terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Fascismo: agora vê-se, agora não se vê!


 
// Gabriel Rockhill

Uma muito oportuna reflexão sobre a natureza do fascismo, e sobre como a
concepção burguesa de fascismo - visando situá-lo num tempo e num espaço
específico, e como um fenómeno excepcional e distante – procura bloquear
o entendimento do seu traço fundamental: de que o fascismo é parte
integrante do sistema de dominação capitalista.

/“Precisamos de entender que, ao contrário do que os media
norte-americanos nos dizem, o fascismo não é um desenvolvimento extremo,
limitado no tempo e no espaço, ocorrido há muito tempo. Pelo contrário.
O fascismo é estendido, generalizado e existe em todos os lugares.”
- Vicenc Navarro/

Apenas um país no mundo, na história recente:
+ se esforçou para derrubar mais de 50 governos estrangeiros
+ estabeleceu uma agência de inteligência que matou pelo menos 6 milhões
de pessoas nos primeiros 40 anos da sua existência
+ desenvolveu uma draconiana rede policial-vigilante para destruir
quaisquer movimentos políticos domésticos que desafiassem o seu domínio
+ construiu um sistema de encarceramento em massa que tem detida uma
percentagem da população maior do que qualquer outro país do mundo, e
que está inserido em uma rede global de prisões secretas e regime de
tortura.
Considerando que democracia é o termo comum usado para descrever este
país, aprendemos que o fascismo ocorreu apenas uma vez na história, num
lugar, e que foi derrotado pela democracia acima mencionada.

A expansividade e elasticidade da noção de democracia não poderiam
contrastar mais fortemente com a estreiteza e rigidez do conceito de
fascismo. Afinal, dizem-nos que a democracia nasceu há cerca de 2500
anos e que é uma característica definidora da civilização europeia, e
mesmo uma das suas contribuições culturais sem paralelo para a história
mundial. O fascismo, em contraste, supostamente eclodiu na Europa
Ocidental no período entre guerras como uma anomalia aberrante,
interrompendo temporariamente a marcha progressiva da história, logo
após uma guerra ter sido travada para tornar o mundo “seguro para a
democracia”. Uma vez destruído pela segunda guerra mundial, assim diz a
narrativa, as forças do bem empreenderam a tarefa de domesticar seu
maléfico gémeo “totalitário” no Oriente em nome da globalização democrática.

Como valores-conceitos cujo conteúdo substantivo é muito menos
importante do que a sua carga normativa, a democracia tem sido
perpetuamente expandida, enquanto o fascismo é constantemente
restringido. A indústria do Holocausto tem desempenhado um papel
importante neste processo pela via dos seus esforços em singularizar as
atrocidades da guerra nazi a tal ponto que elas se tornaram literalmente
incomparáveis ​​ou mesmo “irrepresentáveis”, enquanto as supostamente
democráticas forças do bem no mundo são repetidamente tomadas como
modelo de governança global.

*Conceitos-na-Luta-de-Classe*

O debate em curso sobre a definição precisa de fascismo tem
frequentemente obscurecido o facto de que a natureza e a função das
definições difere significativamente dependendo da epistemologia
empregada, ou seja, a estrutura geral de conhecimento e verdade. Para os
materialistas históricos, conceitos como fascismo são locais da luta de
classes, em vez de entidades quase metafísicas com propriedades fixas. A
procura de uma definição universalmente aceitável de um conceito
genérico de fascismo é, portanto, quixotesca. Isso não ocorre,
entretanto, porque os conceitos são relativos num sentido puramente
subjectivista, significando que simplesmente cada um tem sua própria
definição idiossincrática de tais noções. É que eles são relacionais num
sentido concreto e material: estão objectivamente situados nas lutas de
classes.

É a ideologia burguesa que presume a existência de uma epistemologia
universal exterior à luta de classes. Age como se houvesse apenas um
conceito de cada fenómeno social, que corresponde, é claro, à
compreensão burguesa do fenómeno em questão. O que isso significa, em
última análise, de uma perspectiva materialista, é que a ideologia
burguesa inerente à própria ideia de uma epistemologia universal é ela
mesma parte da luta de classes, na medida em que se esforça
sub-repticiamente por fazer desaparecer todas as epistemologias rivais.

Se aprofundarmos as diferenças entre essas duas epistemologias, que são
relatos rivais da própria função dos conceitos e suas definições, vemos
que os materialistas - em total contraste com o idealismo da ideologia
burguesa - entendem as ideias como ferramentas práticas de análise que
permitem diferentes níveis de abstração, e cujo valor de uso depende da
sua capacidade de cartografar situações materiais cuja complexidade
ultrapassa a sua própria. Dentro deste enquadramento, o objectivo não é
definir a essência de um fenómeno social como o fascismo em termos que
pudessem ser universalmente aceites pela ciência social burguesa, mas
sim de desenvolver uma definição funcional em dois sentidos. Por um
lado, esta é uma definição que funciona porque tem um valor de uso
prático: fornece o esboço coerente de um campo complexo de forças
materiais e pode ajudar a orientar-nos num mundo de luta. Por outro
lado, tal definição é entendida como heurística e aberta a uma
elaboração posterior porque os marxistas reconhecem que estão
subjectivamente situados em processos socio-históricos objectivos, e que
alterações de perspectiva e de escala podem exigir a sua modificação.
Isto pode ser visto claramente nas três escalas diferentes que usarei
para desenvolver uma definição de trabalho do fascismo: a conjuntural, a
estrutural e a sistémica.

*Análise Multi-escalar*

A abordagem materialista histórica do fascismo atribui uma primazia às
práticas e situa-as em relação à totalidade social, que é por sua vez
analisada por meio de escalas heuristicamente distintas, mas
interligadas. A conjuntural, para começar, é a totalidade social de um
lugar e tempo específicos, como a Itália ou a Alemanha no período entre
guerras. Historicamente, sabemos que o termo fascismo (fascismo) emergiu
como uma descrição do tipo particular de organização de Benito
Mussolini, mas que só foi gradualmente teorizada, aos trancos e
barrancos. Em outras palavras, não surgiu como uma doutrina ou ideologia
política coerente que foi depois implementada, mas antes como uma tosca
e imprecisa noção de um conjunto dinâmico de práticas que mudaram ao
longo do tempo (no início, ao contrário de mais tarde, o fascismo em
Itália era reformista e republicano, defendia o sufrágio feminino,
apoiava algumas limitadas reformas pró-trabalho, conflituou com a Igreja
Católica e não era abertamente racista).

Foi somente depois de o movimento fascista ter evoluído e começado a
ganhar poder que foram feitas tentativas pela parte de Mussolini e
outros de consolidar retroactivamente as suas díspares e contraditórias
práticas ​​de tal forma que pudessem ser apresentadas como integrando
uma doutrina coerente. Em numerosas ocasiões, o próprio Mussolini
insistiu neste ponto, escrevendo por exemplo: “O fascismo não foi
engendrado por uma doutrina previamente redigida numa escrivaninha;
nasceu da necessidade de acção e foi acção; não foi um partido, mas, nos
primeiros dois anos, um anti-partido e um movimento”. José Carlos
Mariátegui elaborou uma análise perspicaz e minuciosa das lutas internas
em operação no início do movimento fascista italiano, que estava
polarizado entre uma facção extremista e um campo reformista com
tendências liberais. Mussolini, segundo Mariátegui, ocupou uma posição
centrista e evitou favorecer um grupo em detrimento do outro até 1924,
altura em que o político socialista Giacomo Matteotti foi assassinado
por fascistas. Isso levou a batalha entre as duas facções fascistas a um
nível febril, e Mussolini foi forçado a escolher. Depois de fazer uma
mal-sucedida abertura à ala liberal, aliou-se aos reaccionários.

Desde o seu início, então, o conceito de fascismo tem sido um local de
luta social e ideológica, seja o confronto entre extremistas e
reformistas dentro do campo fascista, ou mais geralmente entre fascistas
e liberais dentro do campo capitalista. Esses conflitos eram, em última
análise, eles próprios situados no conflito geral entre capitalistas e
anticapitalistas. É a partir desse ponto de vista de níveis de luta
entreligados que podemos estabelecer uma primeira definição funcional de
fascismo, uma vez que ele veio a ser mais ou menos consolidado,
identificando como emergiu dentro de uma conjuntura e estado muito
específicos da guerra de classes global. No ameaçador rasto da Revolução
Russa (que foi seguida por revoluções fracassadas na Europa e mais tarde
pela Grande Depressão no mundo capitalista), Mussolini e o seu bando
usaram as comunicações de massa e a propaganda para lenta mas
seguramente mobilizar sectores da sociedade civil - e particularmente a
pequena-burguesia - com o apoio dos grandes capitalistas industriais, em
torno de uma ideologia nacionalista e colonial de transformação
“radical”, de modo a esmagar o movimento operário e lançar guerras de
conquista. A este nível de análise o fascismo é, praticamente falando,
nas palavras de Michael Parenti, “nada mais do que uma solução final
para a luta de classes, a submersão totalística e a exploração das
forças democráticas em benefício e lucro dos círculos financeiros mais
elevados. O fascismo é uma falsa revolução.”

Esta análise conjuntural é, naturalmente, marcadamente distinta dos
relatos liberais do fascismo, que tendem a concentrar-se em fenómenos
superficiais e elementos superestruturais que são separados de qualquer
consideração científica da economia política internacional e da guerra
de classes. Se for uma política de ódio, uma lógica de ‘nós e eles’, uma
rejeição da democracia parlamentar, uma questão de personalidades
aberrantes, uma rejeição da ciência ou outras características
semelhantes, a abordagem liberal do fascismo centra-se em traços
epifenomenais à custa da totalidade social. É a última, no entanto, que
dá a esses traços - quando eles de facto existem de uma forma ou outra –
o seu significado e função precisos. Vale a pena lembrar, a este
respeito, como Martin Kitchen apontou, que “todos os países capitalistas
produziram movimentos fascistas após a crise de 1929”.

Se o conceito burguês de fascismo obscurece a totalidade social da
conjuntura dentro da qual o fascismo europeu historicamente emergiu com
esse nome, lança uma sombra ainda mais longa sobre as dimensões
estruturais e sistémicas do fascismo como prática. Como veremos no caso
de George Jackson, os marxistas têm insistido na importância de
inscrever a análise conjuntural do fascismo europeu dentro de um
enquadramento estrutural, a fim de revelar as formas de fascismo
operantes em conjunturas onde os teóricos liberais frequentemente
afirmam que ou elas não existem de todo ou são de alguma forma menos
graves. O período entre guerras nos Estados Unidos, por exemplo, quando
comparado ao que aconteceu na Itália e na Alemanha, revela semelhanças
estruturais impressionantes.

Finalmente, a escala mais ampla de análise, que parece ser invisível
para os liberais, é o sistema mundial capitalista. Como materialistas
históricos como Aimé Césaire e Domenico Losurdo argumentaram, a barbárie
dos nazis deve ser entendida como uma manifestação específica da longa e
profunda história da carnificina colonial, que levou o capitalismo a
todos os cantos do globo. Se há algo de excepcional no nazismo, afirmou
Césaire, é que os campos de concentração estavam a ser construídos na
Europa, e não nas colónias. Desta forma, ele convida-nos a situar as
escalas conjuntural e estrutural de análise dentro de um quadro
sistémico, ou seja, naquele que dá conta de toda a história global do
capitalismo.
O conceito burguês de fascismo procura singularizá-lo como um fenómeno
idiossincrático, que é em grande parte ou totalmente superestrutural, a
fim de impedir qualquer exame da sua ubíqua presença na história da
ordem mundial capitalista. Em contraste, a abordagem materialista
histórica propõe uma análise multi-escalar da totalidade social a fim de
demonstrar como a especificidade conjuntural do fascismo europeu entre
guerras pode ser melhor entendida como aninhada numa fase estrutural da
guerra de classes capitalista e, em última análise, dentro da história
sistémica do capital, que veio ao mundo - nas palavras usadas por Karl
Marx para descrever a acumulação primitiva - “pingando da cabeça aos
pés, por todos os poros, sangue e porcaria”. À medida que se amplia ou
se reduz a escala, o relato preciso e a definição operativa do fascismo
podem mudar por causa das variáveis ​​materiais envolvidas, e alguns,
portanto, preferiram restringir o termo fascismo às suas manifestações
conjunturais (que podem, às vezes, ser úteis por razões de clareza). No
entanto, mesmo que esta última táctica seja usada, uma análise completa
do fascismo dentro da totalidade social requer, em última análise, uma
explicação integrada na qual se reconheça que o conjuntural está situado
no interior do estrutural, que por sua vez está embutido no sistémico. O
fascismo, como prática, é um produto do sistema capitalista, cujas
formas precisas variam dependendo da fase estrutural do desenvolvimento
capitalista e da conjuntura sócio-histórica específica.

*A Ideologia do Excepcionalismo Fascista*

Simone de Beauvoir ironizou uma vez que “na linguagem burguesa, a
palavra homem significa burguês”. Na verdade, quando os membros da
classe dominante colonial conhecidos como os pais fundadores
norte-americanos enviaram sua solene declaração ao mundo de que “todos
os homens são criados iguais”, eles não queriam dizer que todos os seres
humanos eram realmente iguais. É apenas entendendo a sua premissa não
declarada - que homem significa burguês - que podemos compreender a sua
intenção na totalidade: os não-humanos do mundo podem ser submetidos às
formas mais brutais de expropriação, escravidão e carnificina colonial.

Esta operação dúplice, pela qual um particular (a burguesia) tenta fazer
passar-se por universal (humanidade), é uma característica bem conhecida
da ideologia burguesa. A sua forma invertida, contudo, talvez seja ainda
mais enganosa e insidiosa, porque - que eu saiba - não foi amplamente
diagnosticada. Mais do que universalizar o particular, esta operação
ideológica transforma o sistémico em esporádico, o estrutural em
singular, o conjuntural em idiossincrático.

O caso do fascismo é exemplar. Sempre que o seu nome é invocado, somos
redirecionados ritualisticamente pela ideologia dominante para o mesmo
conjunto de exemplos históricos específicos em Itália e na Alemanha, que
deveriam servir como padrões gerais para avaliar quaisquer outras
possíveis manifestações de fascismo. De acordo com a menos científica
das metodologias, é o particular que governa o universal, e não o
contrário. Na sua forma ideológica mais extrema, isso significa que, se
não houver botas de cano alto, saudações Sieg Heil e soldados em passo
de ganso, então não poderemos de modo nenhum estar no que é comumente
conhecido como fascismo.

Esta ideologia de excepcionalismo fascista é uma consequência natural da
noção burguesa de fascismo. Ao conceituar o fascismo germano-italiano
como sui generis e defini-lo principalmente em termos das suas
características epifenomenais, separa-o das suas raízes profundas no
sistema capitalista e obscurece paralelos estruturais com outras formas
de governança repressiva em todo o mundo. Esta ideologia desempenha,
portanto, um papel crucial na luta de classes: pega numa característica
geral da vida sob o capital e transforma-a numa anomalia, que alguns
procuraram até elevar, no caso do nazismo, ao estatuto metafísico de ser
incomparável na sua irredutível singularidade. O particular serve,
assim, para ocultar o geral.

*Um dragão no ventre da besta*

George Jackson rejeitou veementemente a particularização ideológica do
fascismo e apontou todas as semelhanças estruturais entre o fascismo
europeu e a repressão nos Estados Unidos. Sem surpresa, um crítico
liberal certa vez proclamou que os EUA não eram fascistas simplesmente
porque Jackson disse que eram, descartando assim de imediato a sua
análise estrutural como simplesmente uma opinião subjectiva (um caso
clássico de projecção liberal). O argumento de Jackson, contudo, não era
redutível a um pronunciamento ex cathedra, mas era antes baseado numa
cuidadosa e materialista comparação entre a situação nos Estados Unidos
e na Europa. “Estamos a ser reprimidos agora”, escreveu ele. “Existem já
tribunais que não exercem qualquer justiça e campos de concentração. Há
mais polícia secreta neste país do que em todos os outros juntos -
tantos que constituem uma classe totalmente nova que se associou ao
complexo do poder. A repressão está aqui.”

Quando Jackson se refere aos EUA como “o Quarto Reich” e compara as
prisões americanas a Dachau e Buchenwald, está obviamente a romper com o
protocolo excepcionalista que guia a indústria do Holocausto ao elevar o
fascismo europeu ao estatuto singular do incomparável. E, no entanto, o
que ele está de facto a fazer nas suas análises dos EUA é que está
simplesmente a rejeitar a abordagem não científica do fascismo descrita
acima, que enfatiza idiossincrasias a fim de obscurecer relações
estruturais. Em vez disso, começa ao contrário, com uma análise
materialista dos modos de governança operantes na América, e eis o que
descobriu:
O novo estado corporativo [nos EUA] tem avançado através de crise após
crise, estabeleceu as suas elites governantes em todas as instituições
importantes, formou a sua parceria com o trabalho por meio da sua elite,
ergueu a mais massiva rede de agências de protecção repletas de espiões,
técnicos e animais, que pode ser encontrada em qualquer estado policial
do mundo. A violência da classe dominante deste país no longo processo
da sua evolução para o autoritarismo e o seu último e mais elevado
estágio, o fascismo, não tem rival nos seus excessos em qualquer outra
nação na terra hoje ou na história.

Aqueles que rejeitariam isto como uma hipérbole, recusando-se até mesmo
a envolver-se em comparações históricas, revelam simplesmente uma das
mais insidiosas consequências da ideologia do excepcionalismo fascista:
qualquer análise materialista de situações comparáveis ​​é a priori
verboten.

Em vez de recuar horrorizado perante o termo fascismo, que foi
ideologicamente reservado para algumas anomalias históricas, agora
distantes, ou aquilo a que George Seldes chamou “fascismo distante”,
Jackson chega à conclusão mais lógica do ponto de vista da análise
materialista histórica: o que está a acontecer diante dos seus olhos nos
Estados Unidos é uma intensificação e globalização daquilo que
aconteceu, em condições ligeiramente diferentes, na Itália e na
Alemanha. Na verdade, ele identifica directamente as forças motrizes por
detrás da gestão da percepção que nos tenta cegar para o fascismo
norte-americano como sendo um produto cultural desse mesmo fascismo:
Logo atrás das forças expedicionárias (os porcos) vêm os missionários, e
o efeito colonial é completo. Os missionários, com os benefícios da
cristandade, ensinam-nos o valor do simbolismo, dos presidentes mortos e
da taxa de redesconto. […] Na área da cultura […], estamos ligados à
sociedade fascista por correntes que estrangularam o nosso intelecto,
confundiram o nosso discernimento e nos fizeram recuar aos trambolhões
numa fuga selvagem e desorganizada em relação à realidade.

Além disso, Jackson, como outros marxistas-leninistas, identifica o
núcleo do fascismo “num rearranjo económico”: “É a resposta do
capitalismo internacional ao desafio do socialismo científico
internacional.” A sua indumentária nacionalista, insiste ele com razão,
não nos deve distrair das suas ambições internacionais e do seu impulso
colonial: “Na sua essência, o fascismo é capitalista e o capitalismo é
internacional. Sob as suas armadilhas ideológicas nacionalistas, o
fascismo é sempre, em última instância, um movimento internacional.”
Jackson, portanto, responde à superinflação ideológica do conceito de
democracia, estendendo a noção de fascismo para incluir toda a
violência, repressão e controle operativo na imposição, manutenção e
intensificação das relações sociais capitalistas (incluindo o estado de
bem-estar reformista). Alguns podem preferir distinguir entre esta forma
de fascismo geral, que incluiria o governo autoritário e liberal, e uma
definição mais específica de fascismo como uso extensivo da repressão
estatal e paraestatal com o propósito final de aumentar a acumulação
capitalista. Estas não são, entretanto, definições mutuamente exclusivas
necessariamente, uma vez que a violência das relações sociais
capitalistas assume muitas formas diferentes - repressão directa,
exploração económica, degradação social, sujeição hegemónica, etc. - e é
isso que Jackson traz à tona.

*Descortinando para além do conceito burguês de fascismo*

A concepção burguesa de fascismo visa dissimular o seu carácter
estrutural e sistémico, bem como as causas materiais profundas que
impulsionam a sua emergência conjuntural, de modo a apresenta-lo como
absolutamente excepcional, isolando-o num tempo e lugar determinados.
Procura convencer-nos, a todo custo, que o fascismo não é um aspecto
essencial do domínio capitalista, mas sim uma anomalia ou uma ruptura
excepcional com seu funcionamento normal. Mais ainda, apresenta-o como
distante, enterrando-o em um passado que foi superado pelo progresso
democrático, brandindo-o como uma ameaça futura se as pessoas não se
conformarem com os ditames do governo liberal, ou por vezes
localizando-o em terras distantes que ainda estão ainda demasiado
‘atrasadas’ para a democracia.

A abordagem materialista do fascismo recusa as vendas impostas pela
gestão da percepção inerente ao conceito burguês, e identifica
claramente o duplo gesto ideológico do domínio capitalista: inflaciona e
até mesmo universaliza os seus traços supostamente positivos,
construindo uma história mitológica da chamada democracia ocidental, e
apaga ou particulariza as suas características negativas, tornando o
fascismo uma anomalia idiossincrática. Começando ao contrário, o
materialismo histórico examina como o capitalismo realmente existente
depende de dois modos de governança que funcionam segundo a lógica
enganosa da táctica de interrogatório do polícia bom/policia mau: onde e
quando o polícia bom não for capaz de induzir as pessoas a jogar pelas
regras do jogo capitalista, o polícia mau do fascismo está sempre à
espreita na sombra para fazer o trabalho por qualquer meio que seja
necessário. Se o bastão deste último parece ser uma aberração quando
comparado à cenoura do polícia bom, é apenas porque alguém foi enganado
para acreditar no falso antagonismo entre eles, que dissimula o facto
fundamental de que estão a trabalhar juntos por um objectivo comum.
Embora seja certamente verdade, de uma perspectiva de organização
táctica, que lidar com o histrionismo do polícia bom é em geral muito
preferível à barbárie descarada do polícia mau, é estrategicamente da
maior importância identificá-los pelo que são: parceiros no crime
capitalista.

/Gabriel Rockhill é filósofo, crítico cultural e activista
franco-americano. É o Director fundador do Critical Theory Workshop e
Professor de Filosofia na Universidade Villanova. Os seus livros incluem
Counter-History of the Present: Untimely Interrogations into
Globalization, Technology, Democracy (2017), Interventions in
Contemporary Thought: History, Politics, Aesthetics (2016), Radical
History & the Politics of Art (2014) e Logique de l ‘histoire (2010).
Além do seu trabalho académico, tem-se envolvido activamente em
actividades extra-académicas nos mundos da arte e do activismo, bem como
em colaborar regularmente no debate intelectual público. Siga no
Twitter: @GabrielRockhill/

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/fascismo-agora-ve-se-agora-nao/
8/12/2020

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