terça-feira, 29 de janeiro de 2019

A tragédia neoliberal de Brumadinho









 por Andre Araujo


Os fanáticos das privatizações só veem vantagens em qualquer privatização. A
máxima de uma empresa privada consagrada pela segunda onda do capitalismo é
MAXIMIZAR O VALOR PARA O ACIONISTA. Dento dessa lógica a ferramenta central é a
redução de custos dos fatores de produção, a redução de custos está por trás da
recente tragédia do rompimento da represa de Brumadinho.
Nem sempre foi assim. O capitalismo imperial nascido na Inglaterra na virada do
Seculo XVIII para o XIX tinha uma lógica de poder ligado à visão civilizatória
de mundo que vinha do "ethos" britânico. Os ingleses espalharam pelo mundo suas
ferrovias, plantações, docas (até o porto de Manaus era inglês). Junto com o
investimento vinha um estilo, uma postura de orgulho da civilização inglesa
espalhada pelos territórios primitivos.
As obras de engenheiros britânicos eram de extraordinária qualidade como as
represas que deram energia a São Paulo, a Gurapiranga e a Billings, sem um único
acidente em mais de um século, a ferrovia da Serra do Mar de São Paulo a Santos,
a maior do mundo em cremalheira em um declive impossível, linhas de navegação,
serviços de águas, companhias de bondes, gás e eletricidade. Pelo caminho abriam
mercado para os produtos da crescente indústria inglesa. Era uma visão de
conquistadores mais do que de contadores. Cecil Rhodes criou um País e o Império
britânico dominava 1/4 da superfície terrestre.
O atual capitalismo de matiz americanizada tem uma lógica mais estreita ligada
ao valor das ações na bolsa, não há interesse na glória de um império, por isso
veem como normal vender uma empresa símbolo como a MONSANTO, ícone de St.Louis
para os alemães da Bayer. O negócio foi bom para os acionistas da Monsanto e
isso é a única coisa que interessa. O orgulho americano e os 14.000 empregos
cortados nos EUA não valem nada.
O estouro das represas da VALE se insere nessa lógica. É óbvio, evidente,
cristalino, que o desastre nasceu da INSUFICIÊNCIA da barragem de contenção dos
rejeitos. Não houve trovão, tempestade ou terremoto para culpar. A pressão do
material contido foi maior do que a resistência da barragem e essa só rompeu
porque o muro deveria ser maior e mais espesso, o que custa mais investimento e
MENOS VALOR PARA O ACIONISTA. É simples assim.
Técnicas de barragem são conhecidas desde os sumérios e assirios, há 10 mil
anos. O cálculo é perfeitamente possível, o animal castor constrói barragens que
não se rompem, os romanos e árabes construíram barragens precisas, as grandes
hidroelétricas brasileiras têm barragens monumentais e seguras.
Hoje, o executivo é treinado para economizar no CURTO PRAZO, mesmo com o risco
de prejuízos no longo prazo. Mas aí o executivo pode ser outro.
Toda, absolutamente toda a bússola da administração de uma EMPRESA DE MERCADO
está no valor das ações. Essa é a religião dos administradores. Não há nenhum
valor social, humanitário, patriótico no código dos rapazes com MBA, são mentes
estreitas, focadas em um só objetivo.
Citemos um exemplo, a ELETROPAULO. Quando estatal a falta de energia durava 1, 2
ou 3 horas, quando havia. Hoje leva no minimo 10 horas e há muitos casos de
falta de energia por mais de 24 horas ou até 4 dias. Qual a explicação? Para
maximizar o lucro, e portanto o VALOR PARA O ACIONISTA, desmontou-se todo o
valioso sistema de manutenção das redes, que vinha da antiga companhia São Paulo
Tramway, Light and Power, de espírito inglês. Os funcionários tinham orgulho do
uniforme LIGHT, orgulho que continuou na ELETROPAULO, estatal que tinha 27.000
empregados, número compatível com a extensão da concessão, uma das maiores do
mundo, atendia a Grande São Paulo com 20 milhões de habitantes. Depois de
privatizada o número de empregados caiu para pouco mais de 3.000, a manutenção
foi terceirizada para quem cobrasse o menor preço. Obviamente que nesse esquema
a qualidade dos funcionários caiu de 100 para 5, o serviço ficou péssimo, tudo
em função de criar o MAIOR VALOR PARA O ACIONISTA.
Enquanto isso os Sardenbegs & Tecos da mídia só veem vantagem nas privatizações,
continuam alardeando que o Brasil tem 400 estatais, nenhum Pais tem tantas,
etc., o que é PURA LENDA. Os Estados Unidos tem estatais em numero de 8.600 mas
com outro nome, são entes públicos que cuidam de águas e esgotos, aeroportos,
portos, transportes coletivos nas cidades, usinas hidroelétricas, rodovias
pedagiadas. O FORMATO LEGAL é de ente público mas têm a mesma função de estatais
no Brasil. Aqui é SABESP, lá é NEW YORK WATER DEPARTMENT, mas fazem exatamente a
mesma coisa, fornecem água, emitem fatura casa a casa, tem reservatórios,
consertam as tubulações na rua, só que nos EUA não tem o nome de ESTATAIS, aqui
seriam estatais.
Nos EUA são raríssimos aeroportos privados, no Brasil os maiores já são
privatizados, nos EUA as rodovias com pedágio são do Estado e não de companhias
como a CCR, os transportes coletivos são das Prefeituras, as represas e usinas
hidroelétricas são Federais, os portos são estaduais. Os EUA, matriz do
capitalismo neoliberal, NEM COGITAM DE PRIVATIZAR aeroportos, serviços de água,
portos, ônibus e metrô, REALIDADE QUE OS NEOLIBERAIS BRASILEIROS ESCONDEM.
Por que os americanos não pensam em privatizar? Porque eles sabem que certos
serviços públicos devem ter como prioridade o atendimento ao interesse publico e
não o MÁXIMO VALOR AO ACIONISTA, certos serviços não se prestam a ser
financeirizados.
A Companhia Vale do Rio Doce tem origem no governo Arthur Bernardes e foi
estatal por 60 anos. NÃO HOUVE ROMPIMENTO DE REPRESA nesse período. A Companhia
tinha um viés de interesse público e era assim dirigida por engenheiros com foco
no Pais e não na Bolsa de Nova York.
A privatização da VALE foi um banquete da especulação financeira, os grupos mais
piratas do Brasil se sentaram à mesa para trinchar o porco, ninguém estava
minimamente interessado em produção e País, o único que queria disputar e que
era do ramo, Antonio Ermirio de Moraes, foi posto para fora do leilão.
Conclusão, hoje a VALE é uma empresa de financistas, sua única lógica é a de
mercado de ações, é dirigida por financistas desde a privatização.
E ainda o novo governo tem como bandeira AFROUXAR OS CONTROLES AMBIENTAIS para
estimular a mineração na Amazônia.
Na verdade as BARRAGENS DE CONTENÇÃO DE REJEITOS deveriam ter regras de
RECUPERAÇÃO DE SOLO para evitar que nas áreas de mineração só fiquem crateras
lunares, as áreas deveriam ser replantadas para uso ao menos recreativo, é assim
que fazem países civilizados, como o Canada.
A mineração no Brasil rende dólares hoje, mas deixa para trás uma ruína
ambiental muitas vezes maior do que o que o Brasil ganhou com a exportação de
minério barato. Qual a vantagem para o povo brasileiro? Mineração desse estilo é
para países primitivos, o Brasil deveria ter outro rumo para seu futuro.
Por ironia da História, o desastre se dá exatamente no início de um governo que
tem como uma de suas bandeiras RELAXAR a fiscalização ambiental que já é quase
nula no Brasil. Hoje, no espasmo do desastre, se verifica que só 3% das
barragens brasileiras foram fiscalizadas nos últimos dois anos.
País que não liga para dano ambiental é país primitivo, incivilizado. Essa
atitude é indigna do Brasil moderno e com pretensões de grande Pais.

In
GGN
https://jornalggn.com.br/noticia/a-tragedia-neoliberal-de-brumadinho-por-andre-araujo
29/1/2019

sábado, 26 de janeiro de 2019

Docentes de Los Ángeles ganan una batalla contra la privatización de la educación




Amy Goodman y Denis Moynihan
Democracy Now!


Llevó una semana, pero los docentes de las escuelas públicas de Los Ángeles
ganaron la batalla. Más de 30.000 docentes y personal escolar, miembros del
sindicato “Docentes Unidos de Los Ángeles” (UTLA , por su sigla en inglés), se
declararon en huelga por primera vez en 30 años, en demanda de más recursos para
sus aulas, personal auxiliar y de biblioteca en cada escuela, grupos más
pequeños por clase y mejores salarios. Tanto al sol como bajo la lluvia,
estudiantes, madres, padres y otros aliados se unieron a los piquetes y
manifestaciones convocadas por los maestros. El martes, el Distrito Escolar
Unificado de Los Ángeles ( LAUSD ) —el segundo mayor distrito escolar del país,
del cual casi tres cuartos de sus estudiantes son latinos— acordó satisfacer las
demandas de los docentes en huelga. Las clases se reanudaron el miércoles. Esta
importante huelga también se suma a una ola de medidas similares llevadas a cabo
en todo el país por docentes que luchan contra el intento de los intereses
corporativos de privatizar la educación pública.
El martes por la noche, el presidente del sindicato docente de Los Ángeles, Alex
Caputo-Pearl, hizo estas declaraciones después de que una gran mayoría de los
miembros del sindicato ratificara el acuerdo: “Hicimos huelga, una de las
huelgas más grandes que ha vivido Estados Unidos en décadas. La creatividad, la
innovación, la pasión, el amor y la emoción de nuestros afiliados estuvieron
presentes en las calles, en las comunidades, en los parques, a la vista de
todos”.
Arlene Inouye, especialista del habla y el lenguaje con 18 años de experiencia
en el Distrito Escolar Unificado de Los Ángeles, presidió el comité de
negociación por parte del UTLA . En una entrevista para Democracy Now!, Inouye
declaró: “Este fue un acuerdo histórico y nos dio más de lo que esperábamos”. Se
cumplieron todas sus demandas principales, como poner un límite a las escuelas
“chárter” para revertir la tendencia hacia la privatización, y además se
pusieron sobre la mesa otro tipo de demandas. Inouye explicó: “También pudimos
incluir en nuestras escuelas algunos temas de negociación no obligatorios, los
que llamamos ‘asuntos de bien común’, como espacios verdes en los campus,
detener la criminalización de los jóvenes. Pudimos conseguir un fondo de defensa
para inmigrantes. Estamos haciendo una declaración de valores”.
También en Democracy Now!, la investigadora y periodista Sarah Jaffe, autora del
libro “Necessary Trouble: Americans in Revolt” (“Problemas necesarios:
estadounidenses en rebelión”, en español), manifestó: “Ha habido corrientes de
reforma dentro del UTLA desde hace al menos una década. Los docentes me contaron
que estos movimientos se remontan a la crisis financiera de 2008, la recesión y
el despido masivo de muchos docentes, y que de allí surgió el intento de
conformar una nueva corriente interna. En 2014, la agrupación Union Power ganó
las elecciones y con docentes como Arlene y Alex Caputo-Pearl al frente
introdujo un departamento de organización, un departamento de investigación, un
departamento político, que el sindicato no tenía anteriormente, y logró que los
docentes votaran a favor de aumentar sus propias cuotas sindicales para poder
llevar a cabo estas propuestas. En este clima, tras [el juicio de Mark] Janus,
que fue [desfavorable] para los trabajadores del sector público, deberíamos
prestarle atención a un sindicato que, nuevamente, hizo que los docentes
aumentaran sus propias cuotas para invertir en convertirse en un sindicato de
lucha y movilización de verdad”.
En sus manifestaciones, los maestros y profesores mencionaron en reiteradas
ocasiones el tema de la privatización. La docente Marianne O’Brien expresó en
diálogo con Democracy Now!: “Básicamente, esta lucha aborda la privatización de
las escuelas. El superintendente Austin Beutner está presionando para privatizar
las escuelas. Y eso es un problema para nosotros porque, si todos los fondos
para las escuelas públicas se destinaran a las escuelas chárter, nuestros
estudiantes se verían perjudicados de manera desproporcionada y no tendrían
acceso a una educación de calidad”.
El superintendente Austin Beutner, un acaudalado banquero de inversión, no tiene
experiencia previa en educación. ¿Cómo llegó al cargo? La escritora Sarah Jaffe
explicó cómo fue la elección de la junta escolar del Distrito Escolar Unificado
de Los Ángeles en 2018: “El año pasado hubo elecciones para designar a la nueva
junta escolar. La campaña involucró 14,7 millones de dólares provenientes de
fondos externos, invertidos por defensores de las escuelas chárter, grandes
fondos de cobertura y cosas por el estilo; las personas que normalmente vemos
introducirse en estos lugares. Así que obtuvieron una mayoría de candidatos a
favor de las escuelas chárter y colocaron a Beutner en el cargo”.
Uno de los planes de Beutner es dividir el Distrito Escolar Unificado de Los
Ángeles en 32 distritos “modelo”, imitando los procedimientos de ciudades como
Detroit y Newark que, según el UTLA , “están plagados de un entramado de planes
de privatización que no mejoran los resultados de los estudiantes”.
Las escuelas chárter no solo pueden despedir docentes más fácilmente que las
escuelas públicas; también pueden despedir a los alumnos. Al elegir estudiantes
de alto rendimiento y rechazar a aquellos que tienen necesidades especiales o
puntaje bajo en los exámenes estandarizados, las escuelas chárter agotan los
recursos de las escuelas públicas de los vecindarios más pobres. Lilit Azarian,
otra docente presente en el piquete, nos dijo: “Se trata de luchar por las
comunidades de color, porque esas son las comunidades afectadas por esta
corriente privatizadora que ha tomado el control”.
En marzo habrá una elección especial para cubrir un cargo en la junta escolar
del Distrito Unificado de Los Ángeles que quedó vacante cuando un miembro se
declaró culpable de haber cometido delitos financieros graves en la campaña. La
elección está siendo fuertemente disputada entre los defensores de las escuelas
chárter y el UTLA y otros aliados de las escuelas públicas tradicionales. Jaffe
opinó: “Si los docentes quieren a Beutner afuera, esta será la forma de
lograrlo”.
El año pasado, una ola de huelgas docentes atravesó el país, pero en estados de
mayoría republicana, como Virginia Occidental, Oklahoma y Arizona. Los docentes
se declararon en huelga y lograron mejoras notables; no solo en salarios y
beneficios, sino también en recursos para las escuelas y aulas. Ahora los
maestros se están alzando en bastiones demócratas como Los Ángeles. El martes,
cuando el UTLA declaró la victoria y puso fin a la huelga, el sindicato docente
de Denver, Colorado, votó por abrumadora mayoría a favor de hacer huelga.
También se espera que los docentes sindicalizados de Oakland, California, hagan
huelga, al igual que los de las universidades comunitarias de Chicago.
Si los docentes de Los Ángeles son una señal de lo que está por venir, los
privatizadores y su defensora en Washington D.C., la multimillonaria secretaria
de Educación Betsy DeVos, podrían estar frente a oponentes más que fuertes.

© 2019 Amy Goodman
Traducción al español del texto en inglés: Inés Coira. Edición: María Eva Blotta
y Democracy Now! en español, spanish@democracynow.org
Amy Goodman es la conductora de Democracy Now!, un noticiero internacional que
se emite diariamente en más de 800 emisoras de radio y televisión en inglés y en
más de 450 en español. Es co-autora del libro “Los que luchan contra el sistema:
Héroes ordinarios en tiempos extraordinarios en Estados Unidos”, editado por Le
Monde Diplomatique Cono Sur.
Fuente:
http://www.democracynow.org/es/2019/1/25/docentes_de_los_angeles_ganan_una


In
REBELION
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=251775
26-1-2019

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Fé evangélica e reestruturação psíquica


 por Wilton Moreira
 

Em um _outro artigo
<https://jornalggn.com.br/blog/wilton-cardoso-moreira/fe-evangelica-e-fascismo-por-wilton-moreira>_,
mencionei que há décadas as igrejas evangélicas, principalmente as
neopentecostais, preparam o terreno para a ascensão de ideias fascistas
no Brasil, ao propagar um fundamentalismo cristão baseado na
desvalorização ou demonização de certos grupos sociais, como os LGBTs,
praticantes de religiões de matriz africana ou indígena, mulheres,
feministas e “comunistas”. Acrescente-se a estes grupos os dependentes
químicos, inclusive do álcool, cujo uso é proibido ou bastante
restringido entre os fiéis.
Mas como as igrejas evangélicas conseguiram tamanha adesão popular,
entrando em espaços propícios à esquerda, inclusive à religiosidade de
esquerda, como foi a Teologia da Libertação, nascida no seio do catolicismo?
*O novo indivíduo e a fé evangélica*
Não ser uma fé alinhada com as ideias de esquerda foi justamente que
proporcionou o sucesso da fé evangélica. O capitalismo não é apenas um
sistema econômico que explora os trabalhadores. Ele desenvolve o que
Marx chamava de ideologia, que é um sistema de ideias e crenças que
justifica esta exploração.
Eu iria mais longe e afirmaria que o capitalismo, mais que ter uma
ideologia (parte de sua superestrutura) é uma cultura, no sentido
antropológico do termo. Uma cultura inédita na história da humanidade,
na qual as pessoas alienam seu poder criativo a uma forma social
abstrata chamada capital. O capital tem leis objetivas e rigorosas, mas
profundamente estranhas ao que nas culturas anteriores se identificava
como humano.
O objetivo principal do capital, o de multiplicar-se indefinidamente
através do lucro, é simplesmente desumano. As pessoas que nascem sob o
regime capitalista podem não notar, mas o principal objetivo de sua vida
é o de trabalhar para reproduzir uma riqueza abstrata que,
concretamente, jamais lhe servirá. Por isto, Marx, em certos momentos,
diz que, por trás da subjetividade burguesa, o que impera de fato é o
sujeito automático, que é o próprio capital comandando, a partir do
inconsciente, as ações humanas.
Num regime capitalista plenamente estabelecido, o sujeito automático
assume então a hegemonia da subjetividade dos indivíduos que passam a
pensar e agir para o capital, tanto individualmente quanto coletivamente.
O Brasil das décadas de 70 e 80 é um país majoritariamente urbano e
plenamente capitalista, mesmo nas pequenas cidades do interior. Alguns
argumentam que o capitalismo nunca foi pleno no país, carente, por
exemplo, de uma forte burguesia industrial. Eu responderia que, com a
urbanização maciça e desordenada das décadas de 60 e 70, promovida pelo
desenvolvimentismo da ditadura militar, o processo capitalista se
completou no país, na forma de um capitalismo de estado de direita.
A população ativa da década de 1980 já está completamente desenraizada
da cultura rural, que até meados do século XX preservava fortes
características arcaicas e não capitalistas, como, por exemplo, a quase
inexistência de trabalho abstrato. A partir da década de 1980, o
trabalho abstrato, mesmo que precário (como os de ambulante, pedreiro,
garçom e doméstica) passa a prevalecer, alterando todo um modo de vida
cotidiano, mas também a subjetividade profunda dos indivíduos, que passa
a coincidir com o sujeito automático (capital).
A nova crença dos evangélicos pentecostais, continuadores da tradição
protestante da ética do trabalho, do individualismo, da racionalidade
(instrumental) e da disciplina pessoal, vem de encontro com esta nova
subjetividade capitalista, que se torna hegemônica a partir da década de
1980. Por outro lado, apesar do sucesso momentâneo da Teologia da
Libertação, suas ideias comunitárias, baseadas na solidariedade e na
crítica ao individualismo exacerbado, estão muito mais vinculadas ao
Brasil rural que fica para trás.
Portanto, a fé evangélica, ancorada desde suas raízes protestantes
europeias na cultura capitalista, se torna muito mais adequada à psique
do novo indivíduo brasileiro, urbano e que ganha a vida com seu trabalho
abstrato. Psique regida, agora, pela batuta inconsciente do sujeito
automático, ou seja, pelo capital; e que se torna refratária a qualquer
crítica “de esquerda” ao sistema, pois a negação do sistema implicaria
na negação de sua própria subjetividade, ou seja, seria um
questionamento da identidade do indivíduo enquanto homo economicus,
circunscrito na e pela sociedade capitalista. Por outro lado, a crença
evangélica, ao afirmar a cultura do capital, reforça essa identidade
individual.
*A miséria e a reestruturação da psique*
Não é necessária muita observação para constatar que, individualmente, a
fé evangélica é responsável por numerosas reestruturações psíquicas
extremamente benéficas para o indivíduo e seu círculo familiar.
O impacto destes verdadeiros renascimentos espirituais é maior ainda em
ambientes sociais degradados pela miséria, como periferias, favelas e
pequenas cidades. Em tais ambientes, nos quais vivem boa parte da
população brasileira, os indivíduos e as famílias vivem numa perigosa
proximidade com o crime (principalmente os jovens do sexo masculino) a
prostituição (as mulheres jovens) e a dependência química, seja de
drogas ilícitas ou do álcool. O trabalho precário ou o desemprego, a
ausência de estado, a humilhação diária e o individualismo “salve-se
quem puder” próprio do capitalismo tornam a miséria urbana um verdadeiro
inferno, social e psicológico.
Mas os indivíduos que sofrem neste inferno são, como os demais membros
da sociedade capitalista, guiados pelo sujeito automático do capital e
se tornam refratários à crítica ao sistema (mesmo que limitada) que a
esquerda costuma oferecer, bem como à medidas de caráter coletivista,
como priorização do transporte público em substituição ao automóvel, por
exemplo. O que eles desejam é terem chance de se tornar, com estudo e
trabalho duro, pessoas de classe média ou, simplesmente, pessoas de bem.
Trata-se portanto, dos desejos de um sujeito liberal, perfeitamente
conformado à cultura capitalista. Registre-se que o grande sucesso do PT
e de Lula nos anos 2000 se deveu ao fato de que esta “ralé” ascendeu
socialmente, mesmo que de forma precária, realizando estes sonhos de
consumo individualistas, como comprar automóvel, frequentar shoppings,
viajar de avião etc.
É a estes indivíduos desesperados e desamparados, mergulhados na favela
sem fim das classes populares, cuja psique é formada pelo sujeito
automático, que a fé evangélica vem socorrer, com sua promessa de
salvação, não em outra vida, como na fé católica, mas ainda nesta e de
forma rápida e efetiva.
A conversão, de fato, disciplina e organiza a psique do brasileiro pobre
e miserável, que se protege da dependência química, da criminalidade e
da prostituição que rondam suas frágeis famílias num ambiente social
degradante. Ao se converter, muitos passam da condição de “malandros”,
“viciados” ou “perdidos” para a de pessoas de bom senso, comedidas e
educadas. Maus pais passam a dar atenção aos filhos, maus maridos passam
a respeitar suas parceiras, brigões se amansam, criminosos se contentam
com o ganho modesto do trabalho duro e muitas vezes precário.
Não se pode negar que, para muitíssimos casos, a conversão evangélica
proporciona à pessoa um verdadeiro renascimento, a partir do qual sua
vida psíquica e familiar se torna muito melhor. Como consequência, o
indivíduo se insere melhor também no mercado de trabalho, tornando-se
mais produtivo. Mesmo nas durezas do trabalho precário e do desemprego,
comuns às populações pobres, sua resignação e disciplina financeira,
decorrentes de sua maior força psíquica, ajudam-no a enfrentar os
percalços, mitigando seu sofrimento e de sua família.
Outro aspecto positivo das igrejas evangélicas é que elas formam
efetivamente uma comunidade de “irmãos”, uma grande família na qual uns
amparam os outros, psicologicamente, mas também e materialmente. Se
algum membro da comunidade passa por dificuldades financeiras ou
problemas de saúde, a igreja, sob a liderança do pastor, provê o básico
até que o necessitado se restabeleça. Na comunidade evangélica não é
raro, inclusive, que o irmão de crença privilegie o outro na hora de
contratar um empregado ou se associar como parceiro de trabalho.
Este espírito comunitário é, quase sempre, a única garantia de
sobrevivência em caso de desemprego, dificuldades financeiras ou de
doenças que venham a acometer as pessoas muito pobres nas periferias das
cidades, invisíveis para o estado e para as classes médias e altas.
Trata-se, portanto, de um amparo crucial nos momentos de desamparo por
que passam quase todos os pobres.
É claro que tal comunidade evangélica difere em muito das comunidades
arcaicas do Brasil rural, marcadas pelo compartilhamento da terra, das
atividades de cultivo e da colheita. A comunidade evangélica, ao
contrário, é marcada pelo apoio através da caridade (como também as
rurais) e da preparação (espiritual, mas também técnica) do irmão para o
mercado de trabalho. Não se compartilham meios de produção ou ganhos
financeiros, mas sim educação espiritual e técnica. Não é raro, por
exemplo, que mestres de obras trabalhem apenas com serventes
evangélicos, que depois se tornam pedreiros e mestres de obras, assim
ocorrendo em várias outras profissões de nível básico ou médio,
normalmente precárias, como mecânicos, vidraceiros, marceneiros,
serralheiros, vendedores etc.
Como nas comunidades arcaicas, a regra é que os evangélicos nãos
questionem os seus fundamentos culturais que, no caso são os do próprio
capitalismo, pois é na ética do trabalho (e não apenas no gozo do
consumo, que também é louvado) que o indivíduo evangélico é educado
desde sua conversão. Ganhar e gastar, mas ganhar de forma honesta e com
trabalho duro, para, depois, gozar, como recompensa de Deus, as delícias
do consumo de mercadorias, fruto colhido após a semeadura do trabalho
duro, da vida reta e justa do bom cristão.
A fé evangélica de caráter pentecostal instaura, então, uma integridade
psíquica (no sentido de unidade, autenticidade e inteireza da psique)
que a degradação da miséria destruía. Esta integridade individual acaba
por se tornar também familiar, na medida em que a transformação de um
membro da casa, acaba por levar os outros à conversão. Alargando o
círculo, a conversão acaba por atingir grande parte dos bairros pobres,
e não só estes, se tornando um fenômeno social de largo alcance, como
acontece atualmente no Rio de Janeiro, onde a rígida cultura evangélica
já disputa a hegemonia com as culturas tradicionais dos morros e
periferias, também comunitárias, mas festivas e com fortes traços
anticapitalistas, marcadas pelo samba, malandragem, erotismo e
sincretismo religioso.
Na verdade, as comunidades semi-capitalistas, como a dos morros cariocas
e as do sertão nordestino, são frágeis diante da hegemonia da cultura
capitalista, que se torna referência em termos de valores, modo de vida
e técnica. A recusa do trabalho abstrato e a cultura de subsistência não
consumista, próprias do sertanejo e do malandro, são desvalorizadas como
preguiça e falta da saudável ambição pela prosperidade. Não raro, os
jovens destas comunidades são seduzidos pelo aspecto mais prazeroso da
cultura capitalista, que é o narcisismo consumista, sem a contraparte da
preparação para o consumo de uma vida inteira, marcada pelo estudo e,
depois, pelo trabalho disciplinados, próprios dos filhos da classe
média. O resultado é a frustração, o sentimento de impotência e
inferioridade dos jovens pobres e, muitas vezes, a compensação com o
dinheiro “fácil” da criminalidade e da prostituição ou a fuga para a
dependência química.
A fé evangélica se apresenta, então, para reequilibrar a desorganização
que o capitalismo causa nas comunidades semi-capitalistas, introduzindo
a ética do trabalho de cunho protestante como contraparte necessária ao
consumismo, ou seja, o gozo do consumo deve ser precedido e preparado
pelo sacrifício do estudo e do trabalho. Como num tratamento de choque,
todos os vícios químicos devem ser abolidos, inclusive as drogas legais
como tabaco e álcool. A sexualidade, vista como outro vício corporal,
deve ser contida no espaço rígido do casamento heterosexual e deve ser
severamente controlada nas jovens solteiras, cuja vida sexual,
idealmente, se inicia somente após o casamento, num retorno à rigidez
patriarcal das sociedades rurais. Os benefícios óbvios de tais rigores é
a ausência de dependência química e de prostituição na comunidade
evangélica, dois perigos reais que rondam os filhos e filhas das
famílias pobres das periferias e que se entrelaçam com a criminalidade
urbana, que também não é praticada por jovens evangélicos.
A todos esses rigores corporais, claramente puritanos, se soma o culto
da disciplina para o estudo e o trabalho, cujo objetivo é transformar o
corpo e a mente do evangélico num trabalhador incansável, pai e mãe de
família responsáveis (que reproduzirão nos filhos a ética do trabalho) e
consumidores insaciáveis, cujos gozos interdito do corpo se reverterão
no gozo consumista, abençoado como prosperidade, recompensa de Deus (ou
do capital) aos que trilharam o caminho estreito da salvação. Para
trilhar este caminho, o evangélico convertido deve se transformar, de um
preguiçoso sem ambição, numa máquina de trabalho e consumo, como já é,
há muito tempo, o homo economicus das classes médias tradicionais.
Estas, inclusive, incorporadas de longa data no sujeito automático do
capital, podem dispensar a rigidez puritana dos evangélicos e se
tornarem liberais nos costumes, gozando não apenas os prazeres do
consumo, mas também os do corpo.
A integridade psíquica que a fé evangélica promove é, na verdade, uma
integração total da psique humana no sujeito automático do capital.
Processo que já fora concluído há tempos na Europa pelo protestantismo.
*O preço da integridade psíquica: a violência canalizada*
Para o indivíduo e famílias das classes populares há claros benefícios
na conversão evangélica. A recuperação do pertencimento a uma
comunidade, mesmo que seja de mônadas individualistas, é um deles. Mas,
principalmente, a reestruturação da psique que, ao se integrar no
sujeito automático, se torna íntegra sob a perspectiva cultural do
capitalismo, perfazendo uma subjetividade amalgamada na lógica da
mercadoria. Ao mesmo tempo que se sacrifica às durezas do trabalho
abstrato (o corpo como oferenda de si, na forma da mercadoria-trabalho),
o sujeito tem como recompensa o gozo do consumismo (o corpo como fruidor
de mercadorias produzidas pelo mesmo trabalho abstrato).
No sujeito capitalista, o sacrifício da produção de mercadorias com a
mercadoria-trabalho tem como contraparte inseparável o gozo consumista
da fruição das mercadorias, troca mercantil que realiza o capital,
multiplicando-o (pelo lucro) e renovando-o para outro ciclo reprodutivo.
No ciclo capitalista de produção e consumo, o ser humano funciona como
uma espécie de órgão reprodutor do capital, que se utiliza das pessoas
para seu objetivo de reprodução ilimitada.
Como bem observou Marx, na cultura capitalista, a forma social capital,
inventada pelas pessoas e que se reproduz apenas por meio do trabalho
humano, se torna autônoma e passa a impor sua lógica cega e abstrata aos
próprios seres humanos que a inventaram e que se tornam escravos de suas
coerções. A ética do trabalho da fé evangélica de caráter pentecostal,
assim como do protestantismo europeu, funciona como um adestramento das
mentalidades na lógica da mercadoria, subordinando a psique humana ao
sujeito automático, que é o próprio capital encarnado no humano.
O processo de evangelização, como vimos, traz claros benefícios
individuais e familiares às pessoas pobres das periferias, por conta da
unidade psíquica que promove, mas gera, por outro lado enormes
frustrações, que devem ser descarregadas de alguma forma.
A primeira destas frustrações é que a evangelização, embora amenize o
problema da exclusão social decorrente da pobreza, não o soluciona. Ao
se constituir psicologicamente como sujeito automático, o evangélico
torna-se mais preparado e disciplinado para enfrentar o mercado e, em
caso de insucesso profissional, pode contar com a ajuda da comunidade
evangélica e mesmo com sua psique mais estruturada para se resignar com
o fracasso.
Nada disso, no entanto, elimina o fato de que a imensa maioria dos
evangélicos pobres continuarão pobres e exercendo trabalhos precários,
transitando entre o desemprego, a informalidade, a terceirização e os
empregos temporários, todos de baixa remuneração e alta exploração. As
tendências do capitalismo tardio financeirizado, em todo o mundo, é a de
aumento da desigualdade e da precarização do trabalho.
Os evangélicos (e também as classes médias tradicionais), ao integrarem
sua psique ao sujeito automático do capital, perdem a capacidade de
criticar o capitalismo, pois tal crítica poria em questão sua própria
identidade subjetiva. São auto-interditados, portanto, de questionar o
capitalismo, primeiro pela via tradicional das esquerdas, que baseia sua
crítica na luta de classes, ou seja, na exploração do trabalho pelo
capital, propondo, como solução uma melhor distribuição da renda e da
riqueza, por meio da intervenção estatal. São mais incapazes ainda de
criticar as categorias básicas do capital que, a partir do sujeito
automático, constitui sua própria base psíquica: trabalho, mercadoria e
valor/dinheiro são, pelo contrário, absorvidos na crença evangélica e
louvados como dádiva da prosperidade. Ressalte-se que, neste aspecto,
nem as esquerdas são capazes da crítica categorial do capitalismo,
principalmente no que se refere à crítica ao trabalho, tão louvado à
esquerda quanto à direita. Apenas alguns artistas e escritores
conseguem, de forma intuitiva mas poderosa, criticar a ética do trabalho
de fundo protestante.
A frustração da pobreza persistente, se não pode ter sua causa real (que
é o próprio capitalismo) revelada e enfrentada, deve ser canalizada para
outras pessoas, para um outro. Este outro tem muitas faces, mas que pode
genericamente ser designado por corrupto (ou imoral). A fonte do mal
passa a ser, então, a corrupção (imoralidade) humana, que pode se dar na
esfera do corpo (sexualidade e dependência química), da política, dos
negócios ou do crime.
Os corruptos passam a ser a causa da miséria e da degradação social. Os
LGBTs, as feministas, os ladrões, traficantes e dependentes químicos
acabam por se tornarem responsáveis pela crise da sociedade capitalista,
numa inversão em que as vítimas se tornam a causa dos problemas sociais.
Mas principalmente a corrupção política passa a ser responsável pela
apropriação indébita da riqueza do país que, de outra forma, poderia
irrigar o mercado e recompensar dignamente o trabalho duro.
Esta mistificação da corrupção política como causa principal da miséria
do povo não se sustenta empiricamente, mas a persistência endêmica da
corrupção na sociedade brasileira (na verdade, em todas as sociedades
capitalistas) é suficiente para que a política e os políticos
profissionais sejam identificados como a fonte dos males sociais do
país, não apenas para os evangélicos, mas para a população em geral. É
de se destacar que a imagem de homem do povo, tanto de Lula quanto de
Bolsonaro se sobreponha a de político, bem como a imagem inicial de
Collor como empresário inimigo dos marajás, de Dilma como gerente e a de
Fernando Henrique como intelectual, tenham sido relevantes em suas
respectivas eleições. São personagens que entraram na política, mas
preservando uma certa imagem de pureza em relação à corrupção comumente
associada ao meio político.
A conversão evangélica funciona como uma defesa contra a violência
social, psíquica e física às quais as populações pobres das periferias
são diariamente submetidas, cuja causa principal é a exclusão social
promovida pelo capitalismo. Para os membros da comunidade evangélica a
crença funciona, de fato, como proteção social e renascimento psíquico.
Mas numa perspectiva coletiva, a evangelização das populações pobres,
por não resolver o problema da exclusão social, funciona como uma
transferência da violência para outros grupos marginalizados da sociedade.
O preconceito evangélico contra as mulheres em geral e as feministas em
particular, contra os LGBTs, dependentes químicos e praticantes da
umbanda e candomblé se torna um canal de para que as frustrações sociais
sejam descarregadas, na forma de ódio social, nestas minorias, já
discriminadas de longa data. Some-se a isto, uma intolerância radical
contra os criminosos, mesmo os pequenos, os quais burlam a sagrada ética
do trabalho.
Estas posições de intolerância se manifestam politicamente, como voto e
apoio a políticos linhas-dura e justiceiros, não raro demagogos,
dispostos a combater o crime e a corrupção moral e política com leis e
ações duríssimas, mesmo às custas do estado de direito. O estado, sob a
crescente influência evangélica, se torna paulatinamente menos laico e
mais intolerante e desumano, disposto a exercer sua violência
institucional contra os que divergem da normalidade heterossexual
cristã, do homem trabalhador e cumpridor de seus deveres cívicos e
familiares.
*Trabalho duro, farra consumista e mal-estar da civilização capitalista*
Mesmos os grupos evangélicos bem sucedidos, que nunca conheceram a
miséria das periferias e seus perigos da degradação familiar e
individual manifestam, não raro, ódio social contra minorias e veem na
corrupção política as causas dos males do país. É o mesmo  mecanismo de
deslocamento observado nos evangélicos pobres, de recusa em ver no
capitalismo a causa principal dos problemas sociais, canalizando sua
revolta para grupos sociais que funcionam como bodes expiatórios.
Este deslocamento acomete, inclusive, nas classes médias não
evangélicas, que debitam na conta da corrupção política a causa maior
dos males do país, associando esta corrupção normalmente a governos de
esquerda, principalmente petistas. Esta junção convenientemente acoberta
seu secular ódio social aos pobres, de origem escravocrata, com o ódio
ao corrupto, muito mais justificável (e auto-justificável, pois neste
caso a mentira é também para si-mesmo) socialmente.
Mas que motivos teriam as classes médias tradicionais, evangélicas ou
não, para canalizar tanto ódio às minorias, aos pobres e aos políticos
corruptos, se elas não vivem nem viveram no ambiente violento das
periferias? Pode-se argumentar que a violência urbana provocada pela
desigualdade capitalista acaba por afetar também as classes médias que,
mesmo com suas casas, carros e bairros relativamente bem protegidos, não
escapam da sensação de medo que a crescente criminalidade alimenta em
todos os cidadãos. Sem dúvida, o medo é um sentimento que se transforma
normalmente em ódio e o apoio das classes médias ao endurecimento da
repressão policial aos criminosos, às custas, inclusive, dos direitos
humanos, tem no medo do crime uma de suas causas.
Mas o ódio social contra as minorias que evangélicos sentem, que se soma
ao ódio ao pobre, de fundo escravocrata, sentimento comum nas classes
médias, evangélicas ou não, tem provavelmente uma causa mais profunda,
que é o mal estar provocado pela integração psíquica ao sujeito
automático. Ao se tornar parte do capital, como sujeito automático, o
ser humano se torna uma mônada abstrata. O sujeito do direito da
democracia e o profissional do mercado de trabalho são construções tão
abstratas quanto a forma social capital, distantes da concretude da vida
humana. Esta subjetividade abstrata deve subordinar seus desejos às
coerções e formas abstratas do capital, cujo “objetivo” principal é a
multiplicação infinita de si mesmo.
A subordinação da concretude da vida humana à dominação abstrata do
capital, que se dá com a integralização da psique como sujeito
automático, é a causa do mal estar da civilização capitalista, mesmo
entre as classes abastadas, cujos sujeitos alienam (no sentido de
delegar) suas potências humanas para as forças abstratas do capital, que
trabalham pelas costas destes mesmos sujeitos. O resultado de tal
sacrifício (de vida) é um imenso sofrimento psíquico, oculto sob a
camada de tranquilidade da pessoa de bem, em paz consigo mesma e com a
sociedade. Paz de espírito da superfície da psique, conquistada
duplamente: com a sensação do dever cumprido por meio do trabalho duro
(ganho); e, depois, com o viciante prazer proporcionado pela “merecida”
farra consumista (gasto).
O sofrimento interior decorrente da subordinação dos desejos humanos aos
do sujeito automático (capital) é inconsciente para a imensa maioria das
pessoas, mas ele costuma vir à tona em párias sociais, como alguns
doentes mentais, drogados e artistas. Neste últimos, por exemplo, são
tolerados delírios anticapitalistas e até comportamentos condenáveis da
perspectiva do sujeito automático, como a crítica ao trabalho, ao status
quo e ao consumismo, bem como a recusa em trabalhar etc. Mas tais
expressões estéticas ou comportamentos desviantes são enquadrados (no
sentido de classificados, mas também de emoldurados, ou seja, separados
do mundo real) como excentricidades ou rebeldias de artistas que, embora
possam provocar prazer estético, não devem ser levadas a sério como
expressões da psique coletiva ou críticas sociais.
O sofrimento reprimido se transforma, então, em ressentimento e ódio,
que precisam ser direcionados para algum bode expiatório, uma vez que
não pode se voltar contra o capitalismo, já que  este constitui a
identidade do próprio sujeito automático. Uma revolta consciente contra
o capitalismo significaria, para a pessoa de bem, um autoquestionamento
de suas próprias bases psíquicas, inclusive morais.
Esta frustração reprimida, inerente ao capitalismo e que atravessa todas
as classes sociais, inclusive as elites, se torna um perigoso veículo da
violência em momentos de crises sistêmicas agudas do capitalismo. Ela é
o ovo da serpente dos diversos fascismo latentes sob a fina camada
civilizacional do capitalismo e costuma vir à tona como ódio social
contra minorias desamparadas, que pode se efetivar, em algumas ocasiões,
como violência física: aprisionamento, tortura e assassinato, geralmente
em escala massiva.
As classes médias tradicionais do Brasil, cujos indivíduos já estão
constituídos como sujeito automático há tempos, carregam desde a Velha
República a dinâmica da frustração reprimida que se canaliza para o ódio
social, cujo ranço escravocrata faz com que se manifeste como ódio ao pobre.
Os novos evangélicos pentecostais, sejam de classe média ou baixa, recém
integrados na psique do sujeito automático apresentam o mesmo mecanismo
de frustração interior e necessidade de sua descarga, como sentimento de
ódio, em grupos sociais fragilizados. No caso dos evangélicos pobres, há
o agravante da frustração inerente à alienação de sua humanidade às
abstrações do sujeito automático, comum em todas as classes sociais, se
juntar à frustração da condenação à eterna miséria, pois na quadra atual
do capitalismo, ascensão social pelo estudo e trabalho será cada vez
mais rara.
A transformação do humano numa máquina de trabalhar/ganhar e
consumir/gastar aliena as potências humanas para a forma social abstrata
do capital, transformando as pessoas em meios para a finalidade última
do capitalismo, que é a reprodução do capital. Tal processo de
reestruturação psíquica para integração dos indivíduos à cultura
capitalista começa com o protestantismo europeu e tem na fé pentecostal
sua atualização para o Brasil do século XXI. O problema é que a
integração ao sujeito automático proporcinada pela conversão evangélica
é profundamante desumanizadora e causa, aos seres humanos, imensos
sofrimentos psíquicos que se manifestam, em momentos de crise, como
preconceitos, ódios sociais e manifestações de violência de caráter
fascista.


In
GGN
https://jornalggn.com.br/blog/wilton-cardoso-moreira/fe-evangelica-e-reestruturacao-psiquica-por-wilton-moreira
17/1/2019

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Por dentro do coração da Índia rebelde


Em resposta a um governo ultra-liberal e moralmente conservador,
disposto a liquidar sindicatos, 150 milhões de trabalhadores pararam.
Como eles podem, ao longo do ano, mudar a maré do país


Por *Vijay Prashad*, do /Tricontinental Institute/ | Tradução: *Felipe
Calabrez*


As cidades indianas nunca se calam. O som é uma característica constante
– as buzinas dos carros, o cantar dos pássaros, os gritos dos vendedores
ambulantes, o zumbido constante de um motor de motocicleta. Em 8 de
janeiro, uma terça-feira, a Índia entrou em greve. Cerca de 150 milhões
de trabalhadores permaneceram longe de seus locais de trabalho. Os
sindicatos de esquerda convocaram uma paralisação geral em um país
exausto pela crescente desigualdade e tomada por um clima de insatisfação.
As ruas de Kerala – um Estado governado por uma Frente da Esquerda
Democrática – não permaneceram silenciosas. Carros e motos mantiveram
seu caminho. Mas as estradas estavam silenciosas. O transporte público
parou, porque os sindicatos de transporte ajudaram a liderar a greve. A
capital, Thiruvananthapuram, lembrava a cidade de cerca de 20 anos
atrás, quando o trânsito era mais leve e a cidade mais calma. Mas não
havia nada calmo na atmosfera. Os trabalhadores estavam com raiva. O
governo em Delhi continua a traí-los

        *As maiores greves da História *
Paralisações desta magnitude não são incomuns na Índia. A maior greve
registrada na história mundial ocorreu na Índia em 2016, quando 180
milhões de trabalhadores protestaram contra o governo do
primeiro-ministro Narendra Modi. As demandas de agora são – como sempre
– múltiplas, mas centram-se na deterioração do sustento dos
trabalhadores, no desaparecimento do próprio trabalho para muitas
pessoas e no ataque político aos sindicatos.
O governo do primeiro-ministro Modi está ansioso para alterar as leis
sindicais. Tapan Sen, o líder do Centro de Sindicatos Indianos (CITU),
afirmou que as mudanças levariam, na prática, à escravização dos
trabalhadores indianos. São palavras fortes – mas não é impossível.

        *Liberalização*
Desde que a Índia conquistou a independência, em 1947, tem seguido uma
trajetória ambígua de desenvolvimento nacional. Importantes setores da
economia permanecem nas mãos do governo, com empresas estatais formadas
para garantir bens industriais essenciais aos objetivos de
desenvolvimento do país. O setor agrícola também foi organizado para que
o governo fornecesse crédito a agricultores a taxas subsidiadas e o
governo estabelecesse preços mínimos de aquisição, para assegurar que os
agricultores continuassem a cultivar alimentos essenciais.
Tudo isso mudou em 1991, quando o governo começou a “liberalizar” a
economia, privatizar o setor público, reduzir seu papel no mercado
agrícola e receber investimentos estrangeiros. O crescimento passou a
ser baseado na taxa de retorno do investimento financeiro e não no
investimento em pessoas e no seu futuro. A nova orientação política – a
liberalização – aumentou a classe média e produziu quantidades fabulosas
de dinheiro. Mas também criou uma crise agrária e produziu uma situação
precária para os trabalhadores.

        *Desmobilizar os trabalhadores*
O governo, desde 1991, sabia que não bastava privatizar o setor público
e transferir valiosos ativos públicos para a iniciativa privada. Era
preciso fazer mais duas coisas.
Primeiro, era preciso se certificar de que as empresas do setor público
fracassariam e perderiam legitimidade. O governo privou essas empresas
do setor público de verbas e deixou-as balançar ao vento. Sem
investimento, elas não conseguiram renovar-se e começaram a definhar.
Seu falência validou o argumento da liberalização, embora a sua tivesse
sido fabricada pelo corte total de investmento.
Segundo, o governo pressionou para quebrar o poder sindical usando os
tribunais para minar o direito de greve e usando o legislativo para
alterar as leis sindicais. Sindicatos mais fracos significariam
trabalhadores desmobilizar, o que significaria que os assalariados
ficariam totalmente à mercê das empresas privadas.

        *Direito de Greve*
Essa greve, como as 17 anteriores, é sobre as condições de vida e sobre
o direito de greve. Uma nova lei sindical está em tramitação.
Significaria a morte do sindicalismo na Índia. A afirmação de Tapan Sen
sobre escravidão parece menos hiperbólica nesse contexto. Se os
trabalhadores não têm poder, eles são efetivamente escravizados na
empresa. Já é o caso em fábricas que operam quase como campos de
concentração.
Andar pelas fábricas ao longo do corredor de Chennai-Coimbatore, no sul
do país ou na área de Manesar, no norte, dá uma ideia do poder destas
novas fábricas. São fortaleza, difíceis de penetrar. Ou uma prisão. De
qualquer forma, os sindicatos não são bem-vindos lá. São mantidos
distantes à força – violência política ou de músculos . Os trabalhadores
são frequentemente trazidos de longe, migrantes com poucas raízes nas
regiões. Nenhum trabalhador fica muito tempo. Assim que aparentam estar
estabelecidos, são removidos.
A existência de trabalhadores temporários e sindicalistas perseguidos
cria um ambiente de trabalho árido. A cultura da solidariedade da classe
trabalhadora se desgasta, a violência social cresce – é a sementeira da
política neofascista.

        *Esperança no Estado de Kerala*
Kerala é um lugar único na Índia. Aqui, a cultura da luta continua
forte; o orgulho pela história da transformação social de Kerala é
evidente. Ao longo dos últimos cem anos, o Estado intensificou seu
ataque à hierarquia e à divisão. Práticas sociais arcaicas foram
derrotadas, e o movimento de esquerda cultivou a manifestação pública
como uma característica normal da vida social.
Quando a esquerda está no poder – como está agora – ela não introduz
novas políticas por decreto. Os movimentos sociais desenvolvem campanhas
públicas para conscientizar e construir uma vontade política por trás
dos projetos. Esta é uma das razões pelas quais o ar de desesperança não
contamina Kerala.
Em outras partes da Índia, cerca de 300 mil pequenos agricultores
cometeram suicídio, boa parte em razão de dívidas agrárias. O professor
Siddik Rabiyath, da Universidade de Kerala, conta que os pescadores têm
uma dívida maior do que os agricultores, mas que não cometem suicídio.
Ele sugere que isso pode ser devido à esperança de que a captura do dia
seguinte irá resgatá-los da dívida. E também por causa da atmosfera
geral de esperança em Kerala.
Ano passado, quando este Estado de 35 milhões de habitantes ficou
submerso numa inundação, os pescadores pegaram seus barcos e formaram a
linha de frente no resgate. Não fizeram isso por dinheiro ou fama, mas
devido à tradição de solidariedade social do Estado e à cultura de
manifestação pública aqui presente.

        *Greve*
As linhas ferroviárias de Thiruvananthapuram não funcionaram. Os
grevistas sentaram-se nos trilhos e bloquearam os trens. O mesmo ocorreu
em Assam, no extremo nordeste da Índia. Eles também bloquearam linhas
ferroviárias. A Autoestrada National 16, em Bhubaneswar, no estado
oriental de Odisha, tornou-se um estacionamento. Carros e motos não
podiam se mover. Escolas e universidades ficaram silenciosas. Os
sindicatos patrulhavam as áreas industriais fora da capital, Delhi, e de
Chennai. Os ônibus públicos em Mumbai permanecem em seus estacionamentos
e as paradas, desertas.
O governo do Primeiro Ministro Narendra Modi permaneceu em silêncio.
Haverá eleições no final desse ano. A temperatura na Índia não está a
favor de Modi. Mas essa não é a razão de seu silêncio. Ele criou o
hábito de ignorar as ações públicas, de se manter acima de tudo,
fingindo que nada está ocorrendo. Se a nova lei sindical entrar em
vigor, a Índia abandonará qualquer compromisso com a democracia no local
de trabalho. Isso é parte da lenta erosão do processo democrático no
país, um movimento em direção ao horror da hierarquia e dominação. Os
trabalhadores não querem isso. Estão nas ruas. E têm outros planos para
seus futuros.
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        Vijay Prashad
Vijay Prashad é o diretor do Tricontinental: Institute for Social
Research e editor chefe da LeftWord Books. É chefe de redação do
Globetrotter, um projeto do Independent Media Institute. Ele escreve
regularmente para The Hindu, Frontline, Newsclick e BirGün.
<https://outraspalavras.net/author/vijayprashad/>

In
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18/1/2019

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

"O projeto de conciliação de classes do PT faliu"


*por Ricardo Antunes [*]

entrevistado por Gabriel Brito [**]


Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República e seus primeiros dias
de mandato deixam claro que sua agenda política é uma radicalização
daquela executada por Temer. Na primeira entrevista de 2019, o Correio
da Cidadania conversou com o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes, que
acaba de publicar /O privilégio da servidão – o novo proletariado de
serviços na era digital / (Editora Boitempo), e faz uma dura análise do
atual estágio político e ideológico sobre os setores que deveriam fazer
o contraponto ao projeto de uma direita de evidentes traços autoritários
e excludentes.
Na conversa, Antunes aponta para o caminho de destruição total do mundo
do trabalho ofertado pelo novo governo, o que mal foi disfarçado em sua
campanha eleitoral. E constata que apesar da forte votação o PT já não
tem condições de liderar as lutas sociais no Brasil. "O partido terá de
abdicar de qualquer hegemonismo nas esquerdas. Poderá ser um partido de
centro-esquerda parlamentar, capaz de votar contra projetos que ataquem
direitos do mundo do trabalho e setores vulneráveis da população. Mas
nem com isso devemos ter ilusões. Que ninguém espere que o parlamento
seja a barreira contra a tragédia anunciada de Bolsonaro".
Tal como aponta em seu livro, Antunes afirma reiteradamente as novas
facetas dos movimentos que se opõem ao capitalismo e suas políticas
econômicas, reorganizadas em escala global. "Precisamos de organização
social e política autônoma, de base e classe, formada com espírito
anti-capitalista, coisa que o PT no poder ajudou a obliterar. As
esquerdas sociais precisam jogar sua energia na combinação das lutas de
resistência em todos os espaços possíveis com a busca de um projeto
autônomo de emancipação social e política. O calendário das oposições
não pode mais ser o calendário das eleições".
Sobre este reordenamento mundial, o sociólogo explica: "estamos num
período de tripé devastador: hegemonia profundamente destrutiva do
capital financeiro, uma pragmática neoliberal que não tem mais nenhum
limite e uma reestruturação produtiva do capital que por sinal é
permanente. O mundo informacional-digital sob comando do capital
financeiro sabe que não pode eliminar o trabalho definitivamente. Mas
sabe que pode depauperá-lo e só remunerar quando um trabalho for
realizado, sem descanso, férias, fim de semana, nada. Por isso chamo
tais trabalhadores e trabalhadoras de novos proletários da era digital".
No entanto, é enfático em afirmar que tal modelo de capitalismo
inevitavelmente produzirá uma grande massa de rebelados, dado o
rebaixamento das condições de vida e enorme concentração de renda que
garantirá a seus donos.
A entrevista completa pode ser lida a seguir.
*Correio da Cidadania: O que esperar do governo de Jair Bolsonaro e seu
perfil de extrema-direita, refletido, para além da histriônica figura
presidencial, na equipe de trabalho? O que esperar para o chão social
brasileiro em 2019? *
*Ricardo Antunes: * O que pode ser dito de imediato é que entramos num
tempo de completa imprevisibilidade. Sabemos que Bolsonaro surfa num
momento de ascensão da extrema-direita. Não falamos da direita
neoliberal tradicional, dominante em especial nos países de capitalismo
avançado de forma quase inquestionável, com suas variantes neoliberal
pura ou social-liberal, como no fundo são os socialistas europeus.
O Bolsonaro surfa nesta onda, que, à diferença do neoliberalismo, tem
uma construção menos globalista e mais nacional. O Trump é fundador
deste projeto. Mas uma coisa é ter um projeto de reposição dos EUA no
mundo global, outra coisa é o papel do Brasil. As diferenças são
fundantes: um é o centro, o império do capitalismo, o outro é um país da
periferia, importante, mas um país que depende do comércio com a China,
os EUA, a Europa, a Argentina. Isso torna tal governo imprevisível.
Politicamente, parece não haver dúvida de que será extremamente
conservador, protofascista e que em seu ideário podemos caracterizar
como profundamente antipopular, antissocial, anticlasse trabalhadora.
Bolsonaro deixou claro que vai avançar na informalidade do mundo do
trabalho. Seu projeto de carteira de trabalho verde amarela é
ultraortodoxo no sentido neoliberal.
Portanto, para o cotidiano das pessoas só podemos esperar o pior
possível. Mas ele deixou isso claro em sua campanha eleitoral, anunciou
o desmonte completo da classe trabalhadora, coisa que Temer em seus dois
anos já fez amplamente, com a Reforma Trabalhista, a lei da
terceirização total e a permissão da terceirização ampla e quase
irrestrita no setor público.
*Correio da Cidadania: O que esperar dessa combinação de liberalismo
econômico extremado e um governo de traços protofascistas? *
*Ricardo Antunes: * O governo, para além de seu "mito", já mostra em
seus primeiros passos ser eivado de tensões e contradições em seu
interior. Traz uma política ortodoxa capaz de fazer a Margaret Thatcher
revirar-se em seu túmulo. De um lado traz uma liderança que surfou em
cima de uma onda ultraconservadora e de um enorme desencanto da
população com a falência do projeto de conciliação de classes do PT.
Teve um "líder" que soube se utilizar das campanhas anticorrupção para
converter o PT no inimigo central do país como se este fosse o criador
da corrupção e que participou de apenas um debate televisivo, logo no
começo da campanha. E mesmo quando estava em condições de aparecer nos
debates não o fez, fazendo sua vacuidade política não aflorar com a
intensidade que já aflora, como na sua incapacidade de indicar alguma
equação para questões de economia, saúde, educação...
O vazio do seu ideário é compensado pelo ódio às esquerdas, aos
movimentos populares, aos LGBTs, aos indígenas, às mulheres, aos
negros... O elemento complicador é a cunha militar muito forte dentro do
governo. O vice, ao que parece, foi uma imposição das forças armadas, um
sinal de ser preciso alguém de confiança para dar comedimento e mesmo um
contraponto ao tom intempestivo do "líder" vitorioso nas urnas.
É o neoliberalismo levado ao limite, com mais privatização, mais
concentração de renda [rendimento, NR], mais enriquecimento das
burguesias, mais empobrecimento das classes trabalhadoras, mais
informalidade do trabalho, coisa que Bolsonaro insiste em defender...
Dessa forma, a combinação colocada pela pergunta apenas nos faz antever
a multiplicação das possibilidades e tons do desastre econômico, social
e político.
*Correio da Cidadania: Já falamos em outras entrevistas sobre a
dificuldade de recolocar o PT como grande liderança das lutas sociais e
da classe trabalhadora depois de seus governos e opções políticas e
econômicas. Mas também se trata da maior força de oposição, partido que
mais elegeu deputados. Como você imagina a volta do PT à oposição, com
todo seu desgaste entre setores populares e também nas alas
progressistas da sociedade? *
*Ricardo Antunes: * O projeto de conciliação de classes do PT faliu. A
medida do Bolsonaro de fechar o Ministério do Trabalho é mais do que
emblemática. O Ministério do Trabalho foi criado em 1930 por Getúlio
para ser um organismo a serviço da conciliação de classe. Ao
extingui-lo, Bolsonaro mostra que não vem fazer a conciliação de
classes, mas dar continuidade à contrarrevolução preventiva iniciada por
Temer, que agora entra em período mais crítico, com a radicalização da
Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência que visa jogar a
população pobre na imprevidência.
O PT recuperou certo fôlego por conta do desmonte ultraliberal do
governo Temer. O partido saiu do governo Dilma sem força para fazer
sequer uma greve de um dia por conta do impeachment ou contra a prisão
de seu principal líder, Lula. Mesmo assim, se fortaleceu na reta final
da eleição, entre outras coisas porque a população tem sua
sensibilidade. É muito evidente: o governo do PT foi em seu conjunto
desalentador para a classe trabalhadora, mas o governo Temer foi
devastador. Assim, o PT ainda ganhou um voto de confiança de muita
gente. Até figuras como Joaquim Barbosa e Rodrigo Janot declararam voto
em Haddad, um amplo leque de tendências o fizeram, abstraindo o fato de
o candidato ser do PT, diante do fato de no outro lado estar o inimigo
maior, com cheiro de fascismo.
Mas as eleições já foram. Como fica o PT agora? Terá de fazer um acerto
de contas profundo consigo mesmo, com o fenômeno do lulismo e sua
pragmática. Isto é, aquela pragmática de um partido que sempre espera a
decisão final de seu líder, entendido pela maioria de seus militantes
como um gênio político infalível. O PT só terá chance de se recuperar se
fizer uma profunda autocrítica em relação a este ponto. E não vejo
condições para isso dentro do partido, especialmente porque sua cúpula é
predominante e visceralmente lulista. Faço uma análise do PT que temos
pela frente, independentemente das adversidades que o Lula padece na
prisão, condenado sem provas materiais, como é de consenso considerável
por todo um pensamento jurídico razoavelmente independente.
A discussão a respeito da corrupção, que foi intensa nos governos do PT,
é vital. Se não houver uma autocrítica em relação a isso... Até porque o
partido nasceu com uma certa concepção udenista, dado que a UDN tinha um
traço levemente liberal-democrático. Havia a ideia de que o PT seria
capaz de acabar com a corrupção brasileira, mas terminou no mesmo
lamaçal. Dito isso, o que o judiciário fez em relação ao Lula é outra
questão.
De todo modo, o resultado é que o PT não é mais líder, por definição ou
vontade divina de seu líder, da oposição de esquerda no Brasil. As
oposições de esquerda terão de se reinventar, e por fora do lulismo. Uma
coisa é defender um julgamento até última instância e sua condenação a
depender de provas materiais concretas. Outra coisa é praticar uma forma
de lulismo mesmo fora do PT, que dificulta e impede o nascimento de uma
esquerda social e política de perfil mais autônomo, ideologicamente mais
consistente e que perceba que o desafio fundamental do próximo período é
combinar uma resistência de perfil antifascista com um projeto de
classe. Como já vemos na Hungria, onde houve uma manifestação muito
importante contra o governo neofascista e xenofóbico que visa à
devastação da legislação trabalhista do país.
Não que o PT deva ser excluído de tudo. Para algumas questões as
esquerdas devem caminhar juntas, quando houver unidade básica. Se é
contra a reforma trabalhista do Temer e sua radicalização pelo governo
que entra, de devastação integral do mundo do trabalho, deve caminhar
junta. Devemos ter a CUT e o PT em manifestação de oposição deste tipo.
Até por ser importante diferenciar um pouco a cúpula dominante do PT de
amplos setores do partido, que estão de fato descontentes. Não imagino
que figuras como Tarso Genro e Olívio Dutra, com todas as diferenças
marcadas pelo tempo, mas ainda lideranças muito respeitadas, não tenham
nenhuma insatisfação com a tragédia desenvolvida pelo PT no último
período.
Existe um mosaico de movimentos sociais: MST, MTST, dos indígenas, das
mulheres, dos LGBT, dos negros, da juventude, da periferia, uma miríade
de movimentos sociais profundamente descontentes com a tragédia dessa
contrarrevolução preventiva e o que implementará a partir de janeiro.
O PT devia fazer o que tanto cobrou do PCB em relação a 1964 (a partir
daquele golpe militar abriu-se um debate nas esquerdas, muitos saíram do
PCB e foram para a luta armada etc). Em poucas palavras, o debate era: o
PCB cometeu erros "de esquerda" ou repetiu um traço constante desde
1945, isto é, desvios "de direita", de colaboracionismo e conciliação de
classes?
Além desta autocrítica fundamental, o PT não vai poder ressurgir das
cinzas sem pelo menos outras duas autocríticas fundamentais: a excessiva
institucionalidade e apego ao calendário eleitoral e o distanciamento
das classes trabalhadoras, como ficou claro no impeachment, quando
nenhuma reação, nem por uma hora, pode ser realizada. A ponto de a
prisão de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos não ser marcada pela
presença de operários, de gente que foi a base de sustentação do PT e
Lula desde os anos 70. Estavam presentes o MTST, MST e outros movimentos
sociais. A base metalúrgica não fez sequer uma greve ou resistência
contra a prisão de Lula, o que mostra o imenso descontentamento em
relação a seu líder do passado.
O PT deve definitivamente abandonar a ideia de que é o epicentro da
oposição brasileira. O partido e Lula não merecem mais esse posto há
muito tempo. Não lideram a classe trabalhadora mais. Ao longo da
história mereceu, como nos anos 80, quando o partido liderava as lutas
sociais, pois tinha como apoio um tripé espetacular: a classe operária
industrial, amplos setores do campesinato e amplos setores da classe
média assalariada. Por todas as modificações que tais setores sofreram
ao longo de 30 anos, o partido já não tem o apoio majoritário de nenhum
deles. O partido teve votação expressiva, mas tratou-se de um voto
contra o Bolsonaro. Teve votação expressiva entre setores que ganham um
ou dois salários [mínimos, NR] e em especial no Nordeste.
No meu livro e vários artigos anteriores, aponto que a base de apoio do
governo Lula mudou entre o primeiro e o segundo governos. Na medida em
que perdeu apoio na massa sindicalmente organizada pela CUT e
politicamente dirigida pelo PT, ganhou apoio das massas atingidas pelo
Bolsa Família, que embora fosse um tipo de assistencialismo apoiado até
pelo Banco Mundial, pelos traços de forte miserabilidade de seus
beneficiários foi importante. Neste momento o Nordeste se tornou um
pilar de sustentação do lulismo. Mas a classe trabalhadora industrial do
Sudeste e do Sul passou a se afastar. A classe trabalhadora nordestina
ainda ficou ao lado do PT, por motivos compreensíveis, pois vivenciou o
desgaste completo que foi a devastação de Temer.
O partido terá de abdicar de qualquer hegemonismo nas esquerdas. Poderá
ser um partido de centro-esquerda parlamentar, capaz de votar contra
projetos que ataquem direitos do mundo do trabalho e setores vulneráveis
da população. Mas nem com isso devemos ter ilusões. Que ninguém espere
que o parlamento seja a barreira contra a tragédia anunciada de
Bolsonaro. Precisamos de organização social e política autônoma, de base
e classe, formada com espírito anticapitalista, coisa que o PT no poder
ajudou a obliterar. As esquerdas sociais precisam jogar sua energia na
combinação das lutas de resistência em todos os espaços possíveis com a
busca de um projeto autônomo de emancipação social e política. O
calendário das oposições não pode mais ser o calendário das eleições.
Uma lição das rebeliões de junho que as esquerdas deveriam ter aprendido
é que a população não crê na institucionalidade, em nenhuma de suas
expressões. Naturalmente, não quero dizer que tais instrumentos não
tenham nenhuma importância. Vimos que o STF agiu positivamente ao
impedir ataques da extrema-direita institucional às universidades e suas
expressões internas. Aliás, até a ditadura era mais cautelosa em fazer
isso...
De todo modo, as rebeliões de 2013 mostraram que os novos caminhos são
mais plebiscitários, horizontais, extraparlamentares,
anti-institucionais e não jogam todas as suas energias no judiciário. O
judiciário está incapacitado para tanto... Ele reflete o plano da
normatividade e as oscilações das confrontações da vida social, que vêm
das ruas.
*Correio da Cidadania: Pelas declarações de suas principais lideranças
não haverá essa tão propalada autocrítica. Aliás, falar nisso chega a
parecer uma fuga da realidade. *
*Ricardo Antunes: * Com tristeza, digo que não vejo a menor
possibilidade desta autocrítica do PT. Mas muitos setores de base do
partido, e até da direção, menos comprometidos com a trágica política
que levou ao fim de seus governos, participarão de novos embates.
É preciso extirpar o mito de Lula como grande líder e herói da classe
trabalhadora, o infalível e insuperável. Neste sentido, o lulismo, tal
como foi o prestismo no PCB, e como todos os movimentos por demais
canalizados na figura de seu líder, a exemplo também da Venezuela,
padecem do mesmo mal. O chavismo, que tantas mudanças positivas gerou na
Venezuela, não foi capaz de formar lideranças que substituíssem Chávez.
No Brasil, esse líder não tem mais condições de capitanear a luta por
uma outra sociedade. Não vi até hoje uma única frase do Lula a
questionar "onde nós erramos?". Antes de ser preso, Lula dizia em seus
palanques que queria de novo unir o país e acabar com o clima de tensão.
Em que mundo ele vive? Num país pautado pelo racismo, o escravismo e a
superexploração do trabalho, como podem se juntar forças tão díspares?
Esse não e o país da conciliação, é o país da contradição visceral.
É importante lembrar que a extrema direita politizou o debate eleitoral.
Bolsonaro politizou o debate e ao contrário do que se falou da Dilma não
cometeu o chamado estelionato eleitoral. Usou sua retórica contra a
esquerda, disse que precisava rebaixar direitos do trabalho, defender
empresários, fazer privatizações, jogou toda a culpa no PT.
E a esquerda conseguiu minimamente oferecer um projeto de esperança em
direção de outra sociedade? Eu não vi em nenhum programa ou debate. Não
vi ninguém dizer que o desafio é recuperar uma vida dotada de sentido e
um outro mundo, não mais capitalista. Não vi, salvo um ou outro grupo
minoritário. Ninguém defendeu um socialismo de novo tipo, capaz de
acabar com a exploração visceral do trabalho, com a propriedade privada
e intelectual, que domina riquezas criadas pela humanidade, a exemplo
das comunidades indígenas que veem grandes laboratórios se apropriarem
de conhecimentos seculares.
A extrema-direita está apresentando um projeto. A esquerda não. Lembro
de uma vez que estive em Roma, há uns 15 anos, quando vi um cartaz que
me impressionou muito: "nós somos a verdadeira direita". Quinze anos
atrás ou mais. Na Itália a direita está dizendo que ela é a verdadeira,
porque a direita sempre aparecia como liberal, liberal-conservadora,
democrata-conservadora, mas não como fascista e protofascista aberta,
como vemos hoje no Brasil. Por que a esquerda não politiza o debate com
radicalidade? Não estou falando de doutrinarismo. Mas o que ensinam as
comunidades indígenas? A vida comunal. O que o majestoso Quilombo dos
Palmares <https://pt.wikipedia.org/wiki/Quilombo_dos_Palmares> , talvez
o primeiro experimento de emancipação social no Brasil, ensinou? A vida
comunal. O que ensinou a rebelião do Haiti, a primeira dos escravos e
brutalmente reprimida? A possibilidade da vida comunal, com as
propriedades coletivas prevalecendo sobre a privada.
O problema é que na ânsia de ter mais votos considera-se necessário
calibrar e moderar demais o discurso, para adequar-se a uma onda
antiesquerda de amplitude global, sob hegemonia financeira, dado que as
populações sofrem um inculcamento muito profundo contra tais ideias. Mas
nunca é integral. A resposta vem dos levantes, como as greves de Jirau e
Santo Antônio, as greves do começo desta década que foram muito
importantes na história recente do país. Estamos instados a pensar outro
modo de vida.
*Correio da Cidadania: Relacionando a entrevista com seu livro, que fala
da precarização do trabalho em escala totalizante, temos a herança do
governo Temer que avançou neste sentido com leis em favor da
terceirização e a entrada de um governo que visa reforçar tais projetos.
Considerando ainda as politicas econômicas que se anunciam, o que
esperar em termos de emprego e renda para a população brasileira de modo
geral? *
*Ricardo Antunes: * Quando olhamos os países europeus que tiveram
vigência da socialdemocracia, vimos que conseguiram legislações de
proteção social e do trabalho muito positivas, escola e saúde públicas,
níveis de civilidade do capitalismo que jamais existiram na periferia.
Se vemos que o máximo de civilidade que tivemos na periferia, no caso
brasileiro, foi com Getúlio Vargas, sendo que a classe trabalhadora
rural estava excluída da CLT
<https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Consolida%C3%A7%C3%A3o_das_Leis_do_Trabalho>
...
Mas acontece que estamos num período de tripé devastador: hegemonia
profundamente destrutiva do capital financeiro, uma pragmática
neoliberal que não tem mais nenhum limite e uma reestruturação produtiva
do capital que por sinal é permanente. Nasceu na Alemanha, mas se
espalhou no mundo avançado a indústria 4.0. Em poucas palavras significa
que as corporações se devoram. O futuro de uma depende da absorção que
ela fará de sua concorrência.
Exemplo: 20 anos atrás havia uma disputa cerrada entre [os produtores de
cerveja] Brahma e Antarctica. Hoje são a mesma, e são uma empresa muito
maior do que a soma dessas duas marcas. Havia também uma disputa intensa
entre Perdigão e Sadia. Hoje são a mesma, a Brasil Foods. No centro
global as fusões se ampliam exponencialmente. Paralelamente,
considerando que as corporações comandam a vida produtiva e, portanto,
as cadeias produtivas de valores, a tecnologia é vital, especialmente
quando o setor de serviços passou a interessar diretamente aos capitais.
Quando da revolução inglesa, no século 18, a indústria foi o novo, ainda
que houvesse indústria antes. Entre aspas a indústria vem desde as
comunidades primitivas quando ao se aquecer minérios se conseguia a
forma de metal. Mas a revolução inglesa levou a lógica capitalista à
indústria e a um processo de transformação capitalista do mundo rural no
século 19, que passou ao século 20. Indústria e campo eram os setores
principais da criação de valor e lucro, da extração da mais valia.
Nesses séculos o setor de serviços, embora tivesse núcleos privatizados,
era essencialmente público: estradas, telefonia, saúde, educação,
previdência, cárcere...
Mas com a crise dos anos 70, estrutural e muito profunda, tanto do
capitalismo como de seu sistema, houve uma intensificação à enésima
potência da tecnologia de informação e comunicação no mundo das
empresas, em particular do setor de serviços. E a introdução do mundo
maquínico, da lógica informacional e digital, transformou profundamente
a produção capitalista. Hoje uma grande empresa carrega o nome de uma
marca, mas terceiriza toda sua produção. O Wallmart tem uma cadeia
vastíssima, que começa no sul da China. A Amazon tem um mundo
esparramado de empresas que oferecem trabalhos de ponta na área digital,
tem experimentos como lojas e shoppings onde a pessoa entra, é
identificada digitalmente, pega um produto, sai e seu preço cai direto
na conta bancária. Tudo sem contato com nenhum trabalhador. Uber e
assemelhados praticam uma escravização do(a) trabalhador(a) que usa seu
carro, paga seguro, gasolina e que numa corrida vê 20%, 30% do pagamento
imediatamente recolhido pelo aplicativo.
Como cito no livro, tem o contrato de zero hora na Inglaterra, que
abarca praticamente todas as profissões de serviços, médicos, advogados,
técnicos, cuidadores, limpeza, domésticas, jardineiros... Eles ficam à
disposição de seus aplicativos, que os chamam para prestar serviços. E
só recebem quando há uma chamada para fazer um serviço. Se ficar 3 ou 4
dias esperando uma chamada que não vem, não recebe. As empresas de tais
áreas foram as que mais comemoraram a aprovação desta contrarreforma
trabalhista do Temer, em favor do trabalho intermitente, porque podem
fazer os trabalhadores esperarem, seja de sábado, domingo, sem pagá-los.
E quando chamados ganham por duas ou três horas. Se de repente chove e o
movimento de um fast food fica abaixo do esperado a remuneração pode ser
insuficiente até paracondução.
*Correio da Cidadania: Esse aspecto não se choca frontalmente com o
discurso ufanista em favor do trabalho dito autônomo, do
empreendedorismo, condições que supostamente tornariam o trabalhador
mais livre? *
*Ricardo Antunes: * O mundo informacional-digital sob comando do capital
financeiro sabe que não pode eliminar o trabalho definitivamente. Mas
sabe que pode depauperá-lo e só remunerar quando um trabalho for
realizado, sem descanso, férias, fim de semana, nada. Por isso chamo
tais trabalhadores e trabalhadoras de novos proletários da era digital.
E daí vem o título do livro, a partir do livro de Albert Camus, /o
Primeiro Homem, / quando em linhas gerais ele diz que só os acidentes de
trabalho, em empresas que dão seguro saúde, dão a chance de férias e
lazer ao trabalhador. Só quando eles se acidentam podem ter tais
benefícios. O desemprego passa a ser o maior medo e o trabalho, que
deveria ser uma virtude, acaba sendo um caminho para a morte, fotografia
que resulta no /Privilégio da servidão./. Isto é, os jovens que hoje têm
20, 25 anos, se tiverem sorte, serão servos, submetidos e dominados em
seu trabalho. O assalariado é o escravo da era capitalista, como dizia
Marx.
Os jovens de hoje, qualificados ou não, nativos ou imigrantes, se
tiverem sorte terão o privilégio de serem servos. Caso contrário,
estarão no desemprego, que será muito maior no futuro. Em suma, a
indústria 4.0 significa digitalização, automatização, introdução da
inteligência artificial, da lógica dos algoritmos, todo esse monumental
avanço de tecnologia da comunicação e informação, de tal modo que todas
as atividades vão eliminar o trabalho vivo, intensificar o trabalho
realizado pelo mundo digital ("a internet das coisas", como dizem), em
qualquer setor, escolas, bancos etc. No mundo produtivo, seja na
indústria, agricultura, suas intersecções e serviços, tudo que for
possível digitalizar, computadorizar, automatizar e eliminar trabalho
humano será valido.
A pergunta que não quer calar é: o que vai acontecer com a massa de
trabalhadores(as)? Teremos um pequeno grupo de trabalhadores(as) muito
qualificados(as) na ponta do sistema, para realizar as atividades
humanas absolutamente insubstituíveis ao menos até o presente, mas toda
a massa de trabalhos intermediários, desde as gerências e supervisões
até a parte mais executora, operária, todos jocosamente chamados de
"colaboradores", vai perder seu emprego. Assim teremos uma situação na
qual os bolsões de desempregados aumentarão.
O Brasil tem praticamente 20 milhões de desempregados. Mais um conjunto
que faz bico, trabalho informal, autônomos sem formalização, à margem
muitas vezes do sistema de previdência. Consequentemente, a previdência
arrecadará menos, vão dizer que ela é deficitária por culpa dos
trabalhadores, quando é o grande capital que arrebenta a previdência
pública em favor da previdência privada, favorável aos bancos com seu
modelo de capitalização.
*Correio da Cidadania: É um cenário profundamente destrutivo. *
*Ricardo Antunes: * Tem um elemento importante que destaco no livro:
essa massa imensa de trabalhadores e trabalhadoras na China, Índia, na
Europa, EUA, Canadá, Brasil, Argentina etc. etc. etc., enfim, massa
imensa de jovens informalizados, terceirizados, intermitentes, alguns
com poucos direitos, outros com burla completa, se rebela. Recentemente
houve greves dos trabalhadores de fast food nos EUA e das trabalhadoras
da limpeza dos tribunais de justiça de Londres. Há greves frequentes em
escritórios de telemarketing.
Precisamos estudar, compreender e analisar o modo de ser daquilo que
chamo de nova morfologia do trabalho, do proletariado de serviços, que
não é a classe média. O que caracteriza a classe média é a prevalência
do trabalho intelectual, o que não é o caso das categorias aqui citadas.
Há uma massa de jovens bem formados em Portugal, Grécia, que vai
trabalhar em hotéis, restaurantes. Vi em Veneza jovens formados em
engenharia abrindo e fechando as portas do vaporetto (as barcas que
transportam as pessoas pelos canais) por 500 euros por mês, seis dias
por semana, durante 5 ou 6 meses, em um contrato só, depois substituído
por outro jovem.
É claro que tal contingente de proletários é diferente em sua
subjetividade quando comparado ao antigo operário industrial, um
metalúrgico, um trabalhador rural. Mas o setor de serviços se tornou
altamente produtivo, gerador de lucro e mais valor. Duas passagens
importantes colocadas por Marx em /O Capital:/   para gerar valor e mais
valia a produção do trabalho não precisa ser materialmente produtiva;
ela pode ser vista no espaço da circulação, a exemplo da indústria do
transporte. Esta não produz nada, mas transporta pessoas e mercadorias.
É um eixo vital da geração de lucro. É preciso entender o processo de
produção que existe dentro de atividades de circulação. E tal atividade
é vital porque quanto mais tempo se leva a circular, menor sua
produtividade. Quanto mais rápido o tempo de circulação se aproxima de
zero, maior o tempo de produção.
Não é difícil compreender que o mundo das tecnologias da comunicação e
informação expandidas em todas as áreas passou a ser um setor vital na
esfera de circulação do capital. Nossos gostos são conhecidos pelos
sites e redes sociais. Se procuramos uma passagem para a França, na
mesma hora recebemos no computador informações de novas passagens a um
preço mais razoável. Significa que o capital quer extrair mais valor em
todos os espaços em todas as formas de produção no sentido lato.
Por que o governo Bolsonaro defende o ensino a distância? Porque o
professor, ganhando 15 reais por aula, pode deixar de dar aula para 20
ou 30 alunos e poderia dar para 20 mil ou 30 mil. Quando isso ocorre,
aquele professor que foi vital para a aula presencial, numa escola
privada, passa a ser gerador de um lucro muito potencializado.
Tudo isso cria um proletariado de novo tipo que luta, se rebela, e é
diferente do anterior. Dizem na Europa "nós somos a parte mais precária
da classe trabalhadora: somos jovens, temos qualificação, homens,
mulheres, nativos, imigrantes, brancos, negros, amarelos, mas não temos
direitos adquiridos como tinha a antiga classe trabalhadora". Vi muita
gente na Itália a dizer, "o sindicato representa vocês, a velha classe
trabalhadora. Teremos de criar os nossos, porque o de vocês não nos
representa". O sindicalismo, especialmente o europeu, muito moderado e
tradicional, aprendeu a representar sua classe no desenho
socialdemocrata. Mas hoje a socialdemocracia é mais ficção que realidade.
Os direitos estão sendo eliminados país por país. Era inimaginável na
Itália, que em 1970 fez um código do trabalho altamente avançado,
vermos, como estabelecido em 2017, um sistema de pagamentos por voucher.
O trabalhador faz, por exemplo, 100 horas mensais e pega um voucher por
hora de trabalho, para depois trocar cada um deles pelo equivalente à
hora do salário mínimo italiano. O empresário diz que pode arrumar mais
horas de trabalho, mas não pelo mesmo valor. Cria-se um sistema de
pagamento direto. E se o trabalhador não aceita há uma massa imensa de
imigrantes e pobres desesperados por tais postos.
Estamos diante da criação ilimitada de massas de jovens disponíveis para
o trabalho que não têm mais o regime de proteção, no qual há direitos
como férias, saúde, descanso etc. É um movimento duplo e contraditório:
precarização ilimitada, na qual o intermitente global é emblemático, e
uma massa que se rebela, está lutando para aprender a criar suas novas
formas de associativismo, como se vê em Milão, em Nápoles, em Portugal,
a exemplo do movimento Precari@s e Inflexíveis. Neste país há o recibo
verde como modo de pagamento, recibo que mede seu pagamento de acordo
com a produção no tempo de trabalho.
*Correio da Cidadania: Desse modo, faltaria reconhecer que uma das
brechas aproveitadas pela extrema-direita na atual conjuntura foi uma
interpretação deficiente da atual formação das classes trabalhadoras? *
*Ricardo Antunes: *  As teses sobre o fim da classe trabalhadora estão
sepultadas. É uma classe que se amplia. Mas como é muito segmentada,
heterogênea, com distinções de classe, geração, gênero, etnia, é
evidente que há uma dúvida sobre quais organismos vão dar sentido de
pertencimento de classe a este conjunto heterogêneo, polimorfo,
polissêmico que caracteriza a classe trabalhadora na China, na Índia, na
Coreia do Sul, na África, no leste europeu, na América do Sul...
Nas rebeliões de junho [de 2013] era muito visível o jovem proletariado
brasileiro que ralava o dia inteiro em empregos precários para pagar uma
faculdade de noite imaginando que ia participar da festa e dividir o
bolo. Quando ele percebeu que a divisão do bolo, metaforizada nos
megaeventos esportivos, não tinha pedaço nenhum paraele, só para as
grandes corporações, se rebelou. Esse jovem é política e ideologicamente
muito diferente, porque não tem tradição política nem sindical em seu
lastro.
E os sindicatos e partidos de esquerda, grosso modo, têm sido incapazes
de compreender a vida cotidiana, a consciência contingente e aquilo que
é capaz de mobilizar o proletariado que na Europa já se autodenomina
precariado. Essa definição não veio da sociologia do trabalho. Foram os
movimentos de trabalhadores que deram este nome, a exemplo do San
Precario, dos trabalhadores de Milão. É a nova franja do proletariado,
que antes era pequena, mas se expandiu mundialmente, solapando as bases
sociais da socialdemocracia. É uma parcela da jovem classe trabalhadora
que não se beneficia das conquistas sociais da época do welfare state do
taylorismo e do fordismo.
Portanto, quais os interesses desses segmentos que compõem a totalidade
da classe trabalhadora? Que lutas querem realizar? Como vão soldar laços
de pertencimento de classe a fim de evitar que sejam tratados de forma
individual? Como mostram as reformas de Temer, Macri e Macron, querem
que o trabalhador se entenda sozinho com a empresa. Mas quando o
trabalhador ganhou uma? Neste cenário o capital ganha todas.
A saída dos trabalhadores só pode ser solidária e coletiva, como tento
trabalhar nos dois capítulos finais do livro: "Há futuro para os
sindicatos? Há futuro para o socialismo?" É decisivo recuperar as
questões vitais da vida cotidiana e desenhar outro modo de vida, muito
além do capital. Este é o imperativo do século 21.
11/Janeiro/2019
*[*] Sociólogo.
[**] Jornalista e editor do Correio da Cidadania.
O original encontra-se em www.correiocidadania.com.br/...
<http://www.correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/13625-na-reorganizacao-do-neoliberalismo-a-extrema-direita-apresentou-um-projeto-e-as-esquerdas>
*
*Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/
<http://resistir.info/> . *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/brasil/antunes_11jan19.html
17/1/2019

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Sigue la rebelión contra el deterioro de la educación pública


Más de 30 mil maestros se van a huelga en Los Ángeles, California
Exigen mayores recursos y el fin de las "reformas" privatizadoras


David Brooks


Corresponsal
Periódico La Jornada
Martes 15 de enero de 2019, p. 22
Nueva York. Más de 30 mil maestros estallaron una huelga en Los Ángeles
paralizando el segundo sistema escolar más grande de Estados Unidos con
una serie de exigencias para restaurar recursos escolares, reducir el
tamaño de los grupos, cuestionar los exámenes estandarizados y rescatar
a la educación pública del proceso de privatización impulsado por las
"reformas educativas" financiadas por multimillonarios.
Los maestros iniciaron marchas y plantones frente a cientos de escuelas
con algunos de los más de 600 mil alumnos (72 por ciento de ellos
latinos, aunque se hablan más de 90 idiomas en el sistema) y algunos
padres que fueron a apoyarlos en un día de lluvia. "Estamos en una
batalla por el alma de la educación pública", declaró Alex Caputo Pearl,
presidente del sindicato United Teachers of Los Ángeles (UTLA).
Esta huelga –la primera del UTLA en 30 años– se suma a una ola de
acciones sin precedente en por lo menos seis estados de cientos de miles
de maestros que estallaron a lo largo del año pasado en una rebelión
contra las políticas de austeridad y privatización; en 29 estados hay
menos financiamiento para educación que hace 10 años.
Aún más notable, muchas de estas acciones estatales se realizaron en
estados conservadores con gobiernos republicanos –como Virginia
Occidental, donde comenzó, Oklahoma, Arizona, Kentucky y Carolina del
Norte– que sacudieron a sus cúpulas políticas, consiguieron conquistas
sorprendentes y transformaron el panorama político regional. A
diferencia de éstos, la huelga en Los Ángeles es en una ciudad y un
estado bajo control demócrata liberal.
Esta huelga demuestra que la resistencia es contra el consenso
bipartidista que impulsó lo que llamaron "reformas educativas" a lo
largo del país, que incluyeron la promoción de un modelo de
privatización de la educación pública mediante las llamadas escuelas
chárter, e imponiendo medidas de evaluación de escuelas, maestros y
alumnos por medio de exámenes estandarizados.
El UTLA exige que los gobiernos municipal y estatal (en Estados Unidos
los sistemas de educación pública son administrados a nivel municipal y
estatal, no federal) inviertan fondos para contratar a más personal de
apoyo, reducir el tamaño de los grupos y disminuir los exámenes
estandarizados. El sindicato señala que el deterioro de las escuelas
públicas ha nutrido un éxodo a las escuelas chárter desviando así aún
más fondos estatales. Denuncia que un grupo promedio tiene más de 32
estudiantes en las secundarias y preparatorias, con algunos casos donde
superan 40 y literalmente no hay dónde sentarse más que en el piso.

Después de 20 meses de negociaciones –el contrato colectivo anterior
caducó en junio de 2017– el sindicato rechazó la última oferta del
comisionado de educación de la ciudad, el banquero inversionista Austin
Beutner, quien argumenta que el distrito no puede aceptar las demandas
de los maestros porque eso llevaría a la bancarrota.
Los mega-ricos son parte de la disputa en Los Ángeles. Las escuelas
chárter –concepto promovido por todo el país financiado por
multimillonarios como solución a los problemas supuestamente endémicos
del sistema de educación pública– son escuelas públicas pero
administradas de manera privada por diversos grupos, y en su mayoría su
personal no está sindicalizado. Sus campeones en Los Ángeles incluyen al
multimillonario filántropo Eli Broad y Reed Hastings, jefe ejecutivo de
Netflix, junto con otros titanes que han impulsado estas escuelas a
escala nacional como parte de una "reforma", incluido al ex alcalde de
Nueva York Michael Bloomberg, Bill Gates, la familia Walton (los
herederos de Walmart) y un diverso grupo de especuladores financieros.
Aproximadamente uno de cada cinco estudiantes en Los Ángeles está en una
escuela chárter.
Mientras el gobernador (cuya campaña fue respaldada por el sindicato
magisterial) llamó a las partes a regresar a la mesa de negociación, los
profesores fueron acompañados por representantes de los sindicatos
nacionales de docentes. Randi Weingarten, de la Federacion Americana de
Maestros, declaró: "los ojos de la nación están observando esto y los
educadores y enfermeros del país están respaldando a los educadores en
Los Ángeles".
Para mayor información sobre el sindicato y la huelga
<https://wearepublicschools.org/>.

In
LA JORNADA
https://www.jornada.com.mx/2019/01/15/mundo/022n1mun#
15/1/2019