quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A vacina russa contra a COVID 19, sobre os ombros da URSS

 
 

*por Angeles Maestro [*]

Cartoon de Serko. Se escrevo este artigo é porque creio que ninguém está
a dizer o óbvio:   as equipas científicas russas foram capazes de criar
a vacina porque ainda existe uma poderosa estrutura estatal de
laboratórios de investigação que foi desenvolvida pela União Soviética.

O anúncio de que a Rússia já dispunha de uma vacina contra a Covid-19
deu lugar a massivas desqualificações prenhes de carga política e
económica. O alinhamento com os EUA por parte dos grandes meios de
comunicação, correias de transmissão da servil subordinação política ao
imperialismo norte-americano – que por outro lado se assemelha cada vez
mais àquele que tenta salvar-se agarrando-se a quem se afoga –, leva a
desqualificar tudo o que vem da Rússia com a irracionalidade e
sistematicidade de uma mola.

No caso da vacina russa, a rejeição mediática generalizada está também
untada pelos poderosíssimos interesses das multinacionais farmacêuticas.
Os impérios do medicamento já esfregavam as mãos e preparavam os seus
cofres para recolher os lucros da venda mundial de centenas de milhões
de vacinas. Ainda está fresca a memória dos milhares de milhões de
dólares obtidos pela Gilead [1] <#notas> com o Sovaldi ou pela Roche com
o Tamiflu [2] <#notas> , fármaco criado contra uma epidemia, a da Gripe
A, que nunca existiu.

Muito se ironizou sobre os dois lapsos de Fernando Simón
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Sim%C3%B3n> ao atribuir a vacina
à URSS. Desconheço qual é a opinião de Simon sobre a URSS, mas
efectivamente, os avanços soviéticos em saúde pública e medicina
preventiva – alguns dos quais sobreviveram à Perestroika de Gorbachev,
que considerava suspeito de ineficácia tudo o que era público – tornaram
possível uma vacina à qual, significativamente, chamaram Sputnik V.

*A URSS e a saúde pública *

A Revolução de Outubro de 1917 deu origem ao primeiro sistema público de
saúde, universal, baseado na promoção da saúde e na prevenção da doença
e que exigia no seu funcionamento a participação da população na tomada
de decisões [3] <#notas> .

Num Estado que apresentava no início do século XX taxas de mortalidade
infantil elevadíssimas – de cada 1.000 mortos, dois terços eram crianças
com menos de 5 anos – e de mortalidade por doenças infecciosas (a
mortalidade por tuberculose era de 400/100.000), a implementação de
serviços de saúde em todos os recantos do imenso território foi
acompanhada pela implementação de medidas de prevenção generalizadas [4]
<#notas> .

A vacinação de toda a população foi mais uma medida, entre outras também
decisivas. O acesso a água potável e ao tratamento de resíduos, à
electricidade ("O comunismo é o poder dos sovietes mais a electrificação
de todo o país" V.I. Lénine [5] <#notas> ), a habitação higiénica com
aquecimento, a boa alimentação, a condições de trabalho decentes, a
educação, … e ao poder político – /conditio sine qua non / –, são muito
mais importantes do que os medicamentos para melhorar a saúde das
populações [6] <#notas> .

A Rússia czarista já havia desenvolvido uma importante trajectória
científica em microbiologia, e especificamente em vacinas, que não
chegavam ao seu povo. Antes da descoberta da vacina contra a varíola por
Edward Jenner em 1796 e uma vez que a doença devastava desde há séculos
a vida de milhões de pessoas em todo o mundo, aplicava-se um
procedimento arriscado: a /variolização. / Provocava-se o contágio para
induzir imunidade, embora o risco de morte fosse elevado.

Após a morte por varíola do czar Pedro I em 1730, a imperatriz Catarina
II, juntamente com o seu séquito, submeteu-se publicamente a tal
procedimento – que teve êxito – e utilizou-o como arma propagandística a
favor da ciência e contra a superstição. Efectivamente, com apoio
estatal foram desenvolvidas instituições científicas relacionadas com a
imunologia.

O Centro Nacional de Investigação de Epidemiologia e Microbiologia,
responsável pela descoberta da vacina contra a Covid 19, tem o nome do
cientista Fiodor Gamaleya
<https://en.wikipedia.org/wiki/Nikolay_Gamaleya> . Gamaleya desenvolveu
nos finais do século XIX importantes investigações sobre a raiva com
Luis Pasteur e com o seu apoio fundou o primeiro Instituto
Bacteriológico da Rússia, o segundo do mundo. Seguiram-se descobertas de
Gamaleya e outros cientistas russos sobre vacinas e mecanismos de
transmissão da cólera, peste, tifo, etc.

O triunfo da Revolução em 1917 criou as condições para a aplicação
desses avanços, que tinham permanecido encerrados em laboratórios, ao
conjunto da população. Realizou-se a primeira campanha de vacinação
universal da história da humanidade:   em 18 de Setembro de 1918, o
Comissário do Povo para a Saúde Pública N.A. Semashko adoptou o
"Regulamento de vacinação contra a varíola" baseado no relatório
científico de Gamaleya e em Abril de 1919 o Presidente do Conselho de
Comissários do Povo V.I. Lénine assinou o decreto correspondente. Foi a
primeira campanha de vacinação universal da história da humanidade [7]
<#notas> .

No início dos anos 1930, a URSS foi o primeiro território do mundo a
anunciar a erradicação da varíola. À escala mundial esse facto ocorreu
50 anos depois.

Os anos em que a OMS gozou de prestígio e autoridade mundiais – antes de
ser engolida pelas multinacionais farmacêuticas – foram tempos de grande
influência da URSS. Em 1958, Viktor Zhdanov, vice-ministro da Saúde
soviético, propôs à Assembleia da OMS um plano para erradicar a varíola
à escala global, que foi aprovado e posto em marcha. Algo mais de vinte
anos depois, ao declarar a erradicação da varíola no planeta, o director
da OMS lembrou a contribuição extraordinária da URSS para os países
carentes de recursos: 400 milhões de doses da vacina [8] <#notas> .

*A vacina contra a poliomielite na URSS e a da Covid 19 *

Em meados do século XX uma nova epidemia causava grande mortandade e
incapacitações: a poliomielite. Nos EUA, em 1955, foi desenvolvida a
primeira vacina, baptizada Salk com o nome do seu descobridor. Pouco
depois, o virologista Albert Sabin descobriu outro tipo de vacina mais
eficaz, mais barata e mais segura (a vacina de Salk tinha apenas 60% de
eficácia). Dado o sucesso da primeira não foi possível testá-la nos EUA.

Os cientistas soviéticos, Mikhail Chumakov e Anatoly Smorodintsev, foram
enviados aos Estados Unidos. Sabin e Chumakov acordaram continuar a
desenvolver a vacina em Moscovo. Vários milhares de doses da vacina
foram trazidos dos Estados Unidos numa mala vulgar e as primeiras
vacinações começaram.

Chumakov e a sua companheira, a virologista Marina Voroshilova,
iniciaram a experiência em Moscovo com os seus próprios filhos. A vacina
consistia num vírus debilitado, utilizava-se a via oral e era
administrada por meio de um torrão de açúcar, de forma que não
necessitava de pessoal qualificado.

Em ano e meio acabou a epidemia na URSS. Em 1960, 77,5 milhões de
pessoas foram vacinadas. Albert Sabin foi chamado a depor acusado de
actividades anti-americanas.

Uma anedota da época acaba por ser de grande actualidade. No Japão, a
poliomielite assolava a população infantil e apenas a vacina Salk, de
eficácia limitada e além disso em quantidade insuficiente, estava
disponível. A vacina produzida na URSS não conseguia, por óbvias razões
políticas e económicas, as licenças para ser importada. Depois de
diversas peripécias, milhares de mulheres japonesas saíram à rua para
exigir a vacina e alcançaram o seu objectivo. O filme soviético-japonês
"Step" do realizador Alexander Mitta conta a história [9] <#notas> .

Deve sublinhar-se que os avanços russos em matéria de vacinas
continuaram após a queda da URSS. O Centro Nacional de Investigação de
Epidemiologia e Microbiologia descobriu recentemente uma vacina contra o
Ébola e trabalha actualmente em várias linhas de investigação, uma das
mais avançadas a que tenta encontrar a vacina contra outro Coronavírus,
o MERS-Cov. Desta forma, como reiteraram proeminentes investigadores
russos, a rapidez do processo com a vacina contra a Covid-19 deve-se ao
facto de se ter trabalhado sobre plataformas criadas há anos que
avançavam em direcções semelhantes. De momento, a Rússia anunciou a
fabricação de 1.000 milhões de doses para 20 países solicitantes.

A experiência continuará a escrever história. O que não se pode ignorar
é que a campanha para desacreditar a vacina russa é orquestrada por
gente que nada tem a ver com procedimentos científicos e tem, sim, muita
relação com poderosíssimos interesses económicos, entre outros, da
indústria farmacêutica.

Por outro lado, apesar dos lapsos de Fernando Simón, nem Putin é Lénine,
nem a Rússia é a URSS. Mas nós, trabalhadores de todo o mundo, não
deveríamos esquecer que a gigantesca gesta operária de Outubro de 1917 e
a derrota do fascismo na Segunda Guerra Mundial, ainda continua a
permitir alcançar, como neste caso, avanços científicos desenvolvidos
sobre décadas de trabalho não sujeito aos interesses do capital e
produzidos em instituições públicas.

Não é de todo provável que, apesar do sofrimento causado pela pandemia e
do evidente desastre do sistema de saúde no Estado espanhol, o governo
"progressista" se atreva a dar prioridade à saúde do seu povo e
enfrentar, mesmo que apenas uma vez, o poder de um dos baluartes do
imperialismo:   a indústria farmacêutica.

A conquista da independência, da verdade, terá que vir de outras mãos,
da construção de outro poder capaz de derrotar a barbárie.

21/Agosto/2020

[1] A multinacional norte-americana Gilead quadruplicou os seus lucros
ao comprar a patente do medicamento Sofosbuvir para Hepatite C. O
medicamento, descoberto em laboratórios públicos dos Estados Unidos, era
vendido em função da negociação com o Estado comprador. Um tratamento na
Índia custava entre 100 e 200 dólares e em Espanha, 25.000.
www.nogracias.eu/2014/04/10/tamiflu-la-mayor-estafa-de-la-historia/
<http://www.nogracias.eu/2014/04/10/tamiflu-la-mayor-estafa-de-la-historia/>

[2] O Tamiflu da farmacêutica Roche, a maior vigarice da história.
Governos de todo o mundo gastaram milhares de milhões de dólares num
medicamento contra uma epidemia que não existiu. A multinacional ocultou
resultados de investigações que demonstraram que não encurtava os
internamentos, nem reduzia as complicações e que, pelo contrário, tinha
importantes efeitos secundários. O governo de Zapatero gastou 333
milhões de euros em Tamiflú em 2009, em plena crise, quando a despesa
pública era maciçamente cortada na saúde e outros serviços públicos.
www.nogracias.eu/2014/04/10/tamiflu-la-mayor-estafa-de-la-historia/
<http://www.nogracias.eu/2014/04/10/tamiflu-la-mayor-estafa-de-la-historia/>

[3] Uma ampla referência à obra seminal sobre os princípios fundamentais
e o desenvolvimento do sistema de saúde soviético e o ensino das
profissões da saúde "Social Hygiene and Public Health Organization" por
A.F. Serenko e V.V. Ermakor, acessível em espanhol, pode ser consultada
em https: www.scielosp.org/article/rcsp/2017.v43n4/645-660/
<https://www.scielosp.org/article/rcsp/2017.v43n4/645-660/>
[4] Um resumo das origens do Sistema de Saúde da URSS e da figura de
Nikolai Semasko, primeiro Comissário do Povo para a Saúde, pode ser
encontrado em russo, com tradução automática, aqui:
regnum.ru/news/polit/ 2318307.html
<https://regnum.ru/news/polit/%202318307.html>
[5] "Lâmpada de Ilyich" A primeira lâmpada foi inventada por um
engenheiro russo em 1874 e sua chegada às aldeias mais remotas da Rússia
tornou-se o símbolo da Revolução. Aqui pode ver pormenores do GOELRO, o
plano de electrificação de toda a Rússia.
https://es.wikipedia.org/wiki/GOELRO <https://es.wikipedia.org/wiki/GOELRO>
[6] Sobre o médico prussiano Rudolf Virchov, patologista de destaque e
considerado o fundador da Saúde Pública.
http://webs.ucm.es/centros/cont/descargas/documento28401.pdf
<http://webs.ucm.es/centros/cont/descargas/documento28401.pdf>
[7] A história da primeira campanha de vacinação universal da história
da humanidade e da erradicação da varíola na URSS pode ser consultada
aqui:   books.google.es/...
<https://books.google.es/books/about/%D0%9F%D0%B0%D1%82%D0%BE%D0%B3%D0%B5%D0%BD%D0%BD%D1%8B%D0%B5_%D0%B4%D0%BB%D1%8F_%D1%87%D0%B5%D0%BB%D0%BE%D0%B2%D0%B5.html?id=3Y1EDwAAQBAJ&redir_esc=y>

[8]
https://www.who.int/mediacentre/news/notes/2010/smallpox_20100517/es/
<https://www.who.int/mediacentre/news/notes/2010/smallpox_20100517/es/>
[9] Com base nesta história, o realizador Alexander Mitta filmou em 1988
a coprodução sovieto-japonesa "Step", com Leonid Filatov e Komaki
Kurihara nos papéis principais. Oleg Tabakov, Elena Yakovleva, Vladimir
Ilyin, Garik Sukachev actuaram com eles. A sua canção "My Little Babe" é
reproduzida no filme
www.academia.edu/39610881/CINE_RUSO_Historia_y_literatura_rusa_y_española <https://www.academia.edu/39610881/CINE_RUSO_Historia_y_literatura_rusa_y_espa%C3%B1ola>


*Ver também:
# Une belle histoire de virus (contre la virophobie ambiante...)
<https://germinallejournal.jimdofree.com/2020/03/27/une-belle-histoire-de-virus-contre-la-virophobie-ambiante/>
, de Guillaume Suing
# A vacina Sputnik V como salvadora da humanidade
<https://www.resistir.info/pandemia/vacina_sputnik_11ago20.html> , de
Kirill Dmitriev
# Los crímenes de las grandes compañías farmacéuticas
<https://resistir.info/livros/crimenes_farmaceuticas.pdf> , livro de
Teresa Forcades i Vila
# Todo sobre la vacuna rusa (incluido lo que otros no te cuentan)
<https://www.youtube.com/watch?v=HYoei_dQLV4> , vídeo
# Claves del éxito de Cuba contra el coronavirus (no lo verás en otros
medios) <https://www.youtube.com/watch?v=3yxWohFv9yw> , vídeo
# **Cuba’s vaccine candidate 'Sovereign' begins clinical trials today
<https://peoplesdispatch.org/2020/08/22/cubas-vaccine-candidate-sovereign-is-all-set-to-enter-clinical-trials/>


[*] Médica, dirigente da Red Roja, Espanha

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/pandemia/vacina_russa_21ago20.html
27/8/2020

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