terça-feira, 30 de agosto de 2016

A lei de bronze como lei moral


               
                



                   Nildo Ouriques



                  Não poucas vezes a consciência ingênua dos homens é governada
                  por leis de bronze. Leis de bronze são consideradas não
                  somente eternas, mas também inflexíveis. Guiados por
                  semelhante crença, eles julgam suficiente a adoção de uma lei
                  qualquer para transformar o mundo ou criar garantias contra as
                  paixões inerentes à vida, sempre avessa à disciplina dos
                  poderes. A experiência ensina que as leis de bronze se
                  assemelham aos postulados morais, razão pela qual a
                  consideração de que "um país não pode gastar mais do que
                  arrecada" equivale ao mandamento sagrado "não matar", "não
                  roubar" ou "não desejar a mulher do próximo". A violação das
                  regras morais tal como o desrespeito às leis de bronze
                  implicam em condenação sumária, castigos severos ou ainda o
                  inferno.
                  
                  O fascínio que certas leis de bronze exercem na cabeça dos
                  homens e a eficácia que eventualmente podem adquirir na vida
                  social tampouco resistem ao confronto com o real. Neste
                  sentido, as leis de bronze quando exibem sua solidez cumprem
                  funções ideológicas, ou seja, cumprem funções de legitimação
                  de determinada política ou contribuem com o processo de
                  dominação em seu conjunto. Mas jamais serão eternas.
                  
                  A lei da responsabilidade fiscal é de bronze
                  
                  A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é a principal lei de
                  bronze em uso na sociedade brasileira. Em consequência, a
                  legitimação político-social para o processo de destituição da
                  presidente Dilma apareceu inicialmente sob a forma jurídica de
                  crime de responsabilidade cometido contra a lei fiscal,
                  obrigação de zelo absoluto de todo governante realmente
                  preocupado com a sorte republicana. A imprensa e os políticos
                  da ordem insistem que as "pedaladas fiscais" constituem crime
                  de responsabilidade, a despeito dos pareceres técnicos em
                  favor da presidente Dilma no Senado. A questão não é técnica,
                  obviamente; de resto, sabemos que política e verdade raramente
                  coincidem. A oposição tucana apelou à LRF consciente do golpe
                  certeiro contra a legitimidade da presidente, mas também
                  porque inauguraria nova cruzada moral em favor da valiosa lei
                  de bronze: nenhum governante pode produzir déficits, pois
                  estes seriam, especialmente em tempos de crise, muito nocivos
                  para o Estado e para o bem estar social da população.
                  
                  Em perspectiva histórica, esta cruzada em favor da austeridade
                  e contra o déficit público atua como espécie de reforma moral
                  em meio à crise. Era preciso – sabe a classe dominante –
                  manufaturar a opinião pública favorável às políticas de
                  austeridade iniciadas por Dilma e agora em fase avançada de
                  consolidação com Temer. Neste tempo turbulento, toda economia
                  de recursos é necessária, razão pela qual os já minguados
                  programas sociais, antes motivo de orgulho dos petistas,
                  representam luxo porque, como acredita o homem comum, "a vida
                  não está fácil para ninguém". A maior parte das pessoas julga
                  que a crise afeta a todos negativamente e nem nos piores
                  pesadelos podem supor a crise como aquela oportunidade
                  extraordinária para os capitalistas acumularem fortunas e/ou
                  criarem condições para conquistar maior riqueza e poder.
                  
                  Portanto, a destituição da presidente Dilma cumpre objetivos
                  imediatos e estratégicos. No curto prazo, justifica a
                  supressão de muitos direitos dos trabalhadores. No longo,
                  impulsionado pela força da reforma moral, abre-se tempo de
                  experimentação burguesa contra a ampliação do horizonte
                  político nacional, exatamente quando aos olhos de milhões de
                  pessoas o sistema político se revela miserável, intragável.
                  Enfim, a reforma moral em curso limita toda política no país à
                  enfadonha administração competente da crise no momento em que
                  milhões recusam com asco o fazer político burguês.
                  
                  Na exaustão do sistema político emerge a figura e evidencia-se
                  a função de Temer. Nada mais afeito à crise que um político
                  com o perfil do golpista. Temer é perfeito porque "chegou lá"
                  pelas mãos generosas do pragmatismo petista, aquele mesmo
                  pragmatismo considerado até bem pouco tempo não grave
                  limitação política ou submissão à correlação de forças
                  supostamente desfavorável para avançar em direção de reformas
                  radicais em favor do povo, mas, ao contrário, um pragmatismo
                  então considerado pedra angular da astúcia e da inteligência
                  lulista, pretensamente capaz de agradar proletários e
                  burgueses em favor de alguns trocados para as classes
                  subalternas.
                  
                  Ademais, Temer é a quintessência burlesca do bacharel
                  oitocentista, misto de discurso e gesto antiquado, mas
                  disponível à política de modernização de todas as frações do
                  capital e disposto a seguir com enorme convicção para o lixo
                  da história com direito à aposentadoria de presidente sem
                  culpa no cartório. Ele próprio talvez não saiba, mas ao menos
                  suspeita que ao tocar no teto, tocou também no fundo.
                  
                  A república rentista e a lumpemburguesia
                  
                  A popularidade insistentemente baixa de Temer e a estética
                  retrô que insinua não o tornam menos perigoso ou uma ameaça
                  somente evidente após o golpe, quando rompeu com seus
                  companheiros petistas de aventura. Um homem disposto a tomar
                  qualquer medida contra os trabalhadores e depois retirar-se à
                  vida privada, como ele próprio já anunciou, é um homem pronto
                  para aceitar qualquer negócio. A propósito, as recentes
                  denúncias de corrupção contra ele apenas elucidam sua
                  disponibilidade histórica para aceitar qualquer negócio.
                  
                  A beligerância de Temer resulta, portanto, em algo mais
                  valioso que sua disposição manifesta para as transações
                  tenebrosas: reside no "comando" de um governo controlado sem
                  inibições pelos banqueiros com apoio das demais frações do
                  capital (comerciantes, industriais e latifundiários). Nas
                  circunstâncias atuais, a única fração de classe capaz de
                  dirigir o país é, de fato, a fração financeira, pois a
                  regressão da burguesia industrial é enorme e sua consciência
                  de classe em nada se assemelha ao comportamento clássico da
                  burguesia industrial inglesa do século 18, quando comandou a
                  revolução industrial em favor dos seus interesses. Diante da
                  lumpemburguesia brasileira, somente a fração financeira possui
                  clara capacidade de colocar as condições gerais do
                  funcionamento da economia mundial em seu proveito, dividindo
                  de maneira desigual o botim. Adeus desenvolvimentismo!
                  
                  Nunca será ocioso recordar a importância do "ajuste" praticado
                  por Dilma para sedimentar as condições necessárias ao golpe
                  agora denunciado pela ex-presidente. Ela estabeleceu o fim de
                  seu mandato ao julgar possível a manutenção das regras do jogo
                  - superlucros para o capital e passividade dos sindicatos e
                  dos movimentos sociais - realizando a política da direita em
                  matéria econômica em "troca" dos minguados programas sociais
                  dos governos petistas. No fundo, não logrou mais do que a
                  digestão moral da pobreza, porque, como agora podemos ver, o
                  efeito dos programas sociais inéditos na história do país se
                  derrete feito gelo ao sol.
                  
                  A força da crise solapou sem demora a ilusão. A direita
                  aproveitou o momento e retomou a iniciativa política no
                  terreno parlamentar, na imprensa e, de maneira surpreendente,
                  nas ruas. Os trabalhadores e suas organizações apenas
                  despertam da anestesia que supunha possível o fim do abismo
                  social nos marcos do capitalismo. A reforma moral está em
                  curso e seu nervo mais importante é a LRF, cujo objetivo
                  evidente é a perenização do princípio da austeridade contra o
                  povo. Somente assim podemos entender as leis contra os
                  direitos trabalhistas, o aperto contra os governos estaduais,
                  o fim do reajuste para o funcionalismo público etc. etc.
                  
                  No purgatório é possível pecar
                  
                  A oposição tucana ao governo dispensaria o suposto descuido de
                  Dilma com as contas públicas e, de fato, eles se lançariam à
                  luta por sua destituição sob qualquer argumento. No entanto,
                  foi Dilma quem permitiu a ofensiva quando os impactos sociais
                  do ajuste praticado pela presidente eleita com discurso de
                  corte keynesiano afetaram agudamente os mais pobres, negando a
                  promessa da campanha vitoriosa. O golpe foi fatal contra os
                  trabalhadores e ainda mais corrosivo nas filas da resistência
                  à estratégia golpista.
                  
                  No entanto, a tragédia se completou somente quando, em sua
                  defesa, a presidente alegou que jamais desrespeitou a LRF e
                  que os atos ou decretos emitidos não violavam a lei de bronze
                  mais valiosa para a burguesia brasileira. Enquanto a escalada
                  oposicionista argumentava contra o "gasto sem caixa" - como se
                  o orçamento de um Estado guardasse alguma semelhança com as
                  finanças pessoais - a presidente alegava que o atraso dos
                  pagamentos pelo Tesouro Nacional aos bancos estatais que
                  financiaram gastos do governo (Bolsa Família, Plano Safra
                  etc.) não gerou déficits. Em sua defesa, a presidente repetiu
                  mil vezes que jamais desrespeitou a LRF e, em consequência,
                  não teria existido crime de responsabilidade.
                  
                  Assim, ambos, governo e oposição, se digladiavam em combate de
                  morte pela mesma causa! Enfim, ainda no momento decisivo da
                  disputa parlamentar, o petismo manteve o pacto com os tucanos
                  na afirmação da "política fiscal responsável" e a renúncia a
                  toda manifestação de heresia na condução da política de
Estado.
                  
                  Qualquer keynesiano de mediana formação saberia que a recessão
                  econômica inaugurada por Dilma (estoque superior a 12 milhões
                  de desempregados) e aprofundada por Temer tornaria a situação
                  fiscal ainda pior, como os números agora confirmam. A política
                  sem heresia, sem risco, o apego ao pragmatismo como ethos
                  político de conciliação de classes, chegava tragicamente ao
                  fim. O petismo descobriu em meio ao pesadelo que o pragmatismo
                  é terreno pantanoso, repleto de riscos, ao contrário do que
                  supunha tanto sua base social quanto seus mais importantes
                  "dirigentes". Ao que tudo indica, a dura lição não implica em
                  correção de rumos.
                  
                  A lógica do petismo durante toda a crise é meramente eleitoral
                  e, no limite, apenas pretende disputar com tucanos o monopólio
                  da representação da classe dominante sem a qual acreditam ser
                  impossível governar o Brasil. No purgatório, o petismo não
                  promove a necessária autocrítica para ganhar direito à nova
                  vida e considera que não pode romper com as leis mais
                  importantes para a burguesia, mesmo que precisamente esta
                  fidelidade tenha sido a responsável última por sua
                  desmoralização pública.
                  
                  A crença comum do petucanismo e a esquerda responsável
                  
                  Quando FHC apresentou ao parlamento a LRF, deputados e
                  senadores do PT votaram contra. Corria o ano de 2000 e
                  Palocci, Marina Silva (sim, Marina votou contra a LRF!),
                  Berzoini, Waldir Pires, Nilmário Miranda e Jaques Wagner
                  votaram pela rejeição do projeto. Não estavam sozinhos. O
                  ex-candidato presidencial e peça de reposição burguesa no jogo
                  eleitoral, o pernambucano Eduardo Campos (PSB), também votou
                  contra, da mesma forma que Aldo Rebelo e Agnelo Queiroz, ambos
                  do PC do B. O mundo dá voltas para a direita, não?
                  
                  Algum tempo depois - mais precisamente cinco anos - Palocci
                  (após ocupar o posto de ministro da economia) declarou que
                  "nós, naqueles idos de 2000, não demos apoio à lei. Foi uma
                  falha da bancada e eu me incluo nessa falha" (Folha de S.
                  Paulo, 4/5/2007). Na mesma época, o senador Aloísio Mercadante
                  subiu a tribuna da senado (Agência Senado, 4/05/2005) para
                  revelar que o governo Lula era mais zeloso que FHC no manejo
                  das contas públicas: "é inquestionável que a Lei de
                  Responsabilidade Fiscal foi muito importante para o país". A
                  conversão petista ao credo liberal se fazia completa e os
                  erros de juventude estavam, finalmente, superados.
                  
                  Enfim, o PT e seus principais líderes - Lula à frente,
                  obviamente - assumiam plenamente a defesa dos postulados
                  essenciais da classe dominante ao adotar a LRF na vã tentativa
                  de conquistar a confiança das classes dominantes, esquecendo
                  que estas não necessitam dos partidos políticos e de líderes
                  populares para manter a situação sob controle. Não devemos,
                  portanto, subestimar a força das leis de bronze. Ainda quando
                  revelam seu poder destrutivo, as leis de bronze podem manter o
                  encanto sobre suas vítimas.
                  
                  Não somente o PT e sua "base aliada" mantêm fidelidade ao
                  princípio da austeridade, mas setores da esquerda "que não se
                  vendeu ou se rendeu" reivindicam a necessidade de uma
                  "esquerda responsável", cujo lema não poderia ser mais nocivo:
                  o "Estado deve caber dentro do orçamento". Não é pequena a
                  conquista ideológica da classe dominante! A consequência
                  prática do simpático postulado - o Estado deve caber dentro do
                  orçamento - é que o povo deve viver de maneira permanente na
                  austeridade.
                  
                  Ora, a defesa de uma esquerda responsável limitada a manter a
                  ação estatal nos limites de um orçamento austero rompe com a
                  tradição da economia política, pois, desde o século 17, a
                  ciência gris ensina que o orçamento é produto da riqueza
                  social-estatal e não o inverso. A riqueza, conceito tão
                  elementar quanto esquecido no Brasil, segue crescendo com a
                  mesma força com a qual multiplica a desigualdade social. A
                  burguesia brasileira - comerciantes, industriais, banqueiros,
                  latifundiários - professa em uníssono o respeito à austeridade
                  permanente como se, de fato, a praticassem e, no limite, não
                  pudessem viver sem ela.
                  
                  No entanto, a história das crises revela que a burguesia
                  necessita tanto da política de austeridade (LRF) quanto da
                  produção de déficits. Na verdade, a produção do déficit é
                  ingrediente decisivo no processo de acumulação de capital
                  desde quando a Inglaterra criou um banco a partir da dívida
                  estatal e produziu o impulso capitalista necessário para se
                  transformar na oficina do mundo. Não fosse o consenso em
                  economia tão rasteiro entre nós, seria ocioso recordar
                  questões tão elementares da história do capitalismo,
                  completamente ignoradas em função do caráter ideológico do
                  "debate" econômico.
                  
                  Teoria e práxis do rombo fiscal
                  
                  A história do capitalismo contemporâneo evidencia o caráter
                  ideológico da lei de bronze, pois tanto o princípio da
                  austeridade quanto a produção do déficit depende sempre de
                  interesses concretos. Enfim, a lei deixa de funcionar quando a
                  conveniência burguesa determina; em consequência, as classes
                  dominantes, quando necessário, desprezaram sutil e
                  completamente as leis de bronze com o conhecido recurso do
                  assalto ao Estado. Assim, os déficits supostamente
                  indesejáveis se tornam inevitáveis e a defesa aberta da LRF
                  vai a segundo plano, em função das exigências da conjuntura. A
                  dívida do Estado é, finalmente, o grande negócio para os
                  capitalistas, razão pela qual seu pagamento religioso é também
                  considerado uma lei de bronze: dívidas devem ser honradas em
                  qualquer situação. O pagamento da dívida requer superávits
                  fiscais e comerciais permanentes e, em consequência, a
                  austeridade se transforma em imperativo político-moral.
                  


                  Os capitalistas aceitam a erupção dos déficits quando a
                  quebradeira de empresas (geralmente monopólios) exige a
                  intervenção do Estado tal como ocorreu em 2007 e 2008 nos
                  Estados Unidos. O governo republicano de George Bush não
                  vacilou em utilizar recursos públicos para salvar a General
                  Motors, o sistema bancário, as seguradoras que estavam em
                  completa bancarrota pela ação de seus executivos. A extensão
                  do fenômeno indica quebra sistêmica, jamais produto da ação
                  "irresponsável de um executivo"; ao contrário, ainda que
                  muitos deles foram processados individualmente, ficou claro
                  que a administração temerária dos grandes monopólios era, na
                  verdade, um modelo exigido pelas regras do jogo. O Estado
                  então aprofundou o déficit para salvar os monopólios sem
                  vacilação alguma e naquele tempo ninguém - na imprensa ou nas
                  organizações patronais - lembrou da doutrina das contas
                  públicas superavitárias.
                  
                  O Brasil não foge à regra, mas tem lá sua particularidade. O
                  quadro abaixo mostra a evolução do superávit primário, do
                  gasto financeiro e do resultado nominal até 2015, segundo os
                  dados do Banco Central (em bilhões de reais).
                  
    ....................
                  
 
                  Até 2013 os sucessivos governos do PT acumularam suculentos
                  superávits fiscais (superávit primário). O gasto social era
                  controlado com mão de ferro, a despeito da propaganda
                  governamental sobre os programas sociais e a ideológica
                  emergência de uma nova classe média num país subdesenvolvido.
                  
                  Em 2014 apareceu o primeiro déficit em mais de uma década;
                  ainda assim, cifra modesta: apenas R$ 32,5 bilhões. Na
                  verdade, ao contrário do que afirma a oposição tucana, o
                  minúsculo déficit não era sequer capaz de fomentar ações do
                  governo para enfrentar um ano eleitoral, no qual, como manda o
                  comportamento republicano vigente, o governo colocaria a
                  máquina a funcionar em favor de seus candidatos. O reduzido
                  déficit, no entanto, não pode ocultar tema relevante: neste
                  ano, ocorreu fantástico crescimento do pagamento de juros,
                  pois enquanto 2013 a orgia financeira consumia 157 bilhões, em
                  2014 exigiu adicionais 343,9 bilhões! Esta rápida evolução dos
                  gastos com o rentismo financeiro deve-se, em primeiro lugar, à
                  decisão de Dilma em aplicar a ortodoxia neoliberal na condução
                  da política econômica. Os banqueiros pressionaram como alegam
                  petistas? Claro que sim! Mas quando foi diferente? Os
                  banqueiros pressionam há séculos os governos e aproveitam toda
                  crise para assaltar o Estado via dívida pública e empréstimos
                  externos.
                  
                  A situação já insustentável piorou ainda mais em 2015 com a
                  política ultraneoliberal aplicada por Dilma. O déficit
                  primário, ou seja, o gasto do governo sem a contabilização dos
                  juros, alcançou R$ 111,2 bilhões; mas o déficit nominal,
                  aquela cifra que contabiliza o pagamento de juros, registrou
                  importante acréscimo: saltou para 613 bilhões (501,8 bilhões
                  com o pagamento de juros), quase o dobro do ano anterior.
                  
                  Neste contexto, podemos entender o giro à direita operado por
                  Dilma quando, de maneira surpreendente para seus desavisados
                  eleitores, adotou sem vacilação o programa defendido por Aécio
                  Neves. Nenhuma surpresa, antecipo, pois a causa fundamental do
                  giro à direita estava escrita nas estrelas. Numa economia
                  dependente, comandada pelo rentismo, somente um estadista
                  poderia convocar o povo e mudar o rumo da economia e do
Estado.
                  
                  Dilma e a cúpula petista - Lula à frente, sempre - decidiram
                  praticar a política do adversário derrotado com a certeza de
                  que não poderiam deixar a burguesia sob hegemonia tucana. Ao
                  adotar o programa liberal, Dilma julgou que mataria dois
                  coelhos com uma cajadada: segundo seus cálculos, a direita
                  estaria com ela na medida de seus interesses e a esquerda
                  julgaria que tudo poderia ser pior com Aécio, aceitando,
                  assim, a dura realidade.
                  
                  Não se deve esquecer a pressão quase pública de Lula para
                  levar Meirelles ao comando da economia, indicando a
                  "necessidade" da rápida atuação para o insaciável apetite
                  rentista. Enfim, é legitimo considerar que Lula queria mais
                  rapidez no ajuste e todos podem recordar seu breve ativismo no
                  meio sindical ao afirmar que a questão decisiva não era o
                  pântano moral da cúpula petista, mas a crise econômica.
                  
                  A súbita guinada à direita não decorria, portanto, somente da
                  suposta astúcia e descarado oportunismo político da direção
                  petista. Era, na verdade, uma imposição das condições
                  concretas, das exigências da república rentista e
                  especialmente da fração financeira da burguesia diante da
                  mínima ameaça de interrupção do fluxo financeiro a seu favor
                  em caso de inadimplência do Estado. A redução da capacidade de
                  pagamento permitiu a cena necessária para a mudança de rumo, o
                  fim da breve e precária primavera keynesiana (nova matriz
                  econômica) e a fatal imposição da volta à ortodoxia como se,
                  de fato, os políticos tivessem finalmente recuperado a lucidez
                  que as finanças reclamam.
                  
                  A crise escancarou outro ritmo. A burguesia queria um ajuste
                  rápido e profundo, sem a parcimônia petista que faria tudo
                  exatamente igual, porém, de maneira "negociada". É claro que o
                  ajuste praticado por Dilma foi violentíssimo! Milhões de
                  desempregados em poucos meses, acelerado processo de
                  decadência e desnacionalização industrial, agravamento da
                  questão fiscal pela recessão, desvalorização da moeda e certa
                  inflação para corroer o poder de compra dos salários. A crise
                  financeira do Estado - diretamente proporcional à força da
                  política de juros praticada pelo governo via Banco Central -
                  era de fato inocultável, mas Dilma não somente vetou a
                  auditoria da dívida como insistiu na natureza fiscal de um
                  problema sob o qual já não tinha controle.
                  
                  Na cabeça dos keynesianos a política econômica deveria
                  defender a indústria nacional, mas eles parecem ignorar os
                  efeitos destrutivos do Plano Real sobre a burguesia
                  industrial. De fato, a participação da indústria de
                  transformação no PIB era, em 2004, de quase 18% e declinou, em
                  2015, para 9%. Tal como no poema de Drummond, "burguesia
                  industrial já não há". E agora José?
                  
                  Não está na força da burguesia, mas precisamente em seu
                  raquitismo industrial, a origem do protagonismo da FIESP na
                  Avenida Paulista nas manifestações de massa contra um governo
                  acuado moralmente e decidido a recompor o pacto de classe sem
                  ativismo sindical e popular. Os economistas keynesianos
                  estavam roucos de tanto gritar desde a UNICAMP por "outra
                  política econômica" centrada no "fortalecimento do emprego e
                  renda", mas sofriam a mesma solidão do Planalto: quais forças
                  sociais os apoiavam?
                  
                  A falta de realismo apareceu na tentativa tão desesperada
                  quanto ingênua do "compromisso pelo desenvolvimento", no qual
                  a CUT, Força Sindical, UGT, CTB, NCST e CSB pelos
                  trabalhadores e a CNI, Anfavea, Abimaq, Abit entre outras
                  entidades patronais defendiam o "melhor dos mundos possíveis"
                  onde - alimentados por imensa ilusão de classe - garantir o
                  desenvolvimento do país. Era beco sem saída, a vida comprovou.
                  Não é fácil tentar pacto com a lumpemburguesia.



                  Um golpe de classe?
                  
                  A burguesia brasileira, sempre dirigida pelo capital
                  financeiro, não vacilou diante da oportunidade. Uma vez
                  instalado o governo, Temer colocou Henrique Meirelles e Ilan
                  Goldfajn, dois falcões da rapina financeira, no comando dos
                  postos mais importantes da república. Com velocidade
                  invejável, os dois trataram de convencer a opinião pública de
                  que o rombo das contas públicas era muito pior do que mentiam
                  os petistas. Na exata medida em que incluíam no cálculo todo
                  tipo de dívidas com o claro objetivo de inflacionar a conta
                  final, estavam conscientes que a profundidade do ajuste seria
                  proporcional ao volume do déficit. A mágica cifra de 170
                  bilhões de reais recompunha parcialmente a necessidade de
                  seguir financiando o rombo na exata medida em que alimentava
                  ainda mais o rentismo e, de quebra, permitia ligeira margem de
                  manobra para o governo gastar por conta alguns bilhões para as
                  necessidades da "base aliada" num ano de eleições municipais.
                  
                  Os dias atuais revelam, portanto, o crescimento do déficit e a
                  austeridade caminhando juntas. Déficits para financiar frações
                  do capital e austeridade sobre o povo. A ideologia do
                  sacrifício, tal como no cristianismo dominante, acompanha a
                  ideologia da austeridade como se após este período de ajuste -
                  duro, porém necessário - todos seríamos agraciados com uma
                  política de renda e emprego novamente. No entanto, as classes
                  dominantes não escondem o jogo e o governo anuncia que o vale
                  de lágrimas não será passageiro: nada de frouxidão ou excessos
                  nos próximos 20 anos!
                  
                  Keynes na periferia
                  
                  Com a LRF o liberalismo de direita julgou que tinha assegurado
                  um valioso instrumento contra os governantes, especialmente
                  importante contra o "populismo", considerado inclinação
                  natural dos latino-americanos na irresponsabilidade com os
                  assuntos de Estado. No entanto, o sono tranquilo durou pouco
                  porque as exigências da vida são mais fortes.
                  
                  Em 2007/2008, a crise abalou os países centrais, com epicentro
                  nos Estados Unidos e exigiu que o Estado - sim, aquele mesmo
                  ogro filantrópico da consagrada expressão de Octavio Paz -
                  abandonasse a antiga ladainha da "não intervenção na economia"
                  e aos olhos atônitos do discípulo liberal concedesse aparente
                  razão ao keynesiano intervencionista.
                  
                  Nos Estados Unidos os déficits são permanentes, ainda que em
                  2015 tenha sido o mais baixo em 8 anos, segundo dados do
                  Departamento do Tesouro. A cifra tocou os 439 bilhões de
                  dólares, quantia 9% inferior a 2014. As fontes indicam que é o
                  mais baixo desde 2007, quando a crise eclodiu com força nos
                  países centrais. Ninguém com duas moléculas de realismo
                  defendeu nos Estados Unidos um "orçamento equilibrado" e o fim
                  do "déficit" para arrumar a economia. Lá, a teoria é outra.
                  Existe, obviamente, a ideologia do combate aos déficits, mas
                  foi esclarecedor observar como Bush, um republicano avesso aos
                  subsídios keynesianos, tirou o cheque e cobriu rombos
                  bilionários dos grandes monopólios em 2007 e 2008, quando a
                  General Motors, os bancos e as seguradores foram à bancarrota
                  após a orgia da liberalização... É grande a diferença entre a
                  burguesia dos países centrais e a lumpemburguesia dos países
                  latino-americanos!
                  
                  Num breve texto de 1925 (Am I a liberal?), Keynes declarou a
                  impossibilidade de assumir o Labour Party na Inglaterra porque
                  este representava uma classe antagônica à sua origem social.
                  Esperto, na mesma medida em que evitou o trabalhismo
                  britânico, Keynes simulou distância do conservadorismo e
                  adiantou-se na defesa do que chamou "Justiça e o bom senso".
                  Neste contexto, alegou que "... the class war will find me on
                  the side of the educated bourgeoisie" (a luta de classes me
                  encontrará sempre ao lado da burguesia educada), bordão
                  abre-alas para certo ativismo keynesiano de corte
progressista.
                  
                  Agora, os keynesianos - Luiz Gonzaga Belluzzo talvez seja o
                  mais visível deles - se dizem "heterodoxos" e de certa maneira
                  a autodefinição serve como caminho fácil para ocultar - por
                  conveniência ou ignorância - as raízes ortodoxas de seu mestre
                  mais famoso. Tal comportamento evita o tema da conversão, tão
                  decisivo na fé quanto na ciência. Enfim, Keynes nem sempre foi
                  um keynesiano, tal como o reconhecemos agora. Ao keynesianismo
                  brasileiro lhe falta dentes para morder e, de fato, eles
                  assumiram há tempos a ideia ortodoxa, segundo a qual os
                  "fundamentos da economia" devem ser sólidos e não convém
                  brincar com política fiscal (déficits fiscais).
                  
                  Por esta razão toleraram durante uma década a LRF, pois,
                  apesar dela, conseguiam vender suas ilusões por meio de
                  governos petistas com reduzidos programas sociais e a feliz
                  suposição de uma "nova matriz econômica". O pacto de classe
                  funcionou e os programas sociais permitiram aos "heterodoxos"
                  fazer de conta que os custos do processo dependiam da
                  superexploração dos trabalhadores sem a qual nada funciona.

                   Durante todos estes anos, os keynesianos silenciaram sobre a
                  guerra de classes, ao contrário de seu mestre mais ilustre. O
                  famoso tripé - política monetária austera, câmbio flutuante e
                  taxa de juros elevada -, considerada expressão da
                  racionalidade científica representa, na verdade, os interesses
                  das distintas frações de classe racionalizadas pelo
                  economista. A ideologia dos economistas não raro é produto de
                  deficiências teóricas graves, mas é decisivo entender o limite
                  do keynesianismo nacional também como manifestação da ausente
                  base material, ou seja, a inexistência de uma burguesia
                  industrial ascendente. Temos exatamente o oposto!
                  
                  Aquela tirada de Keynes segundo a qual "a luta de classes me
                  encontrará sempre ao lado da burguesia educada" é até
                  simpática em termos literários, mas rigorosamente falsa no
                  solo histórico latino-americano. Aqui, uma burguesia educada -
                  que, de fato, tampouco existiu nos países centrais! - seria um
                  luxo não fosse apenas um desejo irrealizável do bom mocismo
                  político brasileiro e seu corolário, a colaboração de classes
                  em prejuízo dos trabalhadores.
                  
                  André Singer, ex-porta voz de Lula, manifestou como ninguém a
                  "descoberta" nas vésperas da votação contra a presidente:
                  segundo o professor da USP, era muito significativo que a luta
                  de classes tivesse voltado à cena "trazida pela direita e pelo
                  capital". Arrematou atônito: "Isso é surpreendente. Por que
                  essa ofensiva diante de um projeto, de um governo que o tempo
                  todo tentou conciliar, desde 2003 até agora, e jamais apostou
                  na ruptura e no enfrentamento?"
                  
                  Nas condições do capitalismo dependente latino-americano, a
                  crise evidenciou a margem de manobra reduzida para os pactos
                  róseos que a maior parte do sindicalismo e dos economistas
                  heterodoxos defendeu. A realidade atropelou todas as ilusões.
                  Não sabemos por quanto tempo estas mesmas ilusões podem ainda
                  comandar as esperanças ingênuas dos homens. Não oculto certo
                  otimismo neste difícil momento, pois, diante da ofensiva do
                  capital, os trabalhadores podem entender que nada devem
                  esperar da lumpemburguesia brasileira e, em consequência, nada
                  têm a perder. Exceto, é claro, aqueles velhos grilhões que os
                  mantêm atados ao sistema que os explora e oprime.

                  PS: agradeço a Mauricio Mulinari os dados da tabela e também
                  as permanentes conversas que temos mantido nos últimos anos.
In
CORREIO DA CIDADANIA
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11939:sobre-as-leis-de-bronze-da-lumpemburguesia&catid=72:imagens-rolantes
25/8/2016

O grande bluff da robotização


 
As previsões catastrofistas das últimas décadas sobre a destruição de empregos pela automatização nunca se confirmaram. As profecias atuais dos gurus da “economia de partilha” trazem uma nova ideologia segundo a qual o emprego, a classe assalariada e as pensões estão ultrapassadas. Artigo de Michel Husson.
 
 

Numerosos estudos anunciam-nos que a automatização vai levar a uma grande hecatombe de empregos (Husson, 2015 a)). Ao mesmo tempo, a desaceleração da produtividade inquieta os economistas oficiais e Christine Lagarde, a presidente do FMI, até invoca uma “nova mediocridade”. Este artigo examina esta contradição.
Um velho refrão
Os discursos proféticos sobre as destruições de empregos não são de hoje. Já tivemos direito ao mesmo refrão com a “nova economia” no início do século e depois com as previsões sobre o “fim do trabalho” de Jeremy Rifkin (1996), o mesmo que celebrará um pouco mais tarde “o sonho europeu” (2004), do qual se sabe que se transformou em pesadelo.
Se recuarmos mais no tempo, temos o famoso relatório Nora-Minc sobre a “informatização da sociedade” (1978), que anunciava já os enormes ganhos de produtividade que nunca viriam a chegar, tal como lembrou excelentemente Jean Gaudrey (2015).
Este tipo de previsões são o tema favorito dos gurus que contam periodicamente a mesma fábula. Vinte anos depois das suas previsões futuristas, no ano 2000, Alain Minc revisitava as suas ilusões, sob a forma de autocrítica implícita: “Como foi, desse ponto de pista,  a fantasia informática! Evidentemente, nem o surgimento dos computadores mais potentes, nem a explosão da microinformática, cumpriram esse papel salvador: desempenharam o seu papel na modernização do aparelho produtivo, mas não mudaram os principais parâmetros da economia (…) Não foi a aguardada panaceia”.
Mas Minc não desanima. Com a e-economia, desta vez é que é:
“Estou convencido que desta vez entramos num autêntico ciclo Kondratiev. Entre a informática e a multimedia (sic) existe uma diferença fundamental. Uma mudança tecnológica só induz um novo ciclo de crescimento se tiver influência simultânea sobre a oferta e a procura. Por um lado, melhorando a eficácia do aparelho produtivo ao parmitir ganhos massivos de produtividade; por outro lado, fazendo nascer, ao nível do consumidor, produtos realmente novos, suscetíveis de mudar os seus hábitos de consumo”.
A produtividade desacelera
Uma década e uma crise mais tarde, já não sobra nada destes problemas. Para já mantém-se o paradoxo de Solow: “veem-se computadores em todo o lado, menos nas estatísticas da produtividade” (1987). A desaceleração da produtividade é de facto hoje em dia um fenómeno praticamente universal e que não é bem compreendido pelos economistas. O Financial Times de 29 de maio de 2016 inquieta-se com este “quebra-cabeças desconcertante”, enquanto Christine Lagarde evoca uma “nova mediocridade”. Os dois gráficos seguintes mostram o deslocamento para baixo dos ganhos de produtividade, um fenómeno quase universal que também abarca os chamados países emergentes.

Os especialistas: de 1 a 5
O estúdio de referência é o de Frey e Osborne (2013): prevê que 47% dos empregos estão ameaçados pela automatização nos Estados Unidos. Os outros estudos são simples cópias, por exemplo, o do gabinete Roland Berger que trevê a destruição de três milhões de empregos em França desde agora até 2025 (Neveux, 2014).
Outros contributos são, porém, claramente menos alarmistas. Georg Graetz e Guy Michaels (2015) não encontram “efeito significativo dos robôs industriais no emprego global”. Outro especialista destes temas, David Autor (2015), pergunta-se ironicamente “porque é que ainda há tantos empregos” e introduz a diferença fundamental entre tarefas e empregos: “embora algumas das tarefas efetuadas pelos empregos com qualificação média estão expostas à automatização, muitos destes empregos continuarão a mobilizar um conjunto de tarefas que compreendem o conjunto do espectro das qualificações”.   
É na base desta distinção entre empregos e tarefas que um recente estudo da OCDE (Arntz, Gregoory e Zierahn, 2016) chega a um número muito inferior (cinco vezes menos) das previsões mais alarmistas: “apenas 9% dos empregos estão confrontados nos EUA a uma forte possibilidade de serem automatizados [‘automatibility’] em vez de 47%, segundo Frey e Osborne”. Este resultado foi obtido a partir de uma rigorosa crítica do seu método (ver quadro), aplicando-se a todos os estudos que o retomam.


Frey e Osborne: um método questionável
Como é que os dois economistas (embora trabalhem em Oxford) conseguem prever a evolução do emprego “sobre um certo número, indeterminado, de anos, talvez uma ou duas décadas”?
Eles começarm por selecionar 70 postos de trabalho entre os 702 da sua base de dados. Depois dirigem-se aos “especialistas” e colocam-lhes esta questão: “As tarefas correspondentes a este emprego podoa, ser suficientemente especificadas, sob reserva de disponibilidade de big data, para ser efetuadas pelos mais recentes equipamentos controlados por computador (state of the art)”.
As avaliações dos especialistas são em seguida alargadas ao conjunto dos 702 postos de trabalho considerados, sobre a base de uma correlação com outras características que lhes servem de indicadores dos obstáculos (bottlenecks) à informatização. Mas esta extrapolação não é legítima, já que apenas pode estabelecer, justamente, as correlações que não dizem nada sobre a proporção de empregos automatizáveis para as 632 categorias “em 702” não “especializadas”.


A maquinização do trabalhador
Vale a pena descrever os obstáculos à automatização identificados por Frey e Osborne. Uma primeira categoria reagrupa as exigências de dexteridade e as constrições ligadas à configuração do posto de trabalho. A seguir vem a inteligência criativa, ou seja, a vivacidade intelectual ou as disposições artísticas. Mas a última categoria, batizada “inteligência social”, dá um arrepio na espinha e merece ser tratada com mais detalhe. Aqui estão, segundo Frey e Osborne, os outros obstáculos à informatização:
– a perspicácia social, que consiste em compreender as reações dos outros e as razões desses comportamentos;
– a negociação, dito de outra forma, o ato de tentar conciliar os pontos de vista diferentes;
– a persuasão, que permite levar os outros a mudar de ponto de vista ou de comportamento;
– a preocupação com os outros (colegas, clientes, pacientes), na forma de assistência pessoal, de cuidados médicos ou outros de apoio emocional.
Esta enumeração permite compreender até que ponto a automatização dos processos de produção está concebida como uma “maquinização” dos trabalhadores. O obstáculo a erradicar são as disposições – simplesmente humanas – que constituem o coletivo de trabalho e que permitem que se estabeleçam relações sociais entre produtores e utilizadores. O ideal, típico do capitalismo, no fundo consiste em levar ao paroxismo a reificação das relações sociais, que transforma a relação entre seres humanos em relações entre mercadorias.
Ganhos de produtividade e duração do trabalho
A ideia muito espalhada segundo a qual os ganhos muito elevados de produtividade seriam a causa do desemprego e anunciariam o fim do trabalho está hoje completamente desmentida. Os ganhos de produtividade eram muito elevados durante o período dos “Trinta Gloriosos”, caracterizado por um quase pleno emprego. E o auge do desemprego é concomitante com o esgotamento dos ganhos de produtividade.
Admitamos até que seja credível a ameaça de destruições massivas de emprego e imaginemos uma sociedade que, por um golpe de varinha mágica, só teria necessidade de metade do tempo de trabalho necessário para assegurar o mesmo nível de vida. Esta poderia decidir que metade dos produtores continue a trabalhar tanto como antes e que a outra metade seria “dispensada” do trabalho, beneficiando de um rendimento. Mas poderia também aproveitar-se da vantagem tecnológica para dividir ao meio o tempo de trabalho de cada um(a).
Deixemos de lado a fábula e olhemos o que se passou no século XX: nesse período a produtividade horária do trabalho multiplicou-se por 13.6 e a duração do tempo de trabalho caiu 44%. Resumindo, trabalhamos a meio tempo em relação aos nossos bisavós e caso assim não fosse o desemprego teria alcançado níveis insuportáveis.
Isto não se fez “naturalmente”: são as lutas sociais que asseguraram essa redistribuição dos ganhos de produtividade na forma de redução do tempo de trabalho e não apenas de aumento de salários. A história das lutas sociais ficou marcada pelos combates sobre o tempo de trabalho.
E até a OCDE (2016) evoca essa possibilidade sempre aberta: “mesmo se a necessidade de mão de obra é menor num país em particular, isto pode traduzir-se numa redução do número de horas tralhadas e não necessariamente por uma queda no número de empregos, como constataram numerosos países europeus ao longo das últimas décadas”.
Os limites da automatização capitalista
A automatização liga-se às diferentes formas do que a seguir se chama a economia numérica, de que a “uberização” é a manifestação mais mediatizada. Alguns veem nela uma explicação possível do paradoxo de Solow. Para Charles Bean (2016), ex-economista chefe do Banco de Inglaterra, este paradoxo teria origem especialmente “do facto que uma  parte crescente do consumo se dirige a produtos numéricos gratuitos ou financiados por outros meios, como a publicidade. Ainda que os bens virtuais gratuitos tenham claramente valor para os consumidores, estão claramente excluídos do PIB, de acordo com as normas estatísticas internacionais. Por conseguinte, as nossas medidas poderiam não levar em conta uma parte crescente da atividade económica”.
Para corrigir esta tendência, Bean propõe dois métodos: “Podiam usar-se os salários médios para estimar o valor do tempo que as pessoas passam online utilizando os produtos numéricos gratuitos, ou então corrigir a produção de serviços de telecomunicações para ter em conta o rápido crescimento da Internet.”
O professor da London School of Economics comete aqui um erro revelador, confundindo valor de uso e valor de troca. O “valor” que representa para o consumidor a escuta de música online representa um valor de uso mas não um valor de troca. É a sociedade do “custo marginal zero” que teoriza Rifkin (2014), que talvez não se engane sobre este ponto ao prognosticar “o eclipse do capitalismo”.
De facto, a generalização da economia numérica não é forçosamente compatível com a lógica capitalista de produzir e vender mercadorias: estas podem ser completamente virtuais e desmaterializadas, mas devem rentabilizar o capital. Analogamente, a robotização deve não apenas ser rentável, mas também dispôr de saídas. Se verdadeiramente devia conduzir a uma destruição massiva de empregos, colocar-se-ia a questão de saber a quem vender as mercadorias produzidas pelos robôs. Seria preciso aprofundar estas pistas para atualizar o princípio avançado por Ernest Mandel (1979:550): “A automatização geral na grande indústria é impossível no capitalismo tardio. Esperar essa automatização generalizada antes de derrubar as relações de produção capitalistas é. pois, tão incorreto como esperar a abolição das relações de produção capitalistas através do mero avanço da automatização”.
Estão em causa a estrutura e o estatuto dos empregos
O ponto de vista aqui defendido não questiona a amplitude das transformações incluídas pela economia numérica, mas dirige-se às avaliações catastrofistas dos seus efeitos sobre o emprego. No entanto, o conjunto dos estudos disponíveis, incluídos os mais céticos, insistem sobre o impacto dessas mutações sobre as estruturas do emprego e o seu estatuto. Tomemos o exemplo de Industria 4.0, um projeto desenvolvido na Alemanha para a automatização inteligente das fábricas (smart factories) através dos “sistemas ciberfísicos” que asseguram melhor coordenação e reatividade dos robês. Um estudo recente (Wolter, Mönnig, Hummel et. al., 2015) considera – como outros já citados – que os efeitos sobre o emprego global seriam reduzidos. Não podemos cair no story telling de observadores fascinados por essas mutações tecnológicas e das que fazem os profetas.
Esse é tipicamente o caso de Bernard Stiegler (2016), que numa breve entrevista que resume bem o seu discurso, afirma que “existem hoje fábricas sem operários: a Mercedes arrancou com uma fábrica que apenas emprega quadros”. Ao qual um comentador (Christian) responde com este desmentido bem informado: “A Mercedes, uma fábrica sem operários? Gostava de saber onde. Engana-se se pensa em Hambarch e a fábrica Smart. É justamente aí que a barreira da fábrica é mais restritiva: tudo está subcontratado, ou quase, através da montagem de módulos pelos subcontratados que utilizam a mão de obra. A montagem destes módulos é feita por alguns operários Smart e todos os quadros desempenham o papel de interface entre os diferentes interlocutores”.
Pelo contrário, estes novos processos de produção induziriam transferências importantes de mão de obra entre postos de tratalho e setores, orientados para empregos mais qualificados. Desde há várias décadas, as mutações tecnológicas desempenham já um papel essencial na “tripolarização” dos empregos: os empregos altamente qualificados, de um lado, e os empregos pouco qualificados por outro, vêm aumentar a sua participação no emprego total. E baixa a participação dos empregos intermédios. Este movimento combina-se com a mundialização e as deslocalizações da mão de obra nos chamados países emergentes (Husson, 2015 b) e contribui para o aprofundamento das desigualdades no interior da classe assalariada.
Segundo uma hipótese otimista, esta evolução poderia ser corrigida mediante uma elevação geral das qualificações, assegurando assim um auge de competitividade que já não estaria baseada nos baixos salários. Mas esta perspetiva não é forçosamente uma via real suscetível de criar empregos em número suficiente e adaptados às estruturas das qualificações.
O “colaborativo” contra a classe assalariada
É aqui que intervém a economia numérica e, em particular, as plataformas que proporcionam pequenos trabalhos a trabalhadores chamados “independentes”: podemos nomear a AirBnB, BlaBlaCar, Task Rabbit, YoupiJob, Frizbiz ou até o Turc mecânico da Amazon. Esta economia de “partilha”, “colaborativa” ou “para a procura”, exerce um efeito corrosivo sobre as instituições da classe assalariada. Como observa a OCDE na sua síntese já aqui citada: “A duração legal do trabalho, o salário mínimo, o subsídio de desemprego, os impostos e as prestações estão sempre baseadas na noção de uma relação clássica e única entre o assalariado e o empregador”.
Com o desenvolvimento do trabalho independente, acrescenta a OCDE, “um número crescente de trabalhadores arrisca-se a ficar excluído dos contratos coletivos. Pode também acontecer que não tenha direito às prestações de desemprego e aos regimes de pensões e saúde de que os assalariados beneficiam e que tenham dificuldades para conseguir um crédito. No momento atual, os trabalhadores independentes não têm direito às prestações de desemprego em 19 dos 34 países da OCDE e em 10 países não têm direito às prestações de acidentes de trabalho”.
Mas aí também, as novas tecnologias não têm muito que ver, Não existe de facto nenhuma relação entre o peso do trabalho independente e a parte do emprego nos setores de alta tecnologia. Haveria mais no sentifdo contrário, como mostra o gráfico, retirado de Patrick Artus (2016), que sugere que “o desenvolvimento do trabalho independente [poderia] simplesmente permitir evitar a proteção do emprego assalariado”.

A era dos gurus
Quais são, ao fim e ao cabo, as possibilidades de extensão desta economia “colaborativa” e dos estatutos de trabalho degradado que a acompanham com muita frequência? Para alguns, “nenhuma filial fica de fora”, como reivindica com orgulho The Family, uma “incubadora” de start-up, para quem o emprego, a proteção ocial, os transportes, as pensões, etc. estão ameaçadas pelos “bárbaros”.
Esta problemática suscitou o aparecimento de profetas e gurus desigualmente inspirados, que funcionam em redes por vezes concorrentes e dão provas de uma grande habilidade para obter subsídios do Estado ou de grandes empresas. Olhemos mais de perto para mostrar como o fascínio tecnológico dos grandes iniciados serve para difundir uma nova ideologia segundo a qual o emprego, a classe assalariada e as pensões estariam hoje ultrapassadas. Segundo dizem, seria inútil e reacionário querer “fazer voltar atrás a roda da história”, em vez de inventar os meios para adaptar-se ao movimento impetuoso do progresso tecnológico. Constrói-se assim um discurso multiforme, que exalta a “transversalidade” contra a “verticalidade”, o “nomadismo” contra o “sedentarismo”, a “reforma” contra o “conservadorismo”. Pede à maioria dos seres humanos que se adaptem às inevitáveis mudanças e a renunciar a toda a forma solidária de organização social. Insiste na ideia de que “o trabalho acabou” e que a única compensação que se pode querer é um (pequeno) rendimento no marco de uma sociedade de apartheid (Dessus, 2016). Todas estas previsões têm finalmente como ponto comum exortar os povos a abandonar todo o projeto de controlo sobre o seu destino.


Artigo publicado na revista Viento Sur. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.
Referências
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Autor, D. G. (2015) “Why Are There Still So Many Jobs? The History and Future of Workplace”, Journal of Economic Perspectives, vol.29, n°3, http://goo.gl/aTrgis
Bean, Ch. (2016) “Measuring the Value of Free”, Project Syndicate, 3 de mayo,http://goo.gl/4Kpq8P
Dessus, B. (2016) “Revenu universel : le risque d’apartheid”, AlterEcoPlus, 27 de mayo, http://goo.gl/wh1qYn
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In
ESQUERDA.NET
28/8/2016