sábado, 22 de agosto de 2020

Dr. Jacques Pauwels: “Para promover os seus objectivos de maximização de lucros, o capitalismo está disposto a usar a “cenoura” da democracia, bem como o “pau” do fascismo” ***

 



Entrevista realizada por Mohsen Abdelmoumen

«É efectivamente um mito que o capitalismo seja uma espécie de gémeo
siamês da democracia. Por outras palavras, que o ambiente político
favorito do capitalismo seja a democracia. A história mostra-nos que o
capitalismo floresceu em sistemas altamente autoritários e apoiou
entusiasticamente esses sistemas.» Isso verifica-se de Bismark a
Pinochet passando por Hitler, e não ficará por aí, se isso lhe for
permitido.

*Mohsen Abdelmoumen: No seu livro “Big Business and Hitler”, fala da
colaboração da elite económica, industrial e financeira mundial com
Hitler. Hitler era um produto puro, um instrumento do sistema capitalista?*
*Dr. Jacques Pauwels: *o chamado “Nacional-Socialismo” de Hitler, na
realidade nenhuma forma de socialismo, era a variedade alemã do
fascismo, e o fascismo era uma manifestação do capitalismo, a forma
brutal e sórdida com que o capitalismo se manifestou no período entre
guerras em resposta à ameaça de mudança revolucionária, personificada
pelo comunismo, e a crise económica da Grande Depressão. Na medida em
que Hitler personificou a variedade alemã de fascismo, ele pode de facto
ser chamado “instrumento” do capitalismo; entretanto, como mencionei no
meu livro, o termo “instrumento” é realmente demasiado simplista. Seria
mais exacto definir Hitler como uma espécie de “agente”, um ser humano
complexo com uma mente própria, agindo em nome do capitalismo alemão,
mas nem sempre de acordo com os desejos dos capitalistas, ao invés de um
mero “instrumento” ou “ferramenta” do capitalismo alemão. Isso explica
por que os capitalistas alemães nem sempre estiveram perfeitamente
satisfeitos com os serviços de Hitler. Mas a vantagem desse arranjo era
que, após o colapso da Alemanha nazi, eles poderiam culpar o “agente”
por todos os crimes que havia cometido em seu nome.

*Tem o capitalismo uma necessidade vital do nazismo e do fascismo?*
O capitalismo é um sistema socioeconómico muito flexível, capaz de
funcionar em diferentes contextos políticos. É certamente um mito que o
capitalismo, eufemisticamente conhecido como “mercado livre”, seja uma
espécie de gémeo siamês da democracia, em outras palavras, que o
ambiente político favorito do capitalismo seja a democracia. A história
mostra-nos que o capitalismo floresceu em sistemas altamente
autoritários e apoiou entusiasticamente esses sistemas. Na Alemanha, o
capitalismo saiu-se extremamente bem quando Bismarck governava o Reich
com punho de ferro. A Alemanha permaneceu 100% capitalista sob Hitler, e
o capitalismo floresceu sob Hitler, antes e durante a guerra, como
demonstrei no meu livro. O capitalismo também pode e deseja fazer
parceria com a democracia, especialmente se as reformas democráticas
parecem necessárias para dissipar a ameaça de mudança revolucionária,
como por exemplo depois da Segunda Guerra Mundial, quando reformas
políticas e sociais democráticas (o Welfare State) foram introduzidas na
Europa Ocidental para inviabilizar as reivindicações muito mais
radicais, até mesmo revolucionárias, formuladas por movimentos de
resistência em países como a Itália e a França. Pode dizer-se que, para
promover os seus objectivos de maximização de lucros, o capitalismo está
disposto a usar a “cenoura” da democracia, bem como o “pau” do fascismo
e outras formas de autoritarismo, como as ditaduras militares.

*A ascensão de grupos neonazis e fascistas ao redor do mundo serve ao
grande capital e à oligarquia que governa o mundo?*
Como mencionado anteriormente, o fascismo é uma manifestação do
capitalismo. Em outras palavras, é a forma pela qual o capitalismo, como
um camaleão, ajusta a sua cor a um ambiente social e político em
mudança. O fascismo histórico dos anos 30, personificado por gente como
Mussolini e Hitler, reflectiu a resposta do capitalismo, na Itália e na
Alemanha, à ameaça dupla da mudança revolucionária ao estilo russo e da
Grande Depressão. Após a Segunda Guerra Mundial, quando o fascismo
estava presumivelmente morto e enterrado, o capitalismo, especialmente o
capitalismo americano, apoiou-se em sistemas neo, quase ou
cripto-fascistas para neutralizar ameaças semelhantes. Por exemplo no
Chile, onde Pinochet foi levado ao poder para bloquear reformas radicais
e manter o país seguro para o capital de investimento dos EUA. Hoje,
problemas económicos e sociais cada vez maiores, juntamente com ameaças
revolucionárias reais ou percebidas, fizeram com que o capitalismo em
vários países gerasse partidos e movimentos fascistas ou, se preferir,
quase ou neofascistas. De momento, o capitalismo não precisa de levar
esses fascistas ao poder; mas eles são muito úteis porque, como Hitler
com seu anti-semitismo, desviam a atenção do público das deficiências do
sistema capitalista culpando todas as coisas desagradáveis em bodes
expiatórios (de preferência de cor), como muçulmanos, refugiados, os
chineses e os Russkis. O escritor alemão Bertolt Brecht nos alertou
poeticamente, aludindo ao fascismo hitlerista e à capacidade inalterada
do capitalismo de gerar novas formas de fascismo:
“So was hätt einmal fast die Welt regiert! (O mundo quase era governado
por tal monstro!)
Die Völker wurden seiner Herr, jedoch (Felizmente, as nações derrotaram-no)
dass keiner von uns zu früh da triunphiert (Mas não nos alegremos
demasiado cedo)
Der Schoss ist fruchtbar noch (O útero de onde rastejou ainda é fértil.)
Aus dem das kroch”
(“A resistível ascensão de Arturo Ui”)

*A União Europeia culpa a URSS por iniciar a Segunda Guerra Mundial. O
que acha disso?*
Culpar a URSS e, por implicação, o seu estado-sucessor russo pela
Segunda Guerra Mundial, é uma declaração puramente política. Constitui
uma distorção monstruosa e vergonhosa da história. Nos anos 30, a União
Soviética procurou durante anos estabelecer uma aliança anti-Hitler com
a França e a Grã-Bretanha, mas foi sucessivamente rejeitada. A razão
para isso é que os cavalheiros no poder em Londres e Paris não queriam
ir para a guerra ao lado dos soviéticos contra Hitler, mas queriam que
Hitler usasse o poderio militar da Alemanha para marchar para o leste e
destruir a União Soviética enquanto assistiriam alegremente do lado de
fora. Hitler certamente queria a guerra, e é justamente culpado por
iniciar a Segunda Guerra Mundial. Mas os líderes franceses e britânicos
merecem uma parte da culpa porque encorajaram Hitler e o apoiaram com
sua política de “Apaziguamento”, por exemplo, oferecendo-lhe a
Tcheco-Eslováquia numa bandeja de prata no infame pacto que concluíram
com ele em Munique em 1938.
*
Ao culpar a URSS, os políticos e os media ocidentais não procuram
encobrir a sua própria horrível história de colaboração com Hitler e o
nazismo?*
Na verdade, culpando a União Soviética os países “ocidentais”, ou pelo
menos seus líderes, procuram desviar a atenção do seu próprio papel na
eclosão da Segunda Guerra Mundial. Por meio da sua infame política de
apaziguamento, os líderes britânicos e franceses encorajaram e
facilitaram os planos de Hitler para uma “cruzada” contra a União
Soviética. E a elite corporativa e financeira dos países ocidentais,
incluindo os Estados Unidos, colaborou de forma muito próxima - e muito
lucrativa - com Hitler, como demonstrei nos meus livros, “Big Business
and Hitler” e “The Myth of the Good War”.

*Nos seus livros “Big Business and Hitler” e “Myth of the Good War:
America and the Second World War”, desmantela o mito da “libertação” da
Europa pelos Estados Unidos quando sabemos que foi a vitória soviética
de Stalingrado que foi o ponto de viragem da guerra. Não é outra mentira
histórica dizer que os Estados Unidos libertaram a Europa? Os Estados
Unidos simplesmente não colonizaram a Europa? Como explica a dependência
da Europa em relação aos EUA e o facto de os europeus ainda seguirem a
política imperialista dos EUA? A NATO não se tornou obsoleta?*
É verdade que a União Soviética deu, de longe, a maior contribuição para
a vitória dos Aliados. Se o Exército Vermelho não tivesse conseguido
deter o rolo compressor nazi em frente a Moscovo em 1941 e obter grandes
vitórias em Stalingrado e outros lugares, Hitler teria vencido a guerra.
Mas os nazis tinham a máquina de guerra mais poderosa que o mundo já
vira, e derrotá-la exigiu contribuições de todos os exércitos aliados e
também de movimentos de resistência. Que o exército norte-americano deu
também uma contribuição importante não pode ser negado; entretanto, os
líderes americanos aproveitaram a presença de seu exército na Europa
Ocidental para estabelecer a sua hegemonia sobre aquela parte do mundo.
Em muitos aspectos, realmente não “libertaram” os países da Europa
Ocidental. Mesmo hoje, a Alemanha não é “livre” para pedir que as tropas
americanas deixem o seu solo, e a Bélgica e a Holanda devem tolerar a
presença de bombas atómicas norte-americanas no interior das suas
fronteiras. O presidente da França, Charles de Gaulle, não estava longe
do alvo quando descreveu a libertação norte-americana da França como uma
segunda “ocupação”, seguindo os passos da ocupação alemã. Ao contrário
dos alemães e belgas, ele teve a coragem de exigir que as tropas dos
Estados Unidos deixassem a França, e essa foi uma das razões pelas quais
a CIA parece ter-se envolvido em vários atentados contra a sua vida. Mas
mesmo de Gaulle verificou ser impossível evitar a adesão à NATO, que não
é de todo uma aliança de iguais, mas um clube de “satélites” europeus
dos EUA, estritamente controlado pelo Pentágono, e funcionando como um
departamento de vendas e relações públicas do “complexo
militar-industrial” norte-americano. A NATO foi originalmente criada
para defender a Europa Ocidental contra uma totalmente fictícia ameaça
proveniente da União Soviética e, portanto, deveria ter sido dissolvida
após o colapso do “império do mal”. Para os Estados Unidos, entretanto,
a OTAN é um muito útil e poderoso instrumento de controlo da Europa. E,
de facto, esse controlo, essa hegemonia, foi estabelecido pelos EUA nos
meses que se seguiram ao desembarque das suas tropas na Normandia em
1944. Ironicamente, essa conquista não teria sido possível se o Exército
Vermelho não tivesse anteriormente assestado golpes mortais à Alemanha
nazi.

*A intervenção norte-americana na Europa durante a Segunda Guerra
Mundial não foi simplesmente uma guerra capitalista? Não serve
principalmente aos interesses do imperialismo norte-americano e do seu
complexo militar-industrial?*
A Segunda Guerra Mundial resultou em duas guerras reunidas numa só. Por
um lado, foi efectivamente uma guerra “capitalista”, ou melhor, uma
guerra “imperialista”. O imperialismo foi/é a manifestação internacional
e mundial do capitalismo, envolvendo competição e conflito entre as
principais potências capitalistas/imperialistas sobre territórios
repletos de desiderata como matérias-primas (como o petróleo) e mão de
obra barata. A Primeira Guerra Mundial foi um conflito imperialista, mas
não resolveu as coisas, por isso as potências imperialistas foram à
guerra uma segunda vez. Os EUA sairiam desse conflito como o grande
vencedor, graças, ironicamente, à derrota esmagadora do outro candidato
à supremacia imperialista, a Alemanha nazi, perante a União Soviética.
Ao mesmo tempo, a Segunda Guerra Mundial foi também um conflito entre
capitalismo/imperialismo e socialismo, personificado pela União
Soviética. É uma ironia da história que os dois tipos de conflito se
tenham fundido, produzindo contradições como a aliança de facto da União
Soviética socialista, intrinsecamente anticapitalista e
anti-imperialista, com duas potências imperialistas anti-socialistas, os
EUA e a Grã-Bretanha. A guerra serviu os interesses do imperialismo dos
EUA ao permitir que os EUA emergissem como o número um indiscutível do
imperialismo. Mas o resultado da guerra foi imperfeito porque também
significou um triunfo para a União Soviética anti-imperialista. É por
isso que, imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, Washington
iniciou uma nova guerra, a “Guerra Fria”, com o objectivo de nada menos
que a eliminação da União Soviética.

*O imperialismo dos EUA nunca cessou uma política de guerra e golpes em
todo o mundo. As guerras imperialistas no Iraque, Afeganistão, Líbia,
Síria, Iémen, etc. não são um sintoma da barbárie do imperialismo
norte-americano?*
Historicamente, o imperialismo norte-americano perseguiu seus objectivos
de maneira sistemática, implacável e, pode acrescentar-se, não apenas
abertamente mas também furtivamente, por meio de guerra aberta, guerra
económica, desestabilização, sabotagem e tentativas de assassínio.
Exemplos dessa crueldade incluem o desnecessário bombardeamento nuclear
de Hiroshima, guerra química contra os vietnamitas, tentativas de
assassínio bem ou mal sucedidas de líderes recalcitrantes como Fidel
Castro e Lumumba e sanções económicas que custaram a vida de dezenas,
senão centenas de milhares de mulheres e crianças, como Madeleine
Albright infamemente reconheceu numa referência ao Iraque. Então, sim,
as guerras iniciadas pelos EUA no Iraque, Afeganistão, Líbia, etc., são
sintomáticas dessa crueldade ou barbárie, como lhe chama.

/Jacques R. Pauwels é historiador, investigador e escritor, nascido em
Ghent, Bélgica. Emigrou para o Canadá em 1969 após estudar história na
Universidade de Ghent e instalou-se perto da cidade de Toronto. Fez
estudos de doutoramento na York University em Toronto, especializando-se
na história social da Alemanha nazi, e recebeu seu PhD em 1976.
Tornou-se professor de história em várias universidades canadianas,
incluindo a University of Toronto e a University of Guelph. Em 1995
obteve um Ph.D. em ciência política na especialidade de regulamentação
do investimento estrangeiro no Canadá. É professor em várias
universidades de Ontário, incluindo a University of Toronto, Waterloo,
Guelph, e publicou numerosos artigos.
É autor de vários livros traduzidos em várias línguas, incluindo “Women,
Nazis, and Universities : Women University Students in Nazi Germany,
1933-1945”; “The Myth of the Good War”; “The Great Class War”; “Big
Business and Hitler”.
O seu website contém conferências e entrevistas em que participou, bem
como as suas numerosas publicações: http://www.jacquespauwels.net//

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/dr-jacques-pauwels-para-promover-os/
22/8/2020

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