quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Frei Betto comenta em entrevista o manifesto dos 152 bispos brasileiros face à crise



 Marcela Robaina, Nicolás Iglesias Schneider

Uma parte significativa da hierarquia da igreja católica brasileira
tomou posição face à crise que o país atravessa. Uma posição
progressista, que se coloca do lado do povo e contra a acção genocida do
governo Bolsonaro, e um dado a ter em conta no combate político num país
em que uma complexa componente religiosa favoreceu ao ascenso da
extrema-direita.

*Quem são os principais actores do tecido de poder no Brasil? Qual é o
papel do fundamentalismo religioso?*
No congresso brasileiro, destaca-se uma bancada parlamentar conhecida
como “Bancada da B”: boi, bala, Bíblia, banco e bola (futebol).
Representa as corporações mais ricas e poderosas do país, que estão
sempre no poder, mesmo quando não estão no governo, como nos 13 anos de
governo do Partido dos Trabalhadores. Essas corporações concentram as
actividades económicas que movem a economia brasileira, uma economia que
beneficia os mais ricos e sacrifica os mais pobres: 103 milhões de
pessoas, metade da população do país, vivem na pobreza.
Essas forças foram articuladas para derrubar Dilma Rousseff e,
posteriormente, eleger o Bolsonaro, que chamo de BolsaNero. Esse poder
foi construído a partir de duas trincheiras: redes digitais, com o poder
de controlar bots e algoritmos, e sectores fundamentalistas cristãos. Eu
trato desse assunto em meu livro recente The Devil in Court. Leitura
crítica do Brasil hoje.

*Qual é a imagem de Deus que está na base do discurso político de
Bolsonaro e quais são seus principais argumentos e objetivos
político-religiosos?*
Desde a década de 1970, a política de segurança dos Estados Unidos
contou com o importante apoio da CIA e de outros órgãos, quando
perceberam a importância do factor religioso na população,
principalmente entre os pobres. Esses grupos, que não têm acesso a uma
educação de qualidade, são facilmente influenciados por uma visão de
mundo centrada na religião e desconfiada da ciência.
Nesse contexto, surge a igreja “electrónica”, igrejas com uso intensivo
das redes sociais e dos media, canais de um discurso fatalista. Essas
igrejas desempenham um papel importante na estratégia do sistema
capitalista, influenciando as pessoas a trocarem a liberdade pelo medo.
O medo é imposto pela imagem de um Deus vingador e castigador, e –
especialmente - com um discurso sobre o diabo, que é quem nos arma as
armadilhas.
Esses grupos religiosos também são semelhantes à teologia da
prosperidade, segundo a qual quanto mais rica uma pessoa é, mais ela é
abençoada por Deus. Eles desenvolveram uma forte demonização do Partido
dos Trabalhadores e reforçaram uma perspectiva anti-petética gerada a
partir da Operação Lava Jato.

*A carta recente começa dizendo que há um genocídio contra o povo
brasileiro, como o discurso religioso e até anticientífico está sendo
usado para atentar contra os direitos humanos?*
No Brasil existe um genocídio! Ao ler esta entrevista, as mortes já
podem ultrapassar 100.000 pessoas. Quando me lembro que na Guerra do
Vietnam, ao longo de mais de 20 anos, 58.000 vidas de militares dos EUA
foram sacrificadas, tenho uma boa medida da seriedade do que está
acontecendo em meu país. Esse horror causa indignação e raiva. Todos
sabemos que medidas preventivas e restritivas, adoptadas em tantos
outros países, poderiam ter evitado tal número de mortos.
Este genocídio não é o resultado da indiferença do governo Bolsonaro; é
intencional. Bolsonaro está satisfeito com a morte de outros. Quando era
deputado federal, numa entrevista à televisão em 1999, declarou: “Ao
votar não mudará nada neste país, nada, absolutamente nada!
Infelizmente, só vai mudar se um dia entrarmos em guerra civil aqui e
fizermos o trabalho que o regime militar não fez: matar uns 30.000”.
É preciso lembrar que Bolsonaro, ao votar a favor do impeachment contra
a presidente Dilma Rousseff, dedicou seu voto à memória do mais notório
torturador do Exército: o coronel Carlos Brilhante Ustra. Ele é tão
obcecado pela morte que uma de suas principais políticas governamentais
é o livre comércio de armas e munições. Quando questionado, na porta do
palácio presidencial, se não se importava com as vítimas da pandemia,
respondeu: “Não acredito nesses números” (27 de Março de 92 mortes),
“Todos morreremos um dia” (29 de Março, 136 mortes), “E daí? Que queres
que eu faça?” (28 de Abril, 5.017 mortes).

*Na carta enviada recentemente para solicitar a denúncia internacional,
Nero e o incêndio de Roma são comparados a Bolsonaro e a lógica
sacrificial. Como essa lógica sacrificial foi instalada em nossas
sociedades? Por que essa política necrofílica?*
A lógica do sacrifício é muito bem trabalhada nas obras de René Girard e
Michel Foucault. Como afirma a carta, Bolsonaro está obcecado pela morte
de outras pessoas! Para ele, liberar o comércio de armas é muito mais
importante do que liberar recursos para salvar a vida do povo
brasileiro. E é intencional de sua parte economizar recursos com a morte
de pobres, idosos e pessoas com tratamentos cobertos pelo sistema
nacional de saúde.
Desde o início, ele declarou que o importante não era salvar vidas, mas
sim a economia. Daí sua recusa em declarar o fechamento, cumprir as
directrizes da Organização Mundial da Saúde e importar respiradores e
equipamentos de protecção individual. O Supremo Tribunal Federal teve
que delegar essa responsabilidade aos governadores e prefeitos.
Bolsonaro nem mesmo respeitou a autoridade de seus próprios ministros da
saúde. Desde Fevereiro, o Brasil tem dois, ambos demitidos por se
recusarem a adoptar a mesma atitude do presidente. Já à frente do
ministério está o General [Eduardo] Pazuello, que não entende nada sobre
questões de saúde: tentou esconder os dados sobre a evolução do número
de vítimas do coronavírus; Empregou 1.249 militares em funções
ministeriais-chave, sem que possuíssem as qualificações exigidas, e
suspendeu as colectivas de imprensa, que eram a forma de orientação da
população.
As razões da delinquência do governo Bolsonaro são evidentes: deixar
morrer os idosos, para economizar recursos da previdência social; deixar
morrer quem tem doenças pré-existentes, para economizar recursos do SUS,
do sistema nacional de saúde; permitir que os pobres morram, para
economizar recursos do programa Renda Familiar e outros programas
sociais para os 52,5 milhões de brasileiros que vivem na pobreza e os
13,5 milhões que vivem na extrema pobreza (segundo dados do governo
federal) .
Muito antes do jornal The Economist, nas redes digitais trato o
presidente como BolsaNero porque, enquanto Roma queima, ele toca lira e
anuncia que a cloroquina, um medicamento sem eficácia científica, mas
cujos fabricantes são aliados políticos do presidente, é eficaz contra o
novo coronavírus.
*
Que expressões culturais, políticas e religiosas entraram em disputa ou
oferecem resistência ao regime da “BolsaNero” no Brasil?*
Na cultura, a maioria dos artistas conhecidos - do cinema, do teatro, da
novela, da pintura, da música, da dança, etc. - se opõe ao Bolsonaro. O
problema está nas forças políticas progressistas, que não se articulam e
ainda estão muito focadas nas eleições, na disputa entre si. Eles não
têm um projecto brasileiro. Uma pena. Hoje, a principal oposição
religiosa são os bispos católicos progressistas. Na carta, assinada por
152 bispos do Brasil, há duras críticas ao governo e denuncia-se a
situação do país, que eles chamam de “tempestade perfeita” [ver box].

*Qual é o papel que os movimentos de libertação religiosa podem
desempenhar ou fazer na disputa com o fundamentalismo e em aliança com
os movimentos sociais?*
Acho que não há necessidade de “disputar” espaços com os
fundamentalistas. O mais importante é voltar ao trabalho de base, à
metodologia de educação popular (de Paulo Freire) e resgatar os
segmentos populares que, nas décadas de 70, 80 e 90, foram a base de
sustentação do Partido dos Trabalhadores e dos movimentos populares como
o MST [Movimento dos Sem Terra]. Mas como é difícil convencer as pessoas
de esquerda da importância do trabalho de base! Pouquíssimos querem
calçar as ruas destruídas das favelas.

*
A carta dos bispos*

Na carta à qual Frei Betto aderiu, os religiosos brasileiros definem a
situação no Brasil como “a combinação de uma crise de saúde sem
precedentes com um colapso económico avassalador e a tensão que abala os
alicerces da República, causada em grande parte pela Presidente da
República e outros sectores da sociedade, o que resultou em uma profunda
crise política e de governança”.

Na carta, os bispos brasileiros denunciam que a vida dos sectores mais
vulneráveis ​​e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual,
injusta e violenta, está em perigo e eles não podem ficar indiferentes.
Mesmo “a casa comum [a terra] é constantemente ameaçada pela acção
inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros de ouro e minerais, mineiros,
proprietários de terras e outros defensores de um desenvolvimento que
ignora os direitos humanos e os da mãe terra”.
Quanto à abordagem da situação pandémica, denunciam “os discursos
anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo das
milhares de mortes por covid-19, tratando-a como fruto do acaso ou
castigo divino”, bem como “o caos socioeconómico que é iminente, com
desemprego e fome projectados para os próximos meses, e arranjos
políticos que visam manter o poder a qualquer custo”.

Da mesma forma, os 152 bispos católicos brasileiros (um terço da
Conferência Episcopal do Brasil) criticam a incapacidade do governo
federal de enfrentar essas crises, uma vez que o modelo neoliberal
praticado apenas aumentou o privilégio dos poderosos. “As reformas
trabalhistas e previdenciárias, que deveriam melhorar a vida dos mais
pobres, acabaram sendo obstáculos que tornaram a vida das pessoas ainda
mais precárias. É verdade que o Brasil precisa de medidas e reformas
sérias, mas não como as que foram realizadas, cujos resultados agravaram
a vida dos pobres, deixaram os vulneráveis ​​desprotegidos, autorizou o
uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxou o controle do desmatamento
e, portanto, portanto, não favoreciam o bem comum e a paz social”.

Citando o Papa Francisco, afirmam que o actual sistema de governo não
coloca a pessoa humana e o bem de todos no centro, mas sim a defesa
intransigente dos interesses de “uma economia que mata”, centrada no
mercado e nos lucros para qualquer preço. Os bispos continuam a
denúncia, ressaltando que a incapacidade e incompetência do governo
federal para coordenar as acções se agrava porque se opõe à ciência, aos
estados e municípios, aos poderes da República e aborda o totalitarismo
por meio de métodos ilícitos. como apoiar e encorajar actos contra a
democracia.
/
Fonte:https://ladiaria.com.uy/politica/articulo/2020/8/frei-betto-y-el-pronunciamiento-de-obispos-catolicos-contra-las-medidas-de-bolsonaro/

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/frei-betto-comenta-em-entrevista-o/
19/8/2020

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