sábado, 19 de junho de 2021

Jones Manoel. «Uma organização revolucionária tem de ter um departamento de hackers»

 


Por Nuno Ramos de Almeida
 

Tem 31 anos, é historiador, marxista, /youtuber/, professor de História,
comunicador popular, escritor, militante do Partido Comunista
Brasileiro, e conhecido pelo seu canal no /YouTube/ denominado Jones
Manoel. Nascido numa favela do Recife, chegou ao marxismo-leninismo a
partir da vida e do rap. A conversa com o /*AbrilAbril*/ começa com a
questão do Estado e acaba nas redes sociais.

Historiador e um dos jovens marxistas com maior audiência nas redes
sociais brasileiras.

Historiador e um dos jovens marxistas com maior audiência nas redes
sociais brasileiras.CréditosRennan Peixe / DR

*Fez 150 anos que a Comuna de Paris foi derrotada depois da Semana
Sangrenta. Há alguma razão comum que justifique esta derrota e todos os
outros insucessos nas revoluções feitas pelos explorados?*

A Comuna Paris surge numa situação muito adversa, num contexto da guerra
Franco-Prussiana em que o governo da França assumiu uma postura de
traição nacional, entregou o país à Prússia e os operários de Paris
resolveram tomar o poder. Marx tinha alertado, antes da Comuna, que
seria um suicídio os operários tentarem tomar o poder. Quando eles o
fizeram, Marx analisou objectivamente as razões que levaram à sua
derrota. A esquerda ocidental tem um fetiche pela derrota e pelo
martírio. Ela adora quem perdeu.

*Talvez porque nunca ganharam.*

A ideologia dominante permite que a gente tenha referências, mas desde
que elas sejam referências de martírio e não de exercício de poder. Para
sectores da burguesia e dos intelectuais democráticos, uma figura como
Che Guevara é muito mais saborosa que uma figura como Fidel Castro. Che
Guevara morre enquanto exemplo de martírio e Fidel Castro permanece
enquanto líder e estadista do processo revolucionário. Há gente que
gosta muito de assassinados, como Che Guevara, Rosa Luxemburgo e
Gramsci, esvaziando-os da perspectiva comunista e apagando o que
defendiam. Paralelamente, dirigentes revolucionários como Fidel Castro,
Ho Chi Minh, Mao Ze Dong e Kim Il-Sung são quase sempre odiados,
ostracizados e chamados de ditadores que trairam a revolução em algum
lugar da história.

    «Não se deve perder as oportunidades de golpear o inimigo de classe
    o mais profundamente possível, para melhorar as nossas condições no
    enfrentamento.»

Mas voltando à Comuna, acho muito importante vermos o que são os
ensinamentos da derrota. Marx e Engels apontam duas coisas: primeiro, os
/communards/ não tomaram o Banco da França, elemento fundamental que os
colocaria numa situação de maior poder para pressionar e negociar com a
burguesia francesa; segundo, usaram muito pouco a capacidade de
repressão e de eliminação do inimigo de classe. Isso está muito bem
documentado num texto de Engels sobre a autoridade. O ensinamento
importante que a Comuna deixa é que a burguesia não tem ética, não tem
pudor, e trata a luta de classes como uma guerra de classes, o que
significa que elimina fisicamente o inimigo. Na esquerda, a gente pensa
muito pouco em termos estratégicos e subordinamos a estratégia à ética.
Não se deve perder as oportunidades de golpear o inimigo de classe o
mais profundamente possível, para melhorar as nossas condições no
enfrentamento. Caso contrário, vamos estar a chorar derrotas e a
orgulhar-nos da pureza. Lembro quando aconteceu o golpe de Estado na
Bolívia, em 2019, o filósofo Slavoj Zizek lançou um texto em que se
dizia orgulhoso pelo governo boliviano não ter sido um governo
autoritário, e que mesmo quando veio o golpe de Estado não reprimiu os
golpistas. Esse tipo de pensamento é tudo menos marxista.

*Não pode haver a acusação inversa? No sentido de que a necessidade de
defender a revolução exige muitas vezes uma permanente militarização dos
regimes socialistas e a necessidade de usar meios policiais, deixando a
certa altura de existir o socialismo, dado que se esvazia a participação
popular e dos trabalhadores?*

Para mim, o maior problema das experiências socialistas no século XX foi
não conseguir uma dialéctica que permitisse a defesa interna do processo
revolucionário contra a pressão imperialista e, ao mesmo tempo,
conseguir ampliar e fortalecer a democracia socialista. A União
Soviética é um belo exemplo de que a defesa dos ataques do imperialismo
acabou por conduzir à legitimação de um processo progressivo de
esvaziamento da democracia socialista. Levando ao enfraquecimento da
base de consenso do projecto socialista ao ponto de ser destruído. Já no
caso de Cuba, vai-se conseguindo defender do imperialismo, ao mesmo
tempo que conserva uma vitalidade e um nível de democracia socialista
muito interessante. Isto é um problema real, considerando que os EUA têm
mais de 800 bases espalhadas pelo mundo, o maior orçamento militar, o
maior aparelho de espionagem, sabotagem e guerra suja do mundo, que é a
CIA. Isso sem contar que estamos na era das redes sociais que permite um
nível de vigilância e controlo nunca antes possível.

A defesa da revolução pode acabar por criar processos de burocratização,
mas isso não nos deve levar a subestimar a necessidade das revoluções se
defenderem. A visão de Lénine da necessidade do povo em armas continua
actual. É importante socializar ao máximo a defesa. Mas a questão é que,
na era dos mísseis intercontinentais, o povo em armas não garante a
defesa de qualquer país. Sem estrutura militar não é possível manter o
segredo militar. A necessidade de defesa em relação à maior potência
imperialista do mundo impõe restrições ao processo de democratização
socialista. Enquanto não se fizer uma revolução no centro do império é
um problema que vamos ter de enfrentar.

*Em Marx, a ditadura do proletariado era uma fase curta para cimentar o
poder do proletariado. Em /O Estado e a Revolução/, Lénine defende que o
Estado deveria imediatamente ir desaparecendo, que só será democrático
quando puder ser dirigido pela empregada doméstica. Como é possível num
contexto em que as revoluções são nacionais, defender o novo poder e
democratizar ao mesmo tempo?*

Lénine alterou parcialmente a sua posição depois de /O Estado e a
Revolução/. Muda de perspectiva com a experiência da revolução russa e
compreende, a partir de 1920, que a temporalidade da transição
socialista é muito maior do que a imaginava. Altera a sua posição em
relação ao defenecimento do Estado, para fazer deste um aparelho
alicerçado nos sovietes e que dê efectividade às reivindicações das
massas. Lénine falava até em aprender com as melhores práticas de
administração pública dos capitalistas.  Cuba, Vietname, Laos, China e
Coreia do Norte não caíram, conseguiram sobreviver, uns com formas mais
qualificadas do que outros, mas existe um histórico de experiências
socialistas que não sucumbiram ao ponto de perderem o apoio da base da
classe trabalhadora a esses regimes de transição. A primeira coisa é
fazer um balanço sistemático, real e nosso de todas as experiências.

*Coloca a Coreia do Norte e Cuba no mesmo campo? Não lhe parece que
existem aspectos da Coreia que têm muito pouco a ver com o socialismo, a
sucessão quase dinástica, o culto exacerbado da personalidade, por exemplo?*

A ideia do culto da personalidade é um termo ocidental muito ligado à
própria realidade da União Soviética que, a meu ver, não se encaixa na
explicação da Coreia. Também não acho que haja passagem de poder de pai
para filho, porque os cargos que exerciam Kim Il-Sung, Kim Jong-il, Kim
Jong-un são diferentes. Eles são evidentemente um elemento de simbologia
da revolução nacional, mas exerceram e exercem cargos diferentes. A
representação dos /media/ de que Kim Jong-un é um ditador todo-poderoso,
que controla tudo, é totalmente falsa. Existe pouca literatura e pouco
estudo sistemático sobre a Coreia [do Norte] e há uma desconsideração
sobre o estado permanente de agressão militar em que o país vive.
Recorde-se que foi um país destruído pela guerra com os EUA, em que as
forças norte-americanas destruíram todas as cidades da Coreia do Norte e
mataram 30% da população. Os EUA  mantêm, até hoje, mais de 50 mil
soldados a cercar o país. E têm armas atómicas apontadas à Coreia [do
Norte].

    «Um povo que se consegue defender já é olhado de lado pela esquerda
    ocidental. Para essa gente, uma criança com uma pedra contra um
    tanque israelita é heróico, quando para mim é uma coisa brutal e
    quase pornográfica»

Vamos lembrar que o principal palco militar dos EUA, na segunda metade
do século XX, foi a Ásia. Atacaram o Vietname, atacaram o Laos, atacaram
o Camboja, para além da Coreia [do Norte]. Usaram na guerra da Coreia
mais bombas do que todas as que foram usadas na II Guerra Mundial. E até
hoje, formalmente, a guerra da Coreia não acabou, foi apenas assinado um
armistício, que significa, do ponto de vista do direito internacional,
apenas uma pausa numa guerra.

A Coreia [do Norte] é uma experiência socialista que é olhada de uma
forma muito preconceituosa e preguiçosa pela esquerda Ocidental, que não
estuda o país e tem aquela coisa com que começamos a conversa que é o
fetiche da derrota. Veja, a Coreia [do Norte] foi invadida para ser
liquidada, conseguiram resistir, consolidar um Estado, formar uma
economia nacional. Têm um nível de industrialização considerável,
constituíram um complexo industrial militar importante e, ao contrário
do povo palestiniano, têm a capacidade de se defender. Um povo que se
consegue defender já é olhado de lado pela esquerda ocidental. Para essa
gente, uma criança com uma pedra contra um tanque israelita é heróico,
quando para mim é uma coisa brutal e quase pornográfica. Mas essa
esquerda gosta disso e de sofrimento, mas não gosta de países como a
Coreia [do Norte] que têm mísseis intercontinentais com armas atómicas e
que podem atingir os EUA.

Eu dou um outro exemplo, a Líbia de Muammar al-Gaddafi não era uma
experiência socialista, mas algo que surgiu no contexto das lutas
anticoloniais, que tinha uma certa política anti-imperialista e
nacionalista de apropriação dos recursos naturais do país.

*Na senda de Nasser e do socialismo pan-arabista.*

A Líbia tinha um programa nuclear, mas Gaddafi, tentando aproximar-se da
União Europeia, desistiu do seu programa nuclear. Quatro anos depois de
ter desistido desse programa, a NATO intervém na Líbia, derruba Gaddafi
e destrói o país. Hoje temos um local que até tráfico de pessoas
escravizadas tem. Em Tripoli, estão a vender-se escravos como no século
XVI. A Líbia foi destruída, era dos países mais ricos de África e agora
está nesta situação. Tenho várias divergências com o modelo socialista
coreano, está bem longe daquilo que quero para o socialismo, mas eu
apoio qualquer experiência socialista. O que aconteceu na Líbia, e quem
acompanha o sofrimento do povo palestiniano, sabe, como dizia o velho
Luckács, que «o pior socialismo é melhor que o melhor capitalismo». E o
melhor capitalismo na periferia do sistema não existe. Basta ver a
desgraça que aconteceu com a Líbia.

A Coreia [do Norte] é um Estado muito militarizado, cercado, que tenta
manter a coesão nacional máxima frente às ameaças militares, que se
expressa por exemplo na continuidade de símbolos de unidade nacional,
como a continuidade da família de Kim Il Sung. Tem várias coisas que eu
acho problemáticas, mas que não estou preocupado em criticar: para mim,
o essencial é a acção do imperialismo e o cerco feito a esse país.
Quando acabar esse cerco militar, aí a gente pode debater livremente os
problemas do regime, agora não dá para brincar, porque o imperialismo
não brinca em serviço.

*A questão que coloco é que em que medida a necessidade de militarização
e defesa de um regime não torna esse poder a certa altura pouco
socialista. Não é possível uma estratégia de resistência que passe pelo
aumento do poder do povo e da democracia socialista?*

Temos que considerar várias coisas. O Brasil é mais militarizado que a
Coreia [do Norte] em termos de violência contra a população. A República
Democrática da Coreia não sabe o que é ter, todos os anos, 62 mil
pessoas assassinadas. O cidadão norte-coreano não sabe o que é ter, nas
favelas, a polícia todos os dias a agredir e a xingar as pessoas,
entrando nas casas sem mandado e por vezes matando. Essa própria ideia
de militarização tem que ser muito bem contextualizada. Em termos de
segurança do indivíduo em relação ao Estado,  a Coreia [do Norte]
disfruta de infinitamente mais democracia que o Brasil.

Segundo ponto, se não existisse legitimidade, e um certo consenso e
apoio na sociedade coreana, nenhum governo ficaria de pé. Durante os
anos 90, o país perdeu o seu principal parceiro económico, que era a
União Soviética, sofreu uma série de inundações e catástrofes, teve um
problema sério de desnutrição, e o regime continuou de pé com um alto
nível de consenso e apoio. Nos últimos dez anos, a qualidade de vida da
população tem melhorado muito. Houve uma mudança relativa da orientação
que colocava as Forças Armadas em primeiro lugar. A partir do momento
que o país alcançou o domínio do armamento atómico e mísseis
intercontinentais, a necessidade de ter forças terrestres diminuiu.

    «Todo o projecto anti-imperialista só se mantém se tiver uma forte
    base de apoio, de outra maneira não se aguentaria um minuto»

A guerra moderna é muito mais definida pelos mísseis, caças e submarinos
do que pelo número de soldados. Há uma redução do peso na economia do
exército e uma passagem maior de recursos para habitação e para melhorar
as infraestruturas sociais. A Coreia [do Norte] vive um boom da
construção civil. A melhoria da qualidade da habitação dos
trabalhadores, o aumento de construção de equipamentos colectivos
– bibliotecas, parques, ginásios e equipamentos desportivos –, é visível
e significativa. Há um debate no partido, respondendo aos pedidos das
bases, que reivindicavam melhores condições de vida e de consumo. Assim
como existe um debate sobre o país se tornar um centro mundial de
criptomoedas e a partir daí quebrar o bloqueio económico dos EUA, para
conseguir recursos para adquirir a modernização das infraestruturas e
melhorar mais a vida das populações.

A Coreia [do Norte] tem vários problemas, mas está longe de ser um país
sem uma base social de consenso e legitimidade. Eu dou sempre este
exemplo: os média liberais e certa esquerda representam o governo de
Nicolas Maduro como ultra-militarizado e que só se mantem por causa do
apoio do exército. Veja, eu tenho várias críticas ao governo Maduro, que
nos últimos tempos resolveu lançar uma ofensiva contra o Partido
Comunista Venezuelano, mas é uma ilusão maluca achar que um governo
atacado pela maior potência do mundo, os Estados Unidos, vai conseguir
manter-se no poder só pela força, se não tiver apoio popular. Isso não é
possível. Todo o projecto anti-imperialista só se mantém se tiver uma
forte base de apoio, de outra maneira não se aguentaria um minuto. Não
apenas uma base passiva, mas uma base activa. E isso diferencia a
esquerda da Venezuela em relação à do Brasil. A Dilma [Rousseff] foi
retirada do poder muito facilmente, em 2016, sem nenhuma revolta das
massas. Só tinha uma base de apoio passiva.

*Como é que foi o seu trajecto político do rap para o comunismo?*

 O Brasil tem uma tradição de uma cultura de rap que nasceu em São Paulo
e que é muito politizada. Nos anos 90, Racionais Mcs, RZO, GOG, Sabotage
falavam de violência policial, racismo e de desigualdades. Falavam
inclusive de líderes revolucionários. O GOG tem uma música em que diz:
«Malcolm X foi a Meca e o GOG ao nordeste», ele conta a história de
Malcolm X, a primeira vez que ouvi falar dele foi nessa música. Os
Racionais MCs tem uma música chamada «Jesus chorou» em que se fala:
«Malcom X, Ghandi, Lennon, Marvin Gaye, Che Guevara, 2Pac, Bob Marley, e
o evangélico Martin Luther King». O rap historicamente no Brasil, embora
hoje menos, é muito politizado e serve como voz da comunidades
periféricas. Não só para denunciar das mazelas da sociedade, mas como
memória de uma identidade e de luta contra o racismo. Em formações que
eu dava, antes da pandemia, usava muito o rap.

*Mas nem toda a gente que ouve o rap vira marxista-leninista*.

Há três elementos que contribuíram para isso. Primeiro elemento central,
a produção marxista no Brasil ficou muito centralizada na universidade.
E estas, até aos governos do PT, eram universidades da classe média e da
burguesia, o que tem impacto no tipo de produção marxista. No meu
primeiro contacto com os marxistas na faculdade, vi que eles não
correspondiam à minha realidade. Só para ter uma ideia, a influência no
Brasil era sobretudo uma leitura eurocomunista de Gramsci, de que dá
para construir o socialismo ampliando a democracia, e que a dominação
burguesa hoje se faz mais pelo consenso do que pela coerção. Só acredita
nisso quem é de classe média. Quem, como eu, nasceu numa favela de
Recife, não consegue levar isso a sério. O meu afastamento desse
marxismo hegemónico na universidade e adesão ao marxismo-leninismo para
mim foi natural na minha própria experiência empírica. Eu li estas
coisas e pensei: «Que país é esse? O Brasil não é».

    «Quem conhece a burguesia brasileira não consegue propor nenhuma
    aliança, mesmo que seja táctica, com essa classe»

O segundo elemento, é quando eu criei o hábito de leitura e decidi
organizar-me politicamente. Parei para ler os programas dos partidos
políticos do Brasil. Li os programas do PT, PC do B, PSOL, PSTU, PCR e
da Consulta Popular e por aí vai. Entrei no PCB, na sua organização da
juventude, a UJC, porque era o que deixava mais claro uma estratégia
socialista para a revolução brasileira. Quem conhece a burguesia
brasileira não consegue propor nenhuma aliança, mesmo que seja táctica,
com essa classe.

Um terceiro elemento, chamou-me muita atenção a história do PCB, quando
você estuda no vestibular, para a entrada da universidade, ouve muito
falar do PCB, de Luiz Carlos Prestes, Olga Benário e Ana Montenegro. E a
história do partidão sempre me encantou muito, principalmente via
Prestes. Quando entrei no PCB, deu-me muito orgulho: «vou militar no
mesmo partido que Luiz Carlos Prestes». Foi também isso que me levou a
concordar com o marxismo-leninismo do PCB.

*Em Recife, há uns anos, tentou candidatar-se na sua comunidade. Não o
fez porque foi ameaçado. Actualmente, com o domínio do tráfico de droga
e a repressão do Estado, há espaço nas comunidades para a luta
revolucionária?*

Há espaço. Mas é muito perigosa e difícil. Na favela, onde nasci e fui
criado, mantive um cursinho popular, chamado «Novo Caminho», para ajudar
jovens a conseguir entrar na universidade. Consegui manter essa
actividade durante dois anos, recrutei gente para a juventude do
partido, houve um reconhecimento social da comunidade para com o nosso
trabalho, mas quando foi a hora de disputar a associação de moradores o
meu caminho foi barrado. E repare que eu sou prata da casa, sou nascido
e crescido na favela do Borborema. Não consegui avançar nesse negócio.
Claro que na época eu não era ainda organizado no PCB. Tentei concorrer
à associação de moradores sozinho, sem um partido por trás, o que muda
bastante o cenário.

Agora é preciso dizer que todo o trabalho de base é perigoso. O Brasil é
um país muito perigoso para se militar. É perigoso, trabalhoso, exige
muita estrutura e planeamento. Exige muita paciência revolucionária. O
PCB tem vários trabalhos em comunidades, menos do que é necessário para
a revolução brasileira. Militar no Brasil não é como militar em Paris ou
em Londres. O nível de violência a que estamos submetidos, no
continente, só se compara com a Colômbia em que há um narco-Estado que
mata a rodos. Brasil e Colômbia são os países mais perigosos na região
para se militar.

*Pode-se dizer que a luta de classes no Brasil tem uma carga de ódio
muito maior devido ao peso da escravatura? Há um ódio da burguesia ao
proletariado aditivado pelo racismo?*

Com certeza. José Carlos Mariatégui, o famoso comunista peruano, matou a
charada nos anos 20 do século passado. Tem um texto que mostra que a
burguesia crioula se formou não só a partir de uma identidade classista
burguesa, mas também de uma identidade racial. Fazendo com que a
oposição de classe também assumisse uma forma de oposição racial,
inclusive eugénica, e que essa burguesia se achasse superior aos
caboclos, negros, mulatos e indígenas. Começamos a conversa pela
liquidação da Comuna de Paris, em que a burguesia matou 20 mil pessoas.
Aqui morre muito mais gente. O ódio de classe, quando se soma com o ódio
racial, toma traços neofascistas. É o que acontece com a burguesia
boliviana em Santa Cruz da Serra, a burguesia peruana em Lima. No Brasil
eles se auto-representam como brancos, descendentes directos dos
europeus, e a massa trabalhadora como uma espécie de ralé racialmente
inferior. E trabalham a partir de discursos de extermínio camuflados em
ideologia da segurança pública, em que «bandido bom é bandido morto»,
«tem que se matar o traficante». A grande diferença daqui e do discurso
do Hitler é que este afirmava claramente que odiava judeus, enquanto no
Brasil e em outros países mascara-se os genocídios com políticas de
segurança pública, mas no final o resultado é o mesmo.                 

*Concorda que as categorias de capitalismo, racismo e patriarcado fazem
parte do mesmo quadro da luta de classes?*

Totalmente, desde a obra de Marx e Engels que já está colocada a
multiplicidade de formas de expressão da luta de classes. Essa luta
nunca foi só o conflito capital e trabalho no âmbito da fábrica.
Estou-me a lembrar, por exemplo, no /Manifesto Comunista/, Marx e Engels
colocavam na luta de classes a luta pela libertação da Polónia, que era
uma luta de emancipação nacional. Assim como põem, no mesmo texto, a
importância da luta contra a opressão da mulher. Engels no seu famoso
/Anti-Duhring/, e no seu mais célebre capítulo intitulado do /Socialismo
Utópico ao Socialismo Ciêntífico/, repete a célebre frase de Charles
Fourier, em que o grau de emancipação de uma sociedade é medido pelo
grau de emancipação da mulher nessa sociedade. Assim como na /Origem da
Família, da Propriedade Privada e do Estado/, Engels defende que a
mulher é o proletariado do homem. E que o aparecimento da propriedade
privada significou a derrota mundial do sexo feminino, por ter provocado
um processo de exploração, no âmbito doméstico, do homem sobre a mulher,
numa estrutura patriarcal.

    « Os comunistas lutaram contra o /apartheid/. Isso faz parte também
    da luta de classes»

Diria mais, Domenico Losurdo, no seu livro /A Luta de Classes, uma
História Filosófica e Política/, demonstra que desde a obra de Marx e
Engels há uma compreensão sobre três níveis interligados de exploração e
opressão: o âmbito da vida doméstica, com o patriarcado e a exploração
da mulher; o âmbito nacional, com a retirada de mais-valia a partir da
exploração do proletariado; e o âmbito internacional, a partir da
exploração dos países e povos colonizados. Esses três níveis
articulam-se directamente e fazem com que a luta de classes passe também
por lutas contra a exploração, o imperialismo, o machismo e o racismo.
Algo que foi materializado muito bem na história do movimento comunista.

Há um exemplo que eu gosto muito de dar: hoje todo o mundo gosta de
Nelson Mandela, que virou um ícone mundial, mas quando ele estava preso,
os Estados Unidos chamavam-no de «terrorista», e eram os comunistas que
apoiavam a luta contra o/apartheid/. E Cuba mandou milhares de soldados
para lutar, ao lado dos revolucionários africanos, contra o /apartheid/
e pela independência das ex-colónias portuguesas em África. Os
comunistas lutaram contra o /apartheid/. Isso faz parte também da luta
de classes. Não se pode ter uma visão redutora e economicista da luta de
classes.

*Contesta algumas acusações de correntes da esquerda, e até de alguns
activistas anti-racistas, de que o marxismo é eurocentrista, em que as
questões raciais não estão devidamente espelhadas na teoria comunista?*

Estas críticas só se sustentam na base da falsificação histórica. O
marxismo é a tendência teórica política que, depois do liberalismo, teve
mais alcance mundial. O que significa que é possível encontrar de tudo
no marxismo: há marxismo estruturalista, marxismo humanista, marxismo
analítico, marxismo existencialista, marxismo weberiano, marxismo
pós-moderno. O que você procurar vai achar em algum canto do mundo.
Existiram e existem marxistas eurocêntricos, marxistas que não dão
atenção às lutas anticoloniais e anti-racistas. Agora existe também toda
uma larga tradição do marxismo que deu um papel fundamental, no século
XX, às lutas anti-racistas e coloniais.

    «O marxismo ser um negócio de brancos e que não deu atenção às lutas
    anticoloniais e anti-racistas é uma afirmação que não se sustenta
    sob nenhum prisma»

Três exemplos básicos: os principais líderes das lutas de libertação
nacional na África negra ou eram marxistas ou tinham relações com o
marxismo. Amílcar Cabral, Samora Machel, Agostinho Neto e Thomas Sankara
eram marxistas. E os que não eram marxistas, como Lumumba, tinham
óptimas relações com os marxistas e contavam com o movimento comunista
como aliado das suas lutas de libertação. Segundo exemplo importante,
nos EUA só houve o sufrágio universal – uma cabeça, um voto – em 1965,
quando acabou a segregação racial. A principal organização de luta
contra a segregação racial é o partido das Panteras Negras, uma
organização marxista-leninista que o FBI considerou a maior ameaça ao
capitalismo estado-unidense. O terceiro exemplo, muito significativo, é
que o processo de descolonização da Ásia passou pela liderança dos
partidos comunistas: o chinês, o vietnamita, o coreano, o do Laos. Mesmo
na Índia, os partidos comunistas têm um papel importante, e até hoje na
região de Kerala há uma grande tradição comunista enraizada nas massas.

O marxismo ser um negócio de brancos e que não deu atenção às lutas
anticoloniais e anti-racistas é uma afirmação que não se sustenta sob
nenhum prisma, a não ser que se reduza o marxismo às suas expressões
eurocêntricas, a figuras como Kaustky ou, actualmente, a Zizek. E queria
acrescentar mais um elemento: o Portugal fascista, dominado pelo
salazarismo, foi aceite pelo Ocidente, entrou na NATO, e a nossa amiga
Hannah Arendt, famosa pela sua teoria sobre o totalitarismo, que tentava
igualar a União Soviética ao nazismo, não colocou o fascismo salazarista
como totalitário, dizia que era apenas autoritário. Esse discurso acaba
por fazer o jogo do liberalismo que se relacionou muito bem com o
fascismo salazarista. Escondendo, por exemplo, que os comunistas
organizados no PCP, que eram a principal força de resistência contra o
fascismo, apoiaram as lutas anticoloniais de África, enquanto os EUA
apoiavam o regime colonialista e fascista. Quando se diz que o marxismo
é eurocêntrico, não só se está a falsificar a história como se está
apoiar os liberais que foram aliados históricos do salazarismo.

*Um autor dos EUA,  Asad Haider,  afirma que o racismo não é produto das
raças, mas as raças é que são produto do racismo. E que a luta
anti-racista tem como objectivo a liquidação da ideia de raças e as
desigualdades que por ela são sustentadas e não a criação de qualquer
«negritude». Concorda?*

Concordo plenamente, inclusive li a entrevista do Asad Haider no
/*AbrilAbril*/, uma entrevista muito boa, como sempre. É um autor muito
qualificado e o que ele fala não é uma ideia nova, baseia-se muito nas
ideias do Frantz Fanon. Defende uma perspectiva que eu gosto de chamar
de humanismo radical. Comprende que a divisão do mundo em raças é um
produto da modernidade, a partir da acumulação primitiva de capital que
se consolida no capitalismo, e que a questão, em última instância, não é
uma sociedade de igualdade racial, mas é uma sociedade desracializada.
Evidentemente, que enquanto elemento táctico nós vamos reivindicar
elementos da positividade do negro na luta anti-racista. Só que isso não
significa que a gente abra mão do horizonte último de desracialização;
da mesma forma que o objectivo de acabar com a classe trabalhadora
enquanto classe, no socialismo, em que todos serão trabalhadores, não
implica que, nas lutas imediatas, no capitalismo, a gente não organize
sindicatos para melhorar os salários:  apesar disso reproduzir o
assalariamento. Como na luta de classes, no caso do racismo acontece o
mesmo.Usamos os elementos de positivação de ser negro, frente à
inferiorização do ser negro, que são intrínsecos à ideologia racista.
Mas o horizonte último é a desracialização da sociedade. Frantz Fanon
estava correctíssimo, fazer com que o signo raça deixe de ser um
marcador e um estruturador de relações sociais.   

*O capitalismo vive em permanente crise e ela parece, cada vez, mais
aguda. Mas por que é que parece mais possível uma catástrofe natural ou
a invasão de extraterrestres, para usar uma imagem de Fredric Jamenson,
do que a simples superação do capitalismo?*

Vivemos uma época contra-revolucionária da qual não nos libertamos
totalmente. A queda da União Soviética e a derrota do socialismo foi
muito grande. E há um processo de reconstrução do movimento
revolucionário. Essa reconstrução é muito tímida, está mais avançada
nuns países que em outros. Há ainda uma busca de horizontes
revolucionários que não estão claros. Há muitos debates sobre
pós-marxismo, sobre socialismo revolucionário no século XXI, sobre
populismo de esquerda, debates que não têm consequências práticas, mas
ainda vamos ter um caminho muito longo para que o marxismo-leninismo
renovado, com todos os novos problemas do século XXI, consiga dar
respostas aos desejos das massas. Ainda vai demorar muito a construir um
movimento revolucionário mundial e conseguir colocar na ordem do dia,
como já esteve, o fim do capitalismo.

*Não pode haver necessidade de uma adequação teórica aos novos tempos e
uma necessidade de identificar o que será hoje um sujeito revolucionário
para a transformação, e o que é hoje essa «classe
operária» revolucionária e ainda como criar um movimento revolucionário
a partir desse sujeito?*

Acho que sim, mas a resposta para isso não está em abandonar o
marxismo-leninismo, mas em renovar a teoria assimilando novos problemas,
acompanhando as transformações do sistema capitalista. Vou dar um
exemplo, há um processo claro no Ocidente de desindustrialização com a
deslocação de várias indústrias para a Ásia, com a recomposição da
economia do mundo em que a China é a fábrica do planeta. Isso faz com
que cresça, no chamado Ocidente, o trabalho informal e o assalariamento
nos sectores do comércio e serviços, uma mudança no perfil da classe
trabalhadora. Hoje faz muito mais sentido falar de assalariados urbanos
do que falar em classe operária, no sentido fordista. Isso é um problema
do ponto de vista organizativo e em relação às novas reivindicações. A
classe trabalhadora brasileira é maioritariamente feminina, mesmo a que
tem emprego formal; a classe trabalhadora informal para além de ser
maioritariamente feminina é muito negra. Então, a figura da mulher negra
e mãe solteira é muito presente no exército industrial de reserva.

*A ideia de classe operária estava ligada à produção de mais-valia, isso
só era possível em trabalhos que criassem valor. O marxismo excluía
desse quadro a distribuição, os serviços e o comércio. Hoje, ao
considerar-se que na nova classe trabalhadora estão, por exemplo, os
distribuidores da Uber Eats, não há uma mudança na teoria valor-trabalho?*

Não creio que haja uma mudança teórica, mas uma mudança nas formas de
exploração. Quando Marx escreveu o livro I de /O Capital/, a maioria da
população era explorada via colonialismo; o trabalho assalariado, como
forma dominante de exploração, é da segunda metade do século XX. Quando
a Internacional Comunista é criada, a maioria da população era
colonizada e vivia em formas de semi-escravidão. A teoria do
valor-trabalho e do fulcro do capitalismo com a exploração estava
valendo, agora nós temos outras transformações, só que o essencial da
coisa continua: a propriedade privada dos meios de produção, a
existência de um contingente gigantesco da população que não tem mais do
que a sua força de trabalho para vender e a apropriação privada da
riqueza socialmente criada. A partir daqui vamos pensar em novas
tácticas e formas de organização e comunicação para organizar os
explorados e oprimidos, mas eles continuam explorados e oprimidos. O
núcleo da questão continua a ser explicado pela teoria marxista.

*Num filme muito conhecido, /Matrix/, a humanidade estava presa numa
ilusão gerada por um programa computorizado e só era possível combater
essa ilusão desconectando-se dele. É possível fazer luta revolucionária
no quadro do capitalismo de vigilância e das tecnologias de comunicação
e redes sociais?*

Totalmente, mas é preciso uma política leninista séria. Hoje, no Brasil,
é mais fácil arrecadar dinheiro, do que era no tempo da ditadura
militar. Também é muito mais fácil a vigilância, mas escapar dela exige
um nível de planeamento e de organização e estrutura... Inclusive uma
organização revolucionária que se preze tem de ter um departamento
interno de /hackers/ e segurança da informação. Tem de aprender a
actuar, fazer guerrilha virtual, uma área que é muito dominada pelos
anarquistas, os cyber-punks, e os marxistas-leninistas estão a dormir
nessa área. Há algumas experiências existentes interessantes mas é
necessário voltar a ter a ideia leninista de uma política planeada e
organizada. O espontaneísmo, numa altura que se tem as maiores
capacidades de vigilância, é facilmente derrotado, aliás sempre o foi.

*Usa as redes para fazer política, mas foi uma acção espontânea. O PCB
nada teve a ver com isso.*

(Risos) Eu acho errado, isso devia ter sido discutido politica e
internamente. Acho que até partidos leninistas precisam de mais
leninismo. Há um conservadorismo muito grande. É muito difícil debater
uma política /hacker/ com qualquer comunista. Usou o termo de
«capitalismo de vigilância». Conheço várias pessoas que o usam, acho
interessante o debate, mas colocando a pergunta de Lénine, eu quero
saber é «o que fazer?» E aí não se vê uma reacção prática concreta.
Pode-se dizer que o capitalismo tem a maior capacidade de vigilância da
história, é verdade. Mas cadê o nosso sistema de comunicação
criptografado que não passe pelo Google? Qual é o nosso recrutamento
direccionado para pessoas das Tecnologias de Informação para que
possamos fazer uma guerrilha que impeça essa vigilância? Isso é um
problema, há um certo tradicionalismo, muito forte, que não percebe que
a mudança das relações de produção capitalistas e nas formas de
dominação exigem alterações tácticas, de organização e comunicativa. Do
mesmo jeito que Engels, no famoso prefácio a /As Lutas de Classes em
França/, defendeu que a táctica de barricadas já não era eficaz com o
desenvolvimento da ciência militar, e que era preciso outras formas de
acção, é preciso hoje encontrar essas novas formas. É difícil? É. Temos
de ter uma criatividade política sem sair do marxismo-leninismo, é esse
o 'x' da questão, sem andar com teorias eclécticas da moda.

In
ABRIL ABRIL
https://www.abrilabril.pt/internacional/jones-manoel-uma-organizacao-revolucionaria-tem-de-ter-um-departamento-de-hackers
15/6/2021

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