas à em­presas via edi­tores e jor­na­listas das em­presas mi­nis­trando aulas e pa­les­tras. Mas além disso, tem toda a for­mação do jor­na­lista, que não está pre­o­cu­pada com os grandes dramas na­ci­o­nais e com a trans­for­mação do país. Os cursos de jor­na­lismo das fe­de­rais são todos tec­ni­cistas. Eles en­sinam a mexer nos softwares que o mer­cado exige, mas não te en­sinam a per­guntar – e como dizia Marcos Fa­er­mann, a ca­pa­ci­dade mais im­por­tante do jor­na­lista é saber per­guntar.
Você está em uma co­le­tiva com um go­ver­nador que gastou de­zenas de mi­lhões com res­pi­ra­dores fan­tasmas e não tem um jor­na­lista com ca­pa­ci­dade de fazer uma per­gunta de­cente. Sim­ples­mente não tem. Porque eles não apren­deram a fazer isso. Então isso também tira da fa­cul­dade um monte de gu­ri­zada que não tem as con­di­ções in­te­lec­tuais para poder pro­duzir essas per­guntas, porque não es­tu­daram.
A for­mação é um ponto. E quando bato nessa tecla, levo muita pe­drada porque são co­legas nossos, com­pa­nheiros de es­querda, pro­fes­sores que estão ali­nhados com par­tidos po­lí­ticos de es­querda, que formam co­mis­sões de dis­cussão do en­sino de jor­na­lismo e que não aceitam de ma­neira ne­nhuma essa crí­tica. É muito di­fícil. Quantos con­gressos da Fenaj eu já não fui e levei pe­dradas? Você faz essa crí­tica e as pes­soas caem de pau em cima de ti como se tu qui­sesses des­truir as coisas. A crí­tica não é para des­truir, pelo con­trário, ela é jus­ta­mente para cons­truir. Mas é muito di­fícil fazer essa dis­cussão com pes­soas que pensam como se es­ti­vessem em uma igreja, ou seja, não pode fazer crí­ticas ao seu ‘jesus’ e seus ‘santos’ par­ti­cu­lares, nem a nin­guém. É muito di­fícil para nós que temos essa coisa da crí­tica.
Cor­reio da Ci­da­dania: Como perder o ad­je­tivo ‘al­ter­na­tivo’ que pa­rece estar co­lado em nossas testas, com algum gla­mour, é ver­dade, mas que acaba por de­notar também nossas li­mi­ta­ções?
Elaine Ta­vares: É uma ex­cre­cência que temos que abo­minar. Não po­demos querer ser al­ter­na­tivos. Não po­demos dizer que temos ‘or­gulho de sermos al­ter­na­tivos’. Não temos que ser al­ter­na­tivos. Temos que ter o con­trole dos meios de massa.
Porque se nós ti­vermos o con­trole dos meios de massa, po­de­remos pro­duzir isso que nós pro­du­zimos e po­de­remos gerar co­nhe­ci­mento e opi­nião crí­tica, e não será pelos meios al­ter­na­tivos que fa­remos isso, pois aqui fa­lamos com o nosso pró­prio pú­blico. Fa­lamos para os con­ver­tidos. Não é que a gente não deva falar para os con­ver­tidos, porque os con­ver­tidos podem se des­con­verter muito ra­pi­da­mente também. por isso que eu digo que a mídia al­ter­na­tiva é uma mídia de re­sis­tência. Ponto.
A gente luta para não morrer, para não deixar o pen­sa­mento crí­tico morrer. E no meio do ca­minho, per­demos gente também. Mas o nosso ho­ri­zonte, o nosso sul, não pode ser a mídia al­ter­na­tiva. Tem que ser a to­mada dos meios de pro­dução de massa. Eu quero ter na mão a es­tru­tura da Globo.
Ima­gine nós como chefes de jor­na­lismo da Globo, mas uma Globo sob o con­trole da gente, dos tra­ba­lha­dores, da mai­oria da po­pu­lação. Então é por isso que um outro de­bate que eu trago para dentro da Fenaj e que sou ab­so­lu­ta­mente crí­tica é essa ideia da de­mo­cra­ti­zação da co­mu­ni­cação. Eles tra­ba­lham com a ideia de que a co­mu­ni­cação pode ser de­mo­cra­ti­zada, mas não pode. Não no mundo ca­pi­ta­lista.
O que é de­mo­cra­tizar a co­mu­ni­cação? É ter mais verbas para as mí­dias al­ter­na­tivas? É ter mais ne­gros, mais mu­lheres, mais gays, mais in­dí­genas, nos jor­nais e nos te­le­jor­nais? Isso não é de­mo­cra­tizar, é manter tudo como está.
In­sisto no con­ceito de so­be­rania co­mu­ni­ca­ci­onal. Não de de­mo­cracia das co­mu­ni­ca­ções. Ou seja, se­ríamos nós ge­rindo os meios de co­mu­ni­cação de massa. Não quero viver a vida in­teira ali na Rádio Cam­peche ten­tando passar in­for­mação pra 10 mil pes­soas. Temos que querer as massas, chegar a 97% do ter­ri­tório, essa é a nossa ba­talha.
Cor­reio da Ci­da­dania: Pen­sando na pan­demia e po­lí­tica na­ci­onal mar­cada por in­sa­ni­dades do pre­si­dente, em li­nhas ge­rais, como você ana­lisa o atual mo­mento?
Elaine Ta­vares: Vejo um de­sen­contro. E não é um de­sen­contro de que ‘as pes­soas es­tejam per­didas,’ ou que ‘o go­verno es­teja per­dido’, porque isso me dá um pro­fundo ódio. O go­verno não está per­dido, não está con­fuso. Esse go­verno se elegeu para fazer isso. É claro que a pan­demia não es­tava no ho­ri­zonte dele, mas esse go­verno se elegeu para con­fundir e para pro­vocar essa con­fusão nas pes­soas.
Vemos que o ga­bi­nete do ódio está a todo vapor. Eu par­ti­cipo e fico li­gada em vá­rios grupos bol­so­na­ristas e vejo que aquilo é rá­pido. Só um exemplo: a in­for­mação de que mi­lhares de mi­li­tares re­ce­beram 600 reais, quando saiu, em menos de 5 mi­nutos já con­tava com ma­te­rial nesses grupos bol­so­na­ristas para des­con­truir essa in­for­mação, e de tal ma­neira que por mais que haja pre­sente in­for­mação, provas e ar­gu­mentos plau­sí­veis, essas pes­soas não acre­ditam em ti, en­tende? Elas acre­ditam na­quilo que vem no whats app do fu­lano, do bel­trano, do si­crano, que são essas pes­soas que con­formam essa rede de con­fi­ança desse grupo ‘ma­luco’, entre aspas, que hoje do­mina a men­ta­li­dade bra­si­leira.
Me in­co­moda muito quando dizem que é um go­verno ma­luco, de­sen­con­trado, não é. En­quanto fi­camos gri­tando nas redes contra as ma­lu­quices do pre­si­dente, na Câ­mara dos De­pu­tados está tudo pas­sando, e quando nos dermos conta, não vai ter so­brado nada. Eu acho muito com­pli­cado. Isso me afeta pes­so­al­mente, po­li­ti­ca­mente e co­le­ti­va­mente.
Me ir­rita ver a es­querda bra­si­leira tão in­gênua. Ainda mais agora que não po­demos nem dis­cutir isso com os com­pa­nheiros porque es­tamos em iso­la­mento so­cial. É muito clara pra mim a ló­gica desse go­verno, como já es­tava clara lá no co­meço. Quem leu o plano de go­verno Bol­so­naro não tem sur­presa al­guma, já es­tava tudo pla­ne­jado. Essa forma como ele atua é his­tri­ô­nica, ele é um ator, e está fa­zendo exa­ta­mente aquilo que ele veio pra fazer. Não tem ne­nhuma con­fusão aí.
A gente vê os meios de co­mu­ni­cação re­pro­du­zindo essas bo­ba­gens, os jor­na­listas se sub­me­tendo a hu­mi­lhação na­quele cer­ca­dinho, não de­viam mais ir pra lá. O que o vai­doso mais pre­cisa é de ho­lo­fote. Quando tu tira o ho­lo­fote dele, não sobra nada. Ou seja, tem ou­tras formas da gente com­bater essa per­so­na­li­dade egó­latra do pre­si­dente que po­deria ser, por exemplo, jo­gando luz aos temas im­por­tantes da nação.
Em vez de estar no cer­ca­dinho vendo o Bol­so­naro en­fiar o dedo no nariz, esses jor­na­listas de­ve­riam estar na Câ­mara dos De­pu­tados ex­pli­cando para a po­pu­lação o que está sendo feito por lá. Estão pas­sando leis que le­ga­lizam a gri­lagem de terras in­dí­genas e vemos pouquís­sima in­for­mação sobre isso.
Os bol­so­na­ristas estão dentro de uma bolha que é im­pos­sível en­trar. Eu falo isso porque tem pes­soas da minha fa­mília que são, e se o Bol­so­naro disser amanhã para matar os co­mu­nistas, é capaz de algum desses pa­rentes vir me matar. É tí­pico dos tempos de crise somar essas coisas: re­li­gião, fun­da­men­ta­lismo, ódio; esse tipo de coisa sempre apa­rece em mo­mentos de pro­funda crise e nós vi­vemos uma pro­funda crise do ca­pital, que já acon­tecia antes da pan­demia. Então como não temos um par­tido po­lí­tico que dê uma di­reção, nem um mo­vi­mento so­cial capaz de dar di­reção, ne­nhuma li­de­rança po­lí­tica no país, onde que as pes­soas vão se agarrar? Em pastor, em bispo, etc..
A gente também tem de fazer a au­to­crí­tica e en­tender que não con­se­guimos cons­truir um ar­ca­bouço par­ti­dário e so­cial que con­se­guisse dar conta das lutas desse país. E quando ti­vemos um go­verno ‘dos tra­ba­lha­dores’, o que fez foi ajudar a apro­fundar esse pro­cesso e não a cri­ação de uma al­ter­na­tiva real aos tra­ba­lha­dores.
Cor­reio da Ci­da­dania: Que li­ções po­demos tirar destas tra­gé­dias co­ti­di­anas e o que es­perar para os tempos vin­douros?
Elaine Ta­vares: Lembro que num en­contro que teve em Belo Ho­ri­zonte, quando a Dilma já so­fria pro­cesso de im­pe­di­mento, eu disse numa das salas que eu fiz, e também fui ape­dre­jada porque era um en­contro com muitos pe­tistas: que o PT ficou 15 anos no poder e não cons­truiu ne­nhuma al­ter­na­tiva co­mu­ni­ca­ci­onal. Ima­gina, 15 anos e não cons­truir nada.
Não teve mídia al­ter­na­tiva, nada, não se criou nada. Na Ve­ne­zuela, o Hugo Chávez em cinco anos já es­tava com 5 ca­nais na­ci­o­nais de te­le­visão, redes de rádio na­ci­o­nais, cir­cu­lando in­for­mação a nível na­ci­onal. Aqui, ti­vemos o PT no poder por 15 anos sem cons­ti­tuir nada, pelo con­trário, des­truiu coisas, per­se­guiu rá­dios co­mu­ni­tá­rias, entre ou­tros fatos. Essa lição o pes­soal não aprende, porque quando você faz essa crí­tica, eles te jogam pe­dras ao invés de pensar a res­peito. A im­pressão que eu tenho é que se, por al­guma obra má­gica, esse povo voltar amanhã para o poder, vão re­petir os mesmos erros. Pa­rece que não con­se­guimos avançar.
Outra coisa, tem pes­soas so­nhando que de­pois da pan­demia o mundo vai ser mais so­li­dário. Vai nada. Vai ser pior do que es­tava antes, porque te­remos uma massa ainda maior de de­sem­pre­gados, tra­ba­lhos que vão ser per­didos porque esse ne­gócio do te­le­tra­balho vai criar uma nova ló­gica para o tra­balho, e vamos ver como isso vai se trans­formar numa fer­ra­menta de do­mi­nação e de pressão e ex­plo­ração dos tra­ba­lha­dores muito forte nos dias que virão de­pois da pan­demia. Vai ar­ro­char ainda mais a vida dos tra­ba­lha­dores, sendo que eles já estão dando a vida.
A mai­oria das pes­soas que vai morrer nesse pro­cesso são os po­bres. Vejo com bas­tante pes­si­mismo o fu­turo, mas ao mesmo tempo com bas­tante oti­mismo. Vemos ex­pe­ri­ên­cias que são im­por­tantes e que brotam nesses mo­mentos. Tenho a es­pe­rança de que os tra­ba­lha­dores possam per­ceber essas coisas e cons­truir algo.
Con­tudo, é im­pos­sível fazer qual­quer tipo de trans­for­mação se não ti­vermos um par­tido re­vo­lu­ci­o­nário, que or­ga­nize a luta em nível na­ci­onal e que re­al­mente es­teja a ser­viço de uma trans­for­mação ra­dical. Acho que vai de­morar muito, não está à nossa porta a re­vo­lução, mas ao mesmo tempo, quando es­tu­damos a his­tória das re­vo­lu­ções no mundo, sempre há o mo­mento em que apa­rece uma faísca, quando não es­tamos es­pe­rando, al­guma coisa acon­tece e a po­pu­lação se le­vanta.
O pro­blema é que quando a po­pu­lação se le­vanta de ma­neira es­pon­tânea, se não tiver uma di­reção para ca­mi­nhar, esse mo­vi­mento vai se des­fazer. Temos exem­plos bem con­tem­po­râ­neos, como no Equador onde jo­garam um pre­si­dente pela ja­nela do pa­lácio, e aí quando chegou ‘na hora do vamos ver’ en­tre­garam a pre­si­dência para um bur­guês. Pre­cisa ter di­reção. E para ter di­reção, pre­cisa or­ga­ni­zação. E para ter or­ga­ni­zação pre­ci­samos de um par­tido po­lí­tico que se or­ga­nize em nível na­ci­onal. É isso que está fal­tando aqui no Brasil, mas que po­demos cons­truir. Tem muita gente boa tra­ba­lhando e pen­sando isso. Como já dizia Rubem Alves, a gente planta se­mentes para ár­vores sob as quais nunca nos sen­ta­remos. É triste isso, mas é a re­a­li­dade. Em geral as lutas que a gente trava no pre­sente vão abraçar as pró­ximas ge­ra­ções, não a nossa, mas a gente tem que fazer essa luta agora pelos que virão nesse fu­turo apa­ren­te­mente tão triste que vemos pela frente.

Raphael Sanz é jor­na­lista e editor-ad­junto do Cor­reio da Ci­da­dania.
Co­la­borou Ga­briel Brito, editor do Cor­reio da Ci­da­dania.
In
CORREIO DA CIDADANIA
8/7/2020

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