segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

REFLEXÕES SOBRE O 30º ANIVERSÁRIO DO FIM DO PROJETO SOCIALISTA SOVIÉTICO

 




Equipa do Fightback!

 

    /Como primeiro país socialista da história, a União Soviética
    representou uma luz na escuridão para trabalhadores e oprimidos em
    todo o mundo. Mostrou de forma clara como o dia que o capitalismo –
    com suas desigualdades obscenas, pobreza e exploração desenfreadas,
    guerras, doenças, fome e opressão – não era o único caminho
    possível. A classe trabalhadora poderia tomar o poder para si como
    classe e usá-lo para construir um novo tipo de sociedade baseada na
    liberdade e na solidariedade./

 



O mês passado marcou o 30º aniversário de um dos eventos mais colossais
da história. Em 26 de dezembro de 1991, a União Soviética dissolveu-se
formalmente, pondo fim ao projeto de mais de 70 anos de construção do
socialismo e reintroduzindo o capitalismo em quase um quinto do mundo.

O colapso soviético marcou o ponto mais baixo do socialismo do século
XX, mas também não foi o único. Quer antes dos acontecimentos na Rússia,
quer durante cerca de uma década depois, os países socialistas da Europa
Oriental viram amplas contrarrevoluções que  varreram os partidos dos
trabalhadores no poder e restauraram o governo do 1% mais rico. Grandes
protestos, intervenção militar e respostas ambivalentes de líderes
partidários desleais ou irremediavelmente desesperados – essas foram as
marcas superficiais da época.

Em alguns países como a Bulgária, o partido comunista lutou e realmente
venceu as eleições sob a nova constituição favorável ao capitalismo – um
pecado que rapidamente os baniu pelas novas classes dominantes, não
importando sua retórica vazia sobre “eleições livres e justas. ” Para a
Albânia e a Jugoslávia, foi necessária uma intervenção militar direta
dos membros da NATO até a década de 1990, para finalmente colocar o
proverbial prego no caixão vermelho.

Vale a pena refletir sobre tudo por causa da miséria incalculável
provocada pelo capitalismo monopolista nos últimos 30 anos. À medida que
a pandemia do COVID-19 avança, trazendo morte e sofrimento económico
generalizado aos trabalhadores nos EUA e em todo o mundo, há uma
crescente sensação coletiva de que algo tem que dar. Este sistema,
governado por bilionários e bancos que enriquecem com o trabalho, a
terra e os recursos do resto de nós, não pode continuar.

Mas, à medida que as pessoas exploram alternativas para o mundo
capitalista do nosso tempo, o projeto socialista soviético continua a
ser uma experiência importante da qual podemos tirar lições.

Vamos ser claros sobre isto: o colapso da União Soviética e a derrube do
socialismo na Europa Oriental foi uma catástrofe para trabalhadores e
oprimidos em todo o mundo. Nascida da carnificina e destruição
desencadeada no mundo pelo capitalismo monopolista, a União Soviética
tornou-se o primeiro estado socialista da história. Era uma sociedade
governada pela classe trabalhadora em aliança com o campesinato, que
exercia o poder político através do Partido Comunista. Ao longo do
século XX, revoluções – geralmente nascidas de condições semelhantes de
guerra e devastação – viram outros partidos de trabalhadores chegarem ao
poder, eventualmente abrangendo quase metade da população mundial.

Esta é uma boa história, mas o que havia de tão significativo no
socialismo na União Soviética?

O socialismo é apenas um sistema melhor para a grande maioria das
pessoas do que o capitalismo. Sabemos disso porque realmente existe há
mais de um século e ainda existe hoje em vários países. Como primeiro
país socialista da história, a União Soviética representou uma luz na
escuridão para trabalhadores e oprimidos em todo o mundo. Mostrou de
forma clara como o dia que o capitalismo – com suas desigualdades
obscenas, pobreza e exploração desenfreadas, guerras, doenças, fome e
opressão – não era o único caminho possível. A classe trabalhadora
poderia tomar o poder para si como classe e usá-lo para construir um
novo tipo de sociedade baseada na liberdade e na solidariedade.

Aqui está o que a União Soviética alcançou em mais de 70 anos de
construção do socialismo:  criou uma economia livre de desemprego,
inflação, pobreza, recessões, falta de habitação e maciça desigualdade
de rendimento. Isto também não era 'compartilhar a pobreza', como tantos
historiadores liberais e de direita alegam. A economia soviética cresceu
a um ritmo vertiginoso durante a maior parte da sua existência,
principalmente devido ao planeamento socialista, e aumentou os padrões
de vida e consumo de seu povo mais rapidamente do que qualquer outro
país antes dela.

Quando os bolcheviques chegaram ao poder em 1917, a produção industrial
da Rússia era 12% da dos Estados Unidos; 50 anos depois, tinha subido
para 80% da produção dos EUA – e 85% da produção agrícola dos EUA. Esse
tipo de crescimento económico é transformador, mas não foi crescimento
pelo crescimento ou pelo enriquecimento privado de alguns no topo. No
sistema soviético, o povo como um todo — trabalhadores comuns de muitas
nacionalidades — desfrutava dos benefícios do crescimento que o seu
trabalho árduo tornava possível.

Num momento em que a inflação nos EUA  tem a sua taxa mais alta em
décadas - especialmente para necessidades como habitação, gás,
alimentação, saúde e serviços públicos - é chocante pensar que as rendas
de casa na União Soviética nunca ultrapassarram cerca de 3% do orçamento
familiar. Os serviços de utilidade pública eram apenas um pouco mais
altos, 5%. Certos bens de luxo custavam muito mais, mas através do
planeamento central, o estado socialista estabeleceu preços para
alimentos e outras necessidades inferiores ao seu 'valor de mercado'
equivalente.

No bloco socialista, os trabalhadores tinham o direito garantido a um
trabalho remunerado. Os trabalhadores soviéticos em meados da década de
1970 tiravam uma média de um mês de férias pagas todos os anos, viajando
com as suas famílias para campos de férias patrocinados pelo Estado e
países vizinhos  Todos os trabalhadores tinham baixa médica paga se
adoecessem. Não havia companhias de seguro de saúde, prémios caros,
franquias altas e pagamentos ou contas hospitalares. Os cuidados de
saúde eram gratuitos para todos.

Pode ser uma surpresa saber que a União Soviética tinha o dobro de
médicos em exercício por pessoa do que os EUA durante a maior parte de
sua existência, mas não deveria sê-lo. A educação também era totalmente
gratuita, desde o ensino básico até os cursos universitários de
pós-graduação. Os estudantes universitários soviéticos vinham
principalmente  da classe trabalhadora, mas nunca tiveram de pedir um
empréstimo a um banco que os tolhia para toda a vida.  O

Estado atribuía ajudas de custo para os estudantes, o que significava
que mais pessoas poderiam seguir os seus interesses, talentos e paixões
pelas ciências e artes. Este sistema produzia mais médicos e
enfermeiros, mas também engenheiros, matemáticos, cineastas, autores,
arquitetos e muito mais.

Todos os trabalhadores do bloco socialista também pertenciam a um
sindicato, que administrava os  benefícios do seu trabalho e os protegia
de gerentes excessivamente zelosos e  acidentes de trabalho. É difícil
imaginar isto nos Estados Unidos, mas os sindicatos nos países
socialistas exercem um enorme poder institucional no trabalho, na
economia e no governo. Na União Soviética, por exemplo, os sindicatos
podiam vetar unilateralmente medidas disciplinares, incluindo
despedimentos, emitidas pelos gerentes. Os trabalhadores poderiam
realmente disciplinar ou demitir os seus supervisores e gerentes
através de uma petição de recurso através dos seus sindicatos.

Mas talvez o mais impressionante de tudo para refletir 30 anos após seu
colapso seja o nível de desigualdade de rendimentos – ou a falta dela –
na União Soviética. Poucas características resumem melhor o medo e a
aversão à vida nos Estados Unidos do que a gigantesca diferença de
riqueza entre o 1% mais rico e os restantes cidadãos. “O 1% dos
americanos mais ricos tirou US $ 50 biliões dos 90% estantes – e isso
tornou os EUA menos seguros”, dizia uma manchete da revista /Time/ de
setembro de 2020 – e só piorou.

Enquanto os trabalhadores lutam para sobreviver, manter-se saudáveis e
manter as luzes acesas em casa, abutres corporativos como Jeff Bezos e
idiotas como Elon Musk – ambos bilionários – são apresentados pela
comunicação social tradicional como ícones de sucesso e inovação. Neste
sistema capitalista aparentemente COVID para sempre, eles tiveram
sucesso – em roubar os restantes, cegos.   Os salários dos CEO
corporativos em 2020 atingiram 351 vezes o de um trabalhador médio, de
acordo com um relatório do Economic Policy Institute, em agosto de 2021.
Não é preciso ser um génio para perceber que a enorme diferença de
riqueza levou a um maior risco de infeções por COVID e morte entre os
pobres e a classe trabalhadora, particularmente os trabalhadores negros
– embora, de qualquer modo, muitos estudos tenham provado essa ligação.

Apenas para dizer, a pouca desigualdade de renda que existia na União
Soviética é irreconhecível pelos padrões de hoje na América. Não havia
classe de milionários ou bilionários na União Soviética. As pessoas não
podiam possuir ações de empresas para as quais nunca trabalharam,
receber dividendos do trabalho árduo dos outros e chamar a isso
trabalho. Toda a gente que podia trabalhar trabalhava. Algumas pessoas
ganhavam mais do que outras, mas não da forma como estamos acostumados
num país capitalista.

Os que mais ganhavam na União Soviética eram professores e professores
universitários, cientistas e engenheiros, escritores, artistas e
administradores públicos. Eles podiam levar para casa até 1.500 rublos
por mês. Funcionários do governo ganhavam um pouco menos da metade
disso, cerca de 600 rublos. Os diretores industriais que lideravam
empresas particulares ganhavam algo entre 190 e 400 rublos por mês,
dependendo em grande parte do setor e do seu desempenho. Os operários
ganhavam entre 150 e 200 rublos. Por outras palavras, mesmo na sua forma
mais flagrante, o assalariado mais bem pago da União Soviética ganhava
apenas cerca de dez vezes a renda de um trabalhador comum.

Essa ampla igualdade social e económica teve outros impactos também. A
União Soviética e os países socialistas da Europa Oriental produziram
alguns dos filmes mais interessantes e inovadores da época – mesmo
quando os estúdios e cinemas americanos se recusavam a exibir a maioria
deles. Trabalhadores comuns enchiam os cinemas para assistir a tudo,
desde ficção científica como Solaris e Stalker até filmes de guerra
intensos como Vem e Vê – todos os três considerados hoje como alguns dos
melhores filmes de todos os tempos, mesmo nos Estados Unidos. Artistas
produziram arte única e original para os trabalhadores, e o apoio
estatal às artes garantiu que os trabalhadores tivessem acesso sem
precedentes para absorvê-la, desfrutar e aprender. A maioria das
famílias tinha extensas bibliotecas pessoais cheias de livros, revistas
e arte.

Não é surpresa que “os cidadãos soviéticos liam mais livros e viram mais
filmes do que qualquer outra pessoa no mundo”, de acordo com um
relatório da ONU da década de 1980.

É claro que o impacto da União Soviética e dos países socialistas se
estendeu muito além das suas próprias fronteiras. Quaisquer que sejam as
suas deficiências particulares ou erros de política, a União Soviética
serviu inquestionavelmente como um contrapeso ao imperialismo dos EUA.
Juntamente com os soviéticos, países como a República Democrática Alemã
(Alemanha Oriental) prestaram uma tremenda solidariedade material e
diplomática aos movimentos de libertação em todo o mundo, lutando contra
o colonialismo e a opressão nacional.

O socialismo em ação deu às pessoas oprimidas ao redor do mundo um
exemplo vivo de uma sociedade livre da exploração capitalista.
Combatentes da liberdade titânicos como Nelson Mandela e Fidel Castro
inspiraram-se – e apoiaram-se – no socialismo na União Soviética, assim
como inúmeros revolucionários, organizadores e ativistas negros nos
Estados Unidos.

Impulsionados por um desejo interminável de maior lucro, os países
capitalistas monopolistas aproveitaram o colapso do bloco socialista
como uma oportunidade para cravar os dentes na África, América Latina,
Médio Oriente e Ásia. Até a Jugoslávia, que se tinha separado fortemente
da União Soviética logo após a Segunda Guerra Mundial, viu-se dividida
pela NATO no rescaldo. As 'guerras eternas' em curso da chamada Guerra
ao Terror dos EUA são impensáveis sem o derrube do socialismo na União
Soviética.

É claro que a restauração do capitalismo mergulhou os trabalhadores da
Rússia e do Leste Europeu numa torrente de pobreza, doenças, fome,
desemprego, inflação e inúmeras outras misérias. Velhos preconceitos
nacionais e religiosos surgiram da paisagem infernal introduzida pelo
derrube do socialismo. Conflitos armados violentos eclodiram entre
nacionalidades e grupos étnicos que viveram fraternalmente durante quase
sete décadas sob o socialismo. Os odiosos movimentos nacionalistas
neonazis e de direita conheceram um ressurgimento maciço, já não mais
contido  pelo Estado socialista. Em termos inequívocos, o derrube do
socialismo na União Soviética tornou o mundo um lugar muito, muito pior.

O sistema socialista soviético não era perfeito. A partir da década de
1950, o Partido Comunista começou a  desviar-se do seu compromisso com o
marxismo-leninismo e a retroceder em partes importantes da sua prática.
As razões para esta mudança para o revisionismo e o oportunismo são
inúmeras  mas, com, o tempo uma tendência ideológica profundamente
comprometedora passou a predominar entre a liderança do partido
soviético. Muitos outros partidos comunistas na Europa Oriental e em
outros lugares seguiram o exemplo. A liderança do partido começou a
tolerar e eventualmente encorajar tendências económicas e sociais que
enfraqueceram o sistema socialista e fortaleceram as forças empenhadas
em trazer de volta o capitalismo. O ressurgimento e o rápido crescimento
da “segunda economia” do mercado negro ajudaram a lançar as bases para
os acontecimentos de 1991. As pressões externas dos países imperialistas
liderados pelos Estados Unidos também contribuíram para isso.

Felizmente, porém, a queda do socialismo na União Soviética não é o fim
da história. Enfrentando uma reviravolta na sorte dos socialistas em
toda a parte, alguns países seguiram um caminho diferente e resistiram à
onda do regresso do capitalismo. Cuba permanece forte, mesmo depois de
sofrer sob o bárbaro bloqueio económico dos EUA durante mais de seis
décadas. No ano passado, Cuba surpreendeu o mundo com o seu engenho e
eficiência no desenvolvimento da sua própria vacina contra a COVID e na
sua distribuição para mais de 90% das pessoas, proporcionando uma das
maiores taxas de vacinação do mundo. O Vietname, a República Popular
Democrática da Coreia e o Laos tiveram sucesso semelhante na luta contra
o COVID, protegendo os meios de subsistência do seu povo.

A China socialista e seu sucesso económico estrondoso e sem precedentes
destacam-se como uma parte particularmente importante dessa história.
Como aconteceu na União Soviética e no bloco oriental, o sinistro
fantasma da morte do capital acabou por visitar a China sob a forma dos
protestos de Tiananmen em 1989, que visavam claramente derrubar o
sistema socialista, como protestos semelhantes tinham feito noutros
lugares. Uma fação do Partido Comunista até apoiou esses objetivos. No
momento decisivo, porém, o partido fez a coisa certa e  deu um murro na
mesa. Usou o Estado socialista para impedir o retorno ao esquecimento e
à miséria capitalistas. Por quaisquer enganos e erros que esses partidos
tenham cometido nos últimos 30 anos, a sua decisão de continuar a
construir o socialismo tornou a vida melhor para a grande maioria dos
trabalhadores, tanto nos seus países como em todo o mundo.

À queima-roupa, o colapso da União Soviética e do bloco socialista foi
uma catástrofe para a classe operária em todo o mundo. Trabalhadores em
países como os Estados Unidos podem não ter visto dessa forma na época,
mas o reinado de 30 anos  do capitalismo monopolista sem freio tornou a
vida pior para todos nós.

Entre a carnificina e a tortura de guerras intermináveis por petróleo,
crise económica após crise económica, crimes desenfreados e violência
racista da polícia, os eventos climáticos apocalípticos causados pelas
mudanças climáticas e a disseminação explosiva da COVID-19, está muito
claro que o dia 26 dezembro  de 1991 não representou “o fim da
história”, como escreveu o famoso académico liberal Francis Fukuyama. A
mesma luta de classes que levou trabalhadores, soldados, marinheiros,
camponeses e oprimidos a derrubar uma monarquia secular na Rússia
continua em 2022.

As pessoas comprometidas em acabar com a nossa miséria coletiva e criar
um mundo melhor para nós e os nossos filhos deveriam olhar para a
experiência soviética e aprender com ela. O socialismo não é um sistema
elaborado cuidadosamente no cérebro de intelectuais e académicos, nem é
um sumário de ciência política. Trabalhadores e oprimidos de muitas
nações construíram e continuam a construir o socialismo. Ele existe,
passado e presente, para que aprendamos com as suas vitórias e derrotas,
na esperança de construir um mundo futuro no qual valha a pena viver.

In
PELO SOCIALISMO
https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/reflexoes-sobre-o-30o-aniversario-do-185096
21/2/2022

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Os trabalhadores estão em marcha – a nova guerra de classes da América

 


    – Trabalhadores explorados dos EUA estão a levantar-se por todo o
    país e a agir
    – Mas tais informações não chegam aos media que se proclamam como
    "de referência"


    Chris Hedges [*]

Há uma última esperança para os Estados Unidos. E não está nas urnas de
voto. Está na organização sindical e greves de trabalhadores da Amazon,
Starbucks, Uber, Lyft, John Deere, Kellogg, na fábrica Special Metals em
Huntington, West Virginia, propriedade da Berkshire Hathaway, na
Northwest Carpenters Union, na Kroger, bem como de professores em
Chicago, West Virginia, Oklahoma e Arizona, trabalhadores de fast-food,
centenas de enfermeiras em Worcester, Massachusetts, e os membros da
International Alliance of Theatrical Stage Employees.

Trabalhadores organizados, muitas vezes desafiando as suas tímidas
lideranças sindicais, estão em marcha pelos Estados Unidos. Mais de
quatro milhões de trabalhadores, cerca de 3% da força de trabalho,
principalmente de serviços de hotelaria e alimentação, saúde e
assistência social, transporte, habitação e serviços públicos,
abandonaram o trabalho, rejeitando salários baixos e condições de
trabalho punitivas e arriscadas.

Há um consenso crescente – 68% numa sondagem recente da Gallup
<https://news.gallup.com/poll/354455/approval-labor-unions-highest-point-1965.aspx>, com este número subindo para 77% entre os 18 e 34 anos – de que a única maneira que resta para alterar o equilíbrio de poder e forçar concessões da classe capitalista dominante é mobilizar e fazer greve, embora apenas 9% da força de trabalho dos EUA seja sindicalizada. Esqueçam os Democratas preocupados com questões sociais. É uma guerra de classes.

A questão, como Karl Popper nos lembrou, não é como fazer com que
pessoas boas governem. A maioria dos que são atraídos pelo poder,
figuras como Joe Biden, são na melhor das hipóteses medíocres e muitos,
como Dick Cheney, Donald Trump ou Mike Pompeo, são venais. A questão é,
sim, como organizamos as instituições para evitar que líderes
incompetentes ou ruins nos prejudiquem. Como podemos colocar poder
contra poder?

O Partido Democrata não promoverá o tipo de reforma radical do New Deal
que na década de 1930 tanto evitou o fascismo como o comunismo. O seu
teatro político vazio, que remonta ao governo Clinton, estava em plena
exibição em Atlanta quando Biden pediu a revogação da obstrução à
aprovação do Freedom to Vote Act
<https://www.brennancenter.org/our-work/research-reports/freedom-vote-act> e o John Lewis Voting Rights Advancement Act <https://www.brennancenter.org/our-work/analysis-opinion/john-lewis-voting-rights-advancement-act-introduced-senate-brennan-center>, sabendo que suas hipóteses de êxito eram zero. O candidato democrata a governador da Geórgia, Stacey Abrams, juntamente com vários grupos de direitos de voto do Estado, boicotou o evento numa censura muito pública. Eles estavam perfeitamente cientes da manobra cínica de Biden. Quando os Democratas eram minoria, agarravam-se à obstrução como um bote salva-vidas. O então senador Barack Obama, juntamente com outros Democratas, fez campanha para que ele permanecesse no cargo. E há alguns dias, a liderança Democrata usou a obstrução para bloquear a legislação proposta pelo senador Ted Cruz.

Os democratas têm sido parceiros plenos no desmantelamento da nossa
democracia, recusando-se a banir o /“dark money”/ (dinheiro de origem
secreta, para fins políticos nos EUA, legal e isento de impostos) e
dinheiro das grandes empresas nos processos eleitorais e governo, como
Obama fez por meio de ações executivas presidenciais, agências de
"orientação" e outras questões de regulação do /“dark money”/
<https://cei.org/sites/default/files/Wayne%20Crews%20-%20Mapping%20Washington%27s%20Lawlessness.pdf> que ignoram o Congresso. Os Democratas, que ajudaram a lançar e perpetuar as nossas guerras sem fim, também foram co-arquitetos de acordos comerciais como o NAFTA, vigilância ampliada sobre os cidadãos, polícia militarizada, o maior sistema prisional do mundo e uma série de leis antiterrorismo, como a Special Administrative Measures (SAM) que retira quase todos os direitos, incluindo o devido processo legal e privilégio advogado-cliente, para permitir que suspeitos sejam condenados e presos com provas secretas que eles e seus advogados não têm permissão para ver.

O impressionante desperdício de recursos para fins militares – 777,7 mil
milhões de dólares num ano – aprovado no Senado com 89 votos contra 10 e
na Câmara de Representantes com 363 votos contra 70, juntamente com os
80 mil milhões gastos anualmente nas agências de serviços secretos,
tornou os militares e os serviços secretos, muitos administrados por
empresas privadas, como a Booz Allen Hamilton, quase omnipotentes. Os
democratas há muito tempo que abandonaram trabalhadores e sindicatos. A
governadora Democrata do Maine, Janet Mills, por exemplo, vetou um
projeto de lei
<https://whdh.com/news/maine-governor-vetoes-bill-to-allow-farm-workers-to-unionize/> que permitiria que os trabalhadores agrícolas no seu Estado se sindicalizassem. Em /todas/ as grandes questões estruturais, não há diferença entre os republicanos e os democratas.

Quanto mais tempo o Partido Democrata passar sem realizar reformas reais
para melhorar as dificuldades económicas, exacerbadas pelas altas taxas
de inflação, mais alimenta a frustração de muitos de seus apoiantes e a
apatia generalizada (há 80 milhões de eleitores, um terço do eleitorado,
que não vota) e o ódio às elites "liberais" alimentadas pela seita de
Donald Trump no Partido Republicano. O pacote para infraestruturas
designado, “Build Back Better”, quando se leem as letras miúdas, é mais
uma infusão de milhares de milhões de dólares do governo para as contas
bancárias das grandes empresas. Isso não deve surpreender ninguém, dado
quem são elas que financiam e controlam o Partido Democrata
<https://www.vox.com/recode/21529490/silicon-valley-millionaires-top-donors-2020-election-donald-trump>.

O sofrimento e a instabilidade que assola pelo menos metade do país que
vive em dificuldades financeiras, alienado e privado de direitos,
perseguido por bancos, empresas de cartão de crédito, empréstimos
estudantis, serviços públicos privatizados, economia de empregos
precários, sistema de saúde com fins lucrativos de que resultou um
quarto de todas as mortes mundiais [1] <#nt> por Covid-19 – embora
sejamos menos de 5% da população mundial – e empregadores que pagam aos
trabalhadores salários de escravos e não fornecem benefícios, está a piorar.

Biden presidiu à perda de benefícios alargados no desemprego,
assistência ao aluguer das habitações, tolerância para empréstimos
estudantis, cheques de emergência, moratórias sobre despejos e agora o
fim do alargamento dos créditos fiscais para crianças, tudo à medida que
a pandemia aumentava de novo. O lidar com a pandemia, do ponto de vista
sanitário e económico, é mais um sinal da profunda decadência do
império. Os americanos que não têm seguro ou que são cobertos pelo
Medicare, geralmente trabalhadores da linha de frente [2] <#nt>, não são
reembolsados pelos testes de Covid que compram sem receita.

O Supremo Tribunal – cinco dos juízes foram nomeados por presidentes que
perderam no voto popular – também bloqueou a administração Biden
<https://www.supremecourt.gov/opinions/21pdf/21a244_hgci.pdf> para impor
um mandato para vacinas ou testes em grandes empresas. No horizonte,
alimentadas pelas consequências económicas da pandemia, estão grandes
incumprimentos no pagamento de empréstimos e outra crise financeira.
Quanto pior as coisas ficam, mais desacreditado se torna o Partido
Democrata e seus valores democráticos “liberais” e mais prosperam os
fascistas cristãos à espreita nos bastidores.

Como a história provou repetidamente, os trabalhadores organizados,
aliados a um partido político dedicado aos seus interesses, são a melhor
ferramenta para se oporem aos ricos. Nick French, num artigo na
/Jacobin,/
<https://jacobinmag.com/2022/01/class-struggle-swedish-welfare-state-social-democracy> baseia-se no trabalho do sociólogo Walter Korpi, que examinou a ascensão do Estado de bem-estar sueco no seu livro ‘/The Democratic Class Struggle/ <https://www.bookdepository.com/Democratic-Class-Struggle-Walter-Korpi/9781138338487>. Korpi detalhou como os trabalhadores suecos "construíram um movimento sindical forte e bem organizado nas indústrias e unido numa federação sindical central, a /Landsorganisationen/ (LO), que trabalhou em estreita colaboração com o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores da Suécia (SAP)”.

A batalha para construir o Estado de bem-estar exigia organização – 76%
dos trabalhadores eram sindicalizados – ondas de greves, atividade
sindicalista militante e pressão política do SAP. "Medida em termos do
número de dias de trabalho por trabalhador", escreve Korpi, "do
princípio do século até ao início da década de 1930, a Suécia teve o
mais alto nível de greves e bloqueios entre as nações ocidentais". De
1900 a 1913, como observa French, "houve 1 286 dias de paragem devido a
greves por mil trabalhadores na Suécia. De 1919-38, houve 1 448.” (Em
comparação, nos Estados Unidos no ano passado, de acordo com dados do
National Bureau of Economic Research, houve menos de 3,7 dias de greve
<https://data.bls.gov/timeseries/WSU001> por mil trabalhadores
<https://www.bls.gov/news.release/empsit.t01.htm>.

Há poucos terceiros partidos, incluindo o Partido Verde
<https://www.gp.org/>, a Alternativa Socialista
<https://www.socialistalternative.org/> e o Partido Popular
<https://peoplesparty.org/>, que oferecem esta oportunidade [3] <#nt>.
Mas os Democratas não vão nos salvar. Eles venderam-se à classe
multimilionária. Só nós nos salvaremos.

Os sindicatos rompem as divisões políticas, reunindo trabalhadores de
todas as convicções políticas para combater um inimigo oligárquico e
corporativo comum. Uma vez que os trabalhadores começam a exercer o
poder e a extrair reivindicações à classe dominante, a luta educa os
coletivos sobre as reais configurações de poder e mitiga os sentimentos
de impotência que levaram muitos aos braços dos neofascistas. Por isso,
capitular ao Partido Democrata, que traiu mulheres e homens
trabalhadores, é um erro terrível.

A pilhagem voraz das elites, muitas das quais financiam o Partido
Democrata, acelerou desde o colapso financeiro de 2008 e a pandemia. Os
bancos da Wall Street registaram lucros recorde em 2021. Como observou o
/Financial Times,/ lucraram com os empréstimos do FED e com fusões e
aquisições. Alavancados com cerca de 5 milhões de milhões de dólares
<https://news.yahoo.com/quantitative-tightening-federal-reserve-9-trillion-balance-sheet-113743366.html> de gastos do FED desde o início da pandemia, lavaram os seus lucros, como Matt Taibbi salienta, em enormes bónus salariais e recompras de ações.

"A maior parte dessa nova riqueza está sendo convertida em remunerações
para um punhado de executivos", escreve Taibbi. “As recompras de ações
também foram excessivas nas empresas de armamento
<https://www.forbes.com/sites/charlestiefer/2021/05/10/defense-department-payment-plan-enriching-contractors-who-are-upping-stock-buybacks/?sh=2b0fc12a57f9>, produtos farmacêuticos <https://prospect.org/power/pharma-companies-spend-billions-more-on-stock-buybacks-than-developing-drugs/>, petróleo e gás <https://fortune.com/2021/07/30/oil-company-profits-q2-2021/>, tendo tido todas também o seu segundo ano consecutivo recorde em lucros vertiginosos. Há agora cerca de 745 multimilionários nos EUA, que coletivamente viram seu património líquido crescer cerca de 2,1 milhões de milhões para 5 milhões de milhões desde março de 2020, com quase todo este aumento de riqueza vinculado ao balanço patrimonial do FED”.

A Kroger é típica. A corporação, que opera cerca de 2 800 lojas sob
diferentes nomes, incluindo Baker's, City Market, Dillons, Food 4 Less,
Foods Co., Fred Meyer, Fry's, Gerbes, Jay C Food Store, King Soopers,
Mariano's, Metro Market, Pay-Less Super Markets, Pick'n Save, QFC,
Ralphs, Ruler e Smith's Food and Drug, tiveram US$4,1 mil milhões
<https://ir.kroger.com/CorporateProfile/press-releases/press-release/2021/Kroger-Delivers-Strong-Fourth-Quarter-and-Fiscal-Year-2020-Results/default.aspx> de lucros em 2020. No final do terceiro trimestre de 2021, tinham US$2,28 mil milhões <https://ir.kroger.com/CorporateProfile/financial-performance/sec-filings/sec-filings-details/default.aspx?FilingId=15396152> em caixa, um aumento de US$399 milhões <https://www.marketwatch.com/investing/stock/kr/financials/balance-sheet> no primeiro trimestre de 2020. O CEO da Kroger, Rodney McMullen, ganhou mais de US$22 milhões <https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-05-13/kroger-blasted-for-ending-hazard-pay-gave-its-ceo-22-million>, quase duplicando os US$12 milhões <https://www.bizjournals.com/cincinnati/news/2019/05/08/kroger-ceo-gets-a-big-pay-hike.html> que ganhou em 2018. Isso é mais de 900 vezes o salário do trabalhador médio da Kroger. A Kroger nos três primeiros trimestres de 2021 também gastou cerca de 1,3 mil milhões em recompras de ações.

"A Kroger é para 86% de seus trabalhadores a sua única fonte de
rendimento", revelou a Economic Roundtable numa sondagem
<https://economicrt.org/publication/hungry-at-the-table/> aos
trabalhadores da empresa. “Trabalhar a tempo integral para ganhar um
salário mínimo que compensasse as necessidades básicas, exigiria que a
Kroger pagasse 22 dólares por hora para um salário anual de 45 760
dólares. Os ganhos médios anuais dos trabalhadores da Kroger, no
entanto, equivalem a 29 655 dólares. Isto é 16 105 dólares abaixo do
necessário para pagar as necessidades básicas. Mais de dois terços dos
trabalhadores da Kroger lutam pela sobrevivência devido aos baixos
salários e horários de trabalho a tempo parcial. Nove em cada dez
trabalhadores da Kroger relatam que os seus salários não aumentaram
tanto quanto o aumento das despesas básicas, como alimentação e
habitação. Desde 1990, os salários dos atendedores mais experientes na
parte de alimentação da Kroger caíram 22% (ajustados pela inflação) nas
três regiões pesquisadas. Em todo o setor de supermercados, 29% da força
de trabalho está abaixo ou perto do limite federal de pobreza”.

Mais de um terço (36%) dos 10 000 funcionários das lojas da Kroger no
sul da Califórnia, Colorado e Washington disseram estar preocupados com
o despedimento. Mais de três quartos (78%) têm insegurança alimentar. Um
em cada sete trabalhadores da Kroger ficaram sem-abrigo no ano passado.
Quase 1 em cada 5 (18%) trabalhadores da Kroger disseram que não pagaram
a hipoteca do mês anterior a tempo.

Mais de 8 000 funcionários sindicalizados da King Soopers da Kroger
entraram em greve
<https://www.businessinsider.com/kroger-supermarket-workers-strike-denver-pay-benefits-safe-workplace-2022-1> em 12 de janeiro no Colorado, exigindo salários mais altos e melhores condições de trabalho da maior rede de supermercados e o quarto maior empregador privado do país. É aqui que se encontra uma das linhas de frente emergentes da luta de classes. É onde devemos investir nosso tempo e energia.

Nossa democracia capitalista foi desde o início manipulada contra nós. O
Colégio Eleitoral permite que candidatos presidenciais como George W.
Bush e Trump percam no voto popular, mas assumam o cargo. A atribuição
de dois senadores por Estado, independentemente da população do Estado,
significa que 62 senadores representam um quarto da população, enquanto
seis representam outro quarto. Os pais fundadores marginalizaram e
oprimiram mulheres, nativos americanos, afro-americanos e homens sem
propriedade. A maioria dos cidadãos foi intencionalmente excluída do
processo democrático pelos governantes aristocratas brancos do sexo
masculino, a maioria deles proprietários de escravos.

Todas as aberturas na nossa democracia foram o resultado de uma
prolongada luta popular. Centenas de trabalhadores foram assassinados,
milhares ficaram feridos, dezenas de milhares foram colocados na lista
negra nas nossas guerras trabalhistas, as mais sangrentas de qualquer
país industrializado. Abolicionistas, sufragistas, sindicalistas,
jornalistas militantes e os que nos movimentos contra a guerra e pelos
direitos civis abriram nosso espaço democrático. Esses movimentos
radicais foram reprimidos e impiedosamente desmantelados no início do
século XX em nome do anti-comunismo. Eles foram novamente alvo das
elites corporativas após o surgimento de novos movimentos de massa na
década de 1930.

Esses movimentos populares, que novamente ressurgiram nos anos 1960,
moveram-nos, passo a passo, sangrentos, em direção à igualdade e à
justiça social. A maioria dos ganhos obtidos na década de 1960 foi
revertida sob o ataque do neoliberalismo, desregulamentação e um sistema
corrupto de financiamento de campanhas legalizado por decisões judiciais
como a Citizens United, que permite aos ricos e grandes empresas
financiarem eleições para selecionar líderes políticos e impor a
legislação. A encarnação moderna dos barões ladrões do século XIX, como
Jeff Bezos e Elon Musk, cada um valendo cerca de 200 mil milhões de
dólares, convoca-nos às nossas raízes radicais.

A luta de classes define a maior parte da história humana. Marx acertou.
Não é uma história nova. Os ricos, ao longo da história, encontraram
maneiras de subjugar e tornar a subjugar as massas. E as massas, ao
longo da história, despertaram ciclicamente para se livrarem de suas
correntes.

NT
[1] Estes valores têm variado no tempo. Dados recentes apontam para
cerca de 16 a 17%.
[2] Trabalhadores industriais e de serviços que enfrentam uma variedade
de riscos de saúde nos seus locais de trabalho.
[3] V. também https://www.workers.org/ <https://www.workers.org/>


        18/Janeiro/2022


    [*] Jornalista vencedor do Prémio Pulitzer e apresentador do RT On
    Contact, uma série de entrevistas semanais sobre política externa
    dos EUA, realidades económicas e liberdades civis na sociedade
    americana. É autor de 14 livros
    <https://www.bookdepository.com/search?searchTerm=F.%20William%20Engdahl&search=Find+book>, incluindo vários best-sellers do /New York Times./

Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/eua/hedges_18jan22.html#asterisco
19/2/2022

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Putin’s Ukrainian Judo Revisited

 



*By Dmitry Orlov and posted with permission*

Denis Pushilin, leader of Donetsk, has just ordered a full evacuation
<https://youtu.be/-xXm_26QS-0>. Leonid Pasechnik, leader of Lugansk, did
the same <https://youtu.be/m17NHEW-4mQ>. In doing so, they did exactly
as I expected, and as I predicted. For all those of you who think that
Putin is a mystery wrapped in an enigma, perhaps you should avoid
thinking and just read my articles!

A bit less than a year ago, on April 18, 2021, I published an article
titled “Putin’s Ukrainian Judo” which was reposted on ZeroHedge
<https://www.zerohedge.com/geopolitical/putins-ukrainian-judo> and
TheSaker <https://thesaker.is/putins-ukrainian-judo/>. I then translated
it into Russian and published it on Aftersock.info
<https://aftershock.news/?q=node/967876> where it was positively savaged
for being defeatist. The reason I bring it up now is that in that
article I explained that evacuation was the only winning move for the
Russian side.

In that article I wrote:

The Ukrainian military has been massing troops and armor along the line
of separation while the Russian military has pulled up its forces to
their side of the border. Shelling, sniper fire and other provocations
from the Ukrainian side are intensifying, with the hope of provoking the
Russians into moving forces onto Ukrainian territory, thus allowing the
collective West to shout “Aha! Russian aggression!” Then they could put
a stop to Nord Stream II pipeline, scoring a major geopolitical victory
for Washington and follow that up with plenty of other belligerent moves
designed to hurt Russia politically and economically.

For the Russians, there are no good choices that are obvious. Not
responding to Ukrainian provocations and doing nothing while they shell
and invade the cities of Donetsk and Lugansk, killing Russian citizens
who live there, would make Russia look weak, undermine the Russian
government’s position domestically and cost it a great deal of
geopolitical capital internationally. Responding to Ukrainian
provocations with overwhelming military force and crushing the Ukrainian
military as was done in Georgia in 2008 would be popular domestically
but could potentially lead to a major escalation and possibly an all-out
war with NATO. Even if militarily the conflict is contained and NATO
forces sit it out, as they did in Georgia, the political ramifications
would cause much damage to the Russian economy through tightened
sanctions and disruptions to international trade.

Those being the obvious bad choices, what are the obvious good ones, if
any? Here, we have to pay careful attention to the official
pronouncements Putin has made over the years, and to take them as face
value. First, he said that Russia does not need any more territory; it
has all the land it could ever want. Second, he said that Russia will
follow the path of maximum liberalization in granting citizenship to
compatriots and that, in turn, the well-being of Russia’s citizens is a
top priority. Third, he said that resolving the conflict in eastern
Ukraine through military means is unacceptable. Given these constraints,
what courses of action remain open?

The answer, I believe, is obvious: evacuation. There are around 3.2
million residents in Donetsk People’s Republic and 1.4 million in
Lugansk People’s Republic, for a total of some 4.6 million residents.
This may seem like a huge number, but it’s moderate by the scale of
World War II evacuations. Keep in mind that Russia has already absorbed
over a million Ukrainian migrants and refugees without much of a
problem. Also, Russia is currently experiencing a major labor shortage,
and an infusion of able-bodied Russians would be most welcome.

Domestically, the evacuation would likely be quite popular: Russia is
doing right by its own people by pulling them out of harm’s way. The
patriotic base would be energized and the already very active Russian
volunteer movement would swing into action to assist the Emergencies
Ministry in helping move and resettle the evacuees. The elections that
are to take place later this year would turn into a nationwide welcoming
party for several million new voters. The Donbass evacuation could pave
the way for other waves of repatriation that are likely to follow. There
are some 20 million Russians scattered throughout the world, and as the
world outside Russia plunges deeper and deeper into resource scarcity
they too will want to come home. While they may presently be reluctant
to do so, seeing the positive example of how the Donbass evacuees are
treated could help change their minds.

The negative optics of surrendering territory can be countered by not
surrendering any territory. As a guarantor of the Minsk Agreements,
Russia must refuse to surrender the Donbass to the Ukrainian government
until it fulfills the terms of these agreements, which it has shown no
intention of doing for seven years now and which it has recently
repudiated altogether. It is important to note that the Russian military
can shoot straight across all of Donbass without setting foot on
Ukrainian soil. Should the Ukrainian forces attempt to enter Donbass,
they will be dealt with as shown in this instructional video
<https://www.youtube.com/watch?v=4kUmPlv6Cbw>. Note that the maximum
range of the Tornado-G system shown in the video is 120km.

And should the Ukrainians care to respond by attacking Russian
territory, another one of Putin’s pronouncements helps us understand
what would happen next: if attacked, Russia will respond not just
against the attackers but also against the centers of decision-making
responsible for the attack. The Ukrainian command in Kiev, as well as
its NATO advisers, would probably keep this statement in mind when
considering their steps.

The Donbass evacuation should resonate rather well internationally. It
would be a typical Putin judo move knocking NATO and the US State
Department off-balance. Since this would be a large humanitarian
mission, it would be ridiculous to attempt to portray it as “Russian
aggression.” On the other hand, Russia would be quite within its rights
to issue stern warnings that any attempt to interfere with the
evacuation or to launch provocations during the evacuation process would
be dealt with very harshly, freeing Russia’s hands in dispatching to God
the berserkers from the Ukraine’s Nazi battalions, some of whom don’t
particularly like to follow orders.

The West would be left with the following status quo. The Donbass is
empty of residents but off-limits to them or to the Ukrainians. The
evacuation would in no sense change the standing or the negotiating
position of the evacuees and their representatives vis-à-vis the Minsk
agreements, locking this situation in place until Kiev undertakes
constitutional reform, becomes a federation and grants full autonomy to
Donbass, or until the Ukrainian state ceases to exist and is
partitioned. The Ukraine would be unable to join NATO (a pipe dream
which it has stupidly voted into its constitution) since this would
violate the NATO charter, given that it does not control its own territory.

Further sanctions against Russia would become even more difficult to
justify, since it would be untenable to accuse it of aggression for
undertaking a humanitarian mission to protect its own citizens or for
carrying out its responsibilities as a guarantor of the Minsk
agreements. The Donbass would remain as a stalker zone roamed by Russian
battlefield robots sniping Ukrainian marauders, with the odd busload of
schoolchildren there on a field trip to lay flowers on the graves of
their ancestors. Its ruined Soviet-era buildings, not made any newer by
three decades of Ukrainian abuse and neglect, will bear silent witness
to the perpetual ignominy of the failed Ukrainian state.

History is as often driven by accident as by logic, but since we cannot
predict accidents, logic is the only tool we have in trying to guess the
shape of the future. Rephrasing Voltaire, this, then, is the best that
we can expect to happen in this the best of all possible worlds.

Em
THE SAKER
http://thesaker.is/putins-ukrainian-judo-revisited/
18/2/2022

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022



Bélgica aprueba la jornada laboral de cuatro días


Tras una serie de reformas en el mercado laboral anunciadas el martes,
los trabajadores en Bélgica pronto podrán elegir la semana laboral de
cuatro días.

El paquete de reformas acordado por el Gobierno de coalición
multipartidista del país también otorgará a los trabajadores el derecho
a apagar los dispositivos de trabajo e ignorar los mensajes relacionados
con el trabajo fuera del horario laboral sin temor a represalias.Los
trabajadores de trabajos temporales también recibirán protecciones
legales más fuertes bajo las nuevas reglas, mientras que los empleados
de tiempo completo podrán trabajar en horarios flexibles bajo
demanda.Sin embargo, poner las reformas en ley podría llevar meses, ya
que el proyecto de ley debe pasar varias lecturas por parte de los
legisladores federales antes de ser promulgado.El borrador del paquete
de reformas acordado por el Gobierno federal del país otorgará a los
empleados la posibilidad de solicitar una semana de cuatro días."Esto
tiene que hacerse a petición del empleado, con el empleador dando
razones sólidas para cualquier negativa", dijo el ministro de Trabajo
belga, Pierre-Yves Dermagne, en la conferencia de prensa.Un portavoz del
Gobierno confirmó a Euronews Next que los empleados podrían solicitar
trabajar cuatro días a la semana durante un período de seis meses.
Después de eso, podían optar por continuar con el arreglo o volver a una
semana de cinco días sin consecuencias negativas.Bajo el sistema belga,
los empleados podrían condensar la semana actual de cinco días en cuatro
días. En la práctica, esto significa mantener una semana laboral de 38
horas, con un día libre adicional para compensar los días de trabajo más
largos.Los trabajadores también podrán solicitar horarios de trabajo
variables. El período mínimo de aviso para los turnos también está
cambiando, y ahora se requiere que las empresas proporcionen los
horarios con al menos siete días de anticipación.En enero, a los
funcionarios que trabajaban para el Gobierno federal de Bélgica se les
otorgó el derecho a desconectarse, lo que les permitió apagar los
dispositivos de trabajo e ignorar los mensajes fuera del horario laboral
sin sufrir represalias por parte de los jefes.Ahora todos los
trabajadores belgas, incluidos los del sector privado, recibirán el
mismo derecho, dijo Dermagne el martes.En la práctica, la nueva ley se
aplicará a todos los empleadores con más de 20 empleados. Se espera que
los empleadores negocien con los sindicatos para incluir el derecho a
desconectarse en los convenios colectivos.El paquete de reformas también
apunta a la economía de conciertos, con trabajadores de plataformas como
Uber, Deliveroo y Just Eat Takeaway recibiendo seguro contra lesiones
relacionadas con el trabajo y reglas más claras que definen quién es y
quién no es autónomo.Si alguien quiere trabajar como autónomo, puede
hacerlo y tendrá más libertad, dice Frank Vandenbroucke, ministro de
Asuntos Sociales de BélgicaLas nuevas reformas laborales de Bélgica se
suman a una propuesta de directiva de la Unión Europea que establece
cinco criterios para juzgar si un trabajador por encargo debe ser
considerado como empleado o no.En Bélgica, los trabajadores de
plataformas que cumplan con tres de los ocho criterios posibles,
incluidos aquellos cuyo rendimiento laboral se supervisa, que no pueden
rechazar trabajos o cuyo salario lo decide la empresa, ahora se
considerarán empleados con derecho a licencia por enfermedad y
vacaciones pagadas.Las reglas no impiden que nadie trabaje como autónomo
o contratista, dijo el ministro de Asuntos Sociales, Frank
Vandenbroucke. “Si alguien quiere trabajar por cuenta propia, puede
hacerlo y tendrá más autonomía”, dijo.

Em
SPUTNIK
https://mundo.sputniknews.com/20220217/belgica-aprueba-la-jornada-laboral-de-cuatro-dias--1121790949.html
17/2/2022

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A atualidade da crítica anti-imperialista

 
 

POR
Luís Eduardo Fernandes

A crítica ao imperialismo perdeu espaço no debate da esquerda
internacional a partir da década de 90, a ponto de alguns intelectuais
progressistas insinuarem que o conceito esteja ultrapassado. Eles estão
errados. O imperialismo continua vivo, e pensá-lo rigorosamente é mais
urgente que nunca.

“O imperialismo estadunidense deve ser derrotado”, “o golpe de 2016
serviu aos interesses imperialistas” ou “a China está virando um país
imperialista”. São frases frequentemente ouvidas nos espaços políticos e
nas redes sociais. De fato, nos últimos anos o interesse por denunciar e
estudar as novas formas imperialistas ganhou maior espaço no Brasil.
Quem sabe, a conjuntura de ascensão da extrema direita no mundo, golpes
políticos em países periféricos e radicalização do neoliberalismo tenha
contribuído para esse crescente interesse.

Logo após a queda do muro de Berlim, o economista indiano Prabhat
Patnaik realizou uma crítica à esquerda ocidental pelo abandono da
categoria “imperialismo”. Patnaik perguntava-se se o fenômeno da chamada
“globalização” não seria, na verdade, a expressão mais pura e
desenvolvida da dominação imperialista e quão grave era à esquerda, em
especial marxista, abandonar o imperialismo como categoria teórica – com
consequências desastrosas para a estratégia política.

O economista indiano estava certo. Pouco a pouco, principalmente após as
primeiras experiências nesse século de governos populares na América
Latina, com graus diferentes de radicalidade no enfrentamento ao
neoliberal e ao imperialismo, os movimentos sociais, partidos de
esquerda, militantes sindicais e intelectuais progressistas buscam
retomar a centralidade da reflexão anti-imperialista. Apesar da
contribuição teórica e política inestimável de líderes revolucionários
do século XX – como Lênin, Hilferding, Bukharin, Rosa Luxemburgo,
Trotsky e outros – assim como as profundas transformações do capitalismo
contemporâneo, o imperialismo também não é exatamente o mesmo.


    Para além das vulgarizações

Essa saudável retomada, portanto, sem o devido aprofundamento teórico e
contato com as lutas populares em curso, precisa se precaver de dois
erros comuns, que rondam o imaginário do “senso comum” progressista: 1)
o imperialismo se reduziria a uma questão “geopolítica”, e até mesmo a
“teorias da conspiração” para explicar o poder concentrado de algumas
nações em detrimento de outras; por outro lado, 2) o “economicismo”, que
enxergaria no imperialismo apenas um fenômeno econômico vinculado a
exportação de capitais dos países mais ricos para os mais pobres e,
consequentemente, a exploração dos primeiros sobre os últimos.

Há, certamente, um elemento de verdade nas duas interpretações, por mais
unilaterais e simplistas que sejam. No caso da primeira, trata-se da
constatação correta no sistema interestatal global: a aguda desigualdade
no exercício do poder e das soberanias nacionais entre os países. Por
sua vez, a segunda remete a uma leitura limitada da crítica de Lenin ao
imperialismo. Um dos principais objetos da crítica madura do
revolucionário russo, que procurou captar as múltiplas determinações do
fenômeno, relacionando-o com a nova fase da história econômica do
capitalismo: a era monopólica.

Em Imperialismo, fase superior do capitalismo//encontramos uma análise
materialista rigorosa das mudanças, então recentes, no modo de produção
capitalista (a consolidação do capitalismo monopolista e o
desenvolvimento do capital financeiro) e suas consequências no
comportamento e orientação dos Estados capitalistas centrais, nas
disputas interestatais (a política imperialista, a partilha do mundo em
áreas de influência, divisão centro-periferia etc.) e na dinâmica das
classes sociais (oligarquia financeira e aristocracia operária). Ou
seja, o imperialismo é um fenômeno mundial que articula tendências no
campo econômico, político e militar.

Esse preâmbulo é fundamental para compreendermos o imperialismo como um
dos principais elementos da economia política do capitalismo
monopolista. O capitalismo, ao contrário de outros modos de produção,
depende cada vez mais de sua expansão através do mercado mundial. O
desenvolvimento extremamente desigual não é apenas sentido no nível
local e nacional, mas também internacionalmente. Essa desigualdade
econômica e política se expressa por meio de diversos mecanismos que
drenam ou transferem riquezas dos chamados países periféricos para os
países centrais.

*A reinvenção do sistema imperialista*

Em sua época clássica, o imperialismo se materializou na política
neocolonialista e na partilha do mundo, de acordo com os interesses das
potências industriais. A exportação de capitais sobre-acumulados e a
apropriação de riquezas e lucros, originados na periferia, eram
legitimadas por mecanismos institucionais extra econômicos do sistema
neocolonial. As revoluções na Rússia, China e os movimentos de
libertação nacional no sul global, principalmente no pós-1945, impuseram
uma derrota parcial ao imperialismo em sua faceta neocolonial.

Essa derrota não foi definitiva. O Império Britânico deu lugar aos EUA
na liderança do sistema imperialista. A liderança estadunidense, como
bem sintetizou Ellen Wood, moldou o “Império do Capital”. Assim, as
desigualdades entre países, no pós-1945, passaram a se legitimar quase
exclusivamente através das relações de mercado. O imperialismo, como nos
ensinou Harry Magdoff, não é uma matéria de escolha para a sociedade
capitalista: é o meio de vida dessa sociedade. A ascensão dos EUA
representou a maturidade do desenvolvimento do capitalismo monopolista.
No final dos anos de 1970, diante do avanço de diversos movimentos
contestatórios internos e da concorrência entre transnacionais
estadunidenses, alemãs e japonesas, as lógicas imperialista e
capitalista aprofundaram mudanças em suas estratégias e padrões de
acumulação.

Além da expansão do complexo industrial-militar e suas centenas de bases
em todos os continentes, como uma forma de incorporar parte do excedente
econômico sobreacumulado nos EUA e em outras potências, a atrofia dos
sistemas democráticos e a hierarquização monetária mediante à hegemonia
do dólar foram parte desse remodelamento. Os sistemas financeiros,
centralizados no eixo anglo-saxão (Wall Street e London City), passaram
a ser os grandes detentores e financiadores de títulos e outros papéis
“fictícios”, gerando lucros rápidos e especulativos para a fração
dominante da classe capitalista, a oligarquia financeira.


    Pensando o imperialismo desde o sul

Para o pensador franco-egípcio Samir Amin, o imperialismo atual, ou
tardo-imperialismo, encontra suas bases econômicas na era do
“capitalismo monopolista generalizado”. Segundo Amin, essa fase se
caracteriza pelo avanço da integração mundial dos mercados monetários e
financeiros, assim como pela centralização do poder dos diretores dos
monopólios e seus servidores assalariados. O avanço da mundialização e
liberalização do capital no advento do neoliberalismo se contrasta com
os limites nacionais e locais para a mobilidade da força de trabalho, a
fim de garantir maiores taxas de exploração.

A “arbitragem global do trabalho” é uma categoria utilizada pelo autor
para compreender como a “mundialização da Lei do valor” é a base
sócio-econômica das transferências de riqueza na atual época. Nesse
sentido, Amin propõe que uma “tríade”, ou “imperialismo coletivo”,
passou a liderar a lógica das transferências de riqueza da periferia
para o centro. Liderado pelos EUA, esse “imperialismo coletivo” também
teria participação central na Alemanha e no Japão.

Amin destaca que o imperialismo contemporâneo se baseia na defesa de
cinco monopólios no mercado mundial: os fluxos financeiros e monetários,
as fronteiras tecnológicas, o acesso aos recursos naturais do planeta,
os meios de comunicação e as armas de destruição em massa.

A formulação de Amin foi desenvolvida, ao longo de uma longa trajetória
política e intelectual, em diálogo com outras escolas que também
tentaram realizar críticas ao “novo” imperialismo. A escola do
“capitalismo monopolista” ou da /Monthly Review/, referenciada entre os
intelectuais estadunidenses – como Paul Baran, Paul Sweezy, Leo Huberman
e Harry Magdoff -, desenvolveu a tese de que a sobreacumulação do
excedente criava a necessidade de um departamento na economia dos EUA
(gastos militares) e, consequentemente, uma política belicista
permanente para impulsionar esses investimentos. A escola das “trocas
desiguais”, de Arghiri Emmanuel e Charles Bettlheim, sustentava a
natureza desigual do comércio internacional, por meio da transferência
de valores dos países periféricos para os países centrais, e influenciou
o movimento terceiro mundista, os desenvolvimentistas latino-americanos
e até o maoísmo.

Além da reflexão teórica, parte desses intelectuais anti-imperialistas
participaram de governos progressistas ou revolucionários na Ásia e na
África. Na América Latina, as principais escolas de renovação da crítica
ao imperialismo foram a “Teoria Marxista da Dependência” (TMD) e o
“marxismo endogenista”. A TMD, desenvolvida por Ruy Mauro Marini,
Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra, se propõe a desvendar a
“legalidade específica” do capitalismo latino-americano. Essa legalidade
estaria permeada pela dominação imperialista, pela superioridade
tecnológica e produtiva das empresas transnacionais, e pelo seu dreno
dos lucros e das riquezas locais, obrigando as burguesias locais a
superexplorarem para compensar a transferência de riquezas imposta pelos
países imperialistas.

<https://autonomialiteraria.com.br/loja/jogos/kapital-quem-ganhara-a-luta-de-classes/>

O chamado marxismo endogenista, por sua vez, sobretudo a partir da
análise do intelectual equatoriano Augustín Cueva, negava a hipótese de
leis específicas do capitalismo latino-americano propostas pela TMD.
Mais próximo dos partidos comunistas, Cueva sustentou as
particularidades históricas do desenvolvimento latino-americano, a
relação entre o capitalismo monopolista e o “fascismo” das ditaduras
civis-militares e os limites da transição destas ditaduras para as
“democracias restritas”.

Essa é apenas uma pequena amostra da densidade e polifonia da crítica da
economia política do imperialismo na segunda metade do século XX. Essa
crítica é reforçada pelo advento de uma série de movimentos, governos e
experiências populares, revolucionárias e anti-imperialistas. Nessa
temática, muitas vezes os chamados “marxismo ocidental e oriental” se
entrelaçam e dialogam.

Esse resgaste não serve como mera peça de museu para alguns curiosos. A
questão crucial é: nesse século, o imperialismo ainda vive? A resposta
é: não somente vive, como se torna uma necessidade ainda mais
impreterível diante da crise do capitalismo. Uma crise de
características sistêmicas, no que diz respeito à supercapitalização, e
que envolve tanto queda nas taxas de lucro dos monopólios quanto
dificuldade de realização dos capitais sobreacumulados.

Principalmente após 2008, os centros imperialistas, liderados pelo eixo
anglo-saxão, dependem cada vez mais de defender e ampliar a dominância
aos cinco monopólios assinalados por Samir Amin. As principais
características do imperialismo maduro, ou tardio, se revelam como a
hegemonia financista, o domínio no interior das cadeias globais de
valor-trabalho, a imposição da austeridade e da ideologia fiscalista
para a periferia e o fenômeno que chamamos de “ocidentalização periférica”.

O predomínio da atividade financeira, por meio da proeminência do
capital monetário e, em especial, do chamado “capital fictício”,
liberalizou mercados e mundializou os lucros. No entanto, apesar do
caráter transnacional de grande parte das empresas financeiras, os
principais mercados estão concentrados nos EUA e na Inglaterra. Tony
Northfield, que chegou a trabalhar como executivo na London City,
pesquisou, em sua tese de doutorado, a transformação do imperialismo
colonial britânico em um novo imperialismo baseado nas finanças, através
do domínio de uma série de títulos e mecanismos financeiros concentrados
em Londres. Esses títulos e mecanismos, segundo Northfield, são formas
mais agressivas de transferência de riquezas das periferias para os
centros imperialistas, tendo em vista que, hoje, muitas empresas não
financeiras, a partir dos seus departamentos de tesouraria, aplicam e se
utilizam desses mecanismos para ampliar seus lucros. O Reino Unido é a
segunda praça financeira mais importante no mundo, perdendo apenas para
os EUA.

A dominância das fronteiras tecnológicas, patentes e propriedades
intelectuais, ao lado do domínio financeiro, forjaram uma nova divisão
geográfica econômica imperialista no capitalismo contemporâneo sediadas
no norte global, onde estão as empresas transnacionais, detentoras de
títulos e recursos financeiros, intelectuais e tecnológicos; a produção
industrial passa a se concentrar na Ásia; populosos países exportadores
de matérias-primas e commodities, na América Latina e em África; e os
paraísos fiscais, onde grande parte dos capitais transferidos encontram
alto rendimento.

O domínio imperialista dessas cadeias internacionais de valor-trabalho
foi estudado, principalmente, por dois pesquisadores: o britânico, John
Smith, e a indonésia, Intan Suwandi. Para eles, a base econômica do
imperialismo tardio é a superexploração dos trabalhadores do sul global.
Nessa divisão geoeconômica, os países periféricos oferecem para o
capital transnacional taxas mais altas de exploração dos trabalhadores e
um exército de desempregados que também influencia na maior exploração
dos trabalhadores do norte global.

No entanto, essa estrutura imperialista não “anda sozinha”. As relações
de poder também são fundamentais para se compreender as “amarras
imperialistas”. O casal de economistas indianos, Utsa e Prabhat Patnaik
(ambos comunistas), propôs uma interpretação “concreta” do imperialismo
no século XXI, relacionando questões como a fome, alto desemprego e as
políticas de austeridade com as “amarras” econômicas e institucionais da
lógica imperialista.

Para os últimos autores, a dominância do “valor do dinheiro” e da
“deflação da renda” seriam dois dos principais instrumentos de imposição
dos centros imperiais para os países periféricos. O valor do dinheiro,
para os Patnaik, se relaciona com a ascensão da hegemonia do dólar,
desvinculado do padrão-ouro depois de 1971. O dólar, para se tornar
soberano no sistema monetário internacional, depende de uma série de
pré-condições, a fim de gozar de estabilidade e segurança junto às
classes capitalistas. Diante do crescimento da oferta por produtos
tropicais e da necessidade de estabilidade no “valor dinheiro”, o
imperialismo contemporâneo opera uma série de contratendências, gerando
deflação da renda na periferia. A deflação na renda garante os baixos
preços dos produtos tropicais, a tendência ao subconsumo nas
ex-colônias, o grande desemprego e a estagnação econômica.

Esses instrumentos estão longe de ser “puramente econômicos”, são
políticos, e dependem da articulação entre classes capitalistas e o
amoldamento institucional dos Estados periféricos, com a adoção do
fiscalismo e da austeridade como políticas estruturais. A austeridade é
sempre uma janela de oportunidades para o capital transnacional: a
crença em uma eterna “crise fiscal” do Estado legitima uma série de
privatizações e transferências de riquezas públicas para o capital privado.

No campo ideocultural, a intensificação desigual da divisão do trabalho
entre o “norte” e “sul global” complexifica a influência imperialista na
educação política e moral das classes dominantes periféricas e na
“domesticação” de movimentos potencialmente contra-hegemônicos. Além dos
organismos multilaterais tradicionais (Banco Mundial, FMI, OEA, etc.),
desde fins da década de 1970 há uma complexa rede cosmopolita de
financiamentos internacionais, ONG´s, entidades patronais, sindicais e
movimentos sociais que atuam formando lideranças e organizações de
diferentes espectros políticos, mas que necessariamente assumem o
desenvolvimento capitalista como o único horizonte possível para a
humanidade.

Esse fenômeno, estudado por autores como James Petras, René Dreifuss e
Virgínia Fontes, pode bem ser chamado de de “ocidentalização
periférica”, termo utilizado por Carlos Nelson Coutinho, ao descrever
como os países metropolitanos influenciam o processo de formação e
“democratização restrita” da sociedade civil na periferia, o que não
deixa de ser uma expressão ideológica do imperialismo.


    O imperialismo pode ser derrotado

O imperialismo, infelizmente, segue vivo. E , no entanto, como parte do
capitalismo, o imperialismo não é eterno. As diversas lutas
anti-imperialistas no mundo, como as atuais revoltas de camponeses na
Índia, as insurreições populares nas ruas da América Latina, o eficiente
combate à pandemia na China e em outros países do “socialismo asiático”,
as mobilizações populares contra os crimes ambientais cometidos pelas
transnacionais do norte global são alguns exemplos de lutas e conquistas
diante o imperialismo tardio.

Essas lutas e conquistas ficam como lição para a esquerda mundial.
Qualquer experiência de ascensão popular ao poder tem o desafio de
enfrentar as amarras imperiais e seus vínculos internos, para avançar em
conquistas por um desenvolvimento social, econômico e ambiental
alternativo, soberano e potencialmente socialista.

No Brasil, em especial, cabe o desafio de reconstruir uma cultura
política ampla e autêntica de esquerda que tenha o anti-imperialismo e o
socialismo como parte dos seus fundamentos. Se no século XX, o
anti-imperialismo foi uma das principais expressões nacionais de
processos revolucionários de transição socialista, no século XXI a
recuperação da crítica radical ao capitalismo e a defesa de uma outra
sociedade são cruciais para renovarmos a crítica e a luta contra o
imperialismo.


      Sobre os autores


          Luís Eduardo Fernandes
          <https://jacobin.com.br/author/luiseduardofernandes/>

é professor de História e doutorando no programa de pós-graduação em
Serviço Social da UFRJ. Organizador do livro “Introdução ao Imperialismo
Tardio”, lançado pela editora Ruptura.

Em
JACOBIN
https://jacobin.com.br/2022/02/a-atualidade-da-critica-anti-imperialista/
5/2/2022

domingo, 6 de fevereiro de 2022

A estagnação e o futuro da economia capitalista no Brasil

 Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/brasil/estagnacao_futuro.html#asterisco
6/2/2022


      Eleutério F. S. Prado [*]
A economia capitalista no Brasil foi fortemente afetada pela crise do
novo coronavírus que se iniciou em 2020 e que ainda não tem data certa
para acabar: o nível do PIB caiu, o desemprego se elevou e a
desigualdade de renda e riqueza aumentou. Considerando que a crise atual
não vai durar para sempre, que talvez termine em 2022, o que os próximos
anos reservam para os brasileiros? Sabendo que ela se encontrava
estagnada ou quase-estagnada pelo menos desde o começo dos anos 1990, o
que os brasileiros, especialmente os mais pobres, podem esperar do futuro?

Uma resposta será fornecida neste artigo, mas ela só virá ao final da
exposição.

Os economistas em geral acreditam na capacidade da política econômica de
produzir o crescimento. Os neoliberais têm fé no mercado: se o Brasil
tem mostrado pouco potencial para elevar o PIB é porque o Estado cometeu
sucessivos erros estratégicos no passado: descuidou da educação e da
estabilidade macroeconômica; pecou pelo protecionismo e pelo estatismo.
A solução que propõem são as reformas liberalizantes, as quais, em
última análise, visam aumentar a taxa de exploração da força de trabalho
e desregular os mercados para que o capital possa exercer o seu mando
sem entraves burocráticos.

Os keynesianos confiam na capacidade do Estado para criar as condições e
suplementar os mercados para que estes possam se desenvolver: é preciso
elevar o investimento público, manter a empresas estatais estratégicas,
sustentar um câmbio desvalorizado, taxar a exportação de bens primários,
implementar políticas efetivas de distribuição da renda etc. Se o Brasil
tem crescido pouco desde os anos 1990, isso se deve ao “thatcherismo
tupiniquim” que, abandonando o nacionalismo econômico, produziu a
desindustrialização, a reprimarização e a financeirização da economia
brasileira, assim como uma enorme concentração da renda e da riqueza.

Se é evidente que a política econômica tem, sim, um papel no
desenvolvimento econômico, julga-se aqui que é preciso colocar em dúvida
quão decisiva ela pode ser. Como ficou implícito nos dois parágrafos
anteriores, não existe qualquer estratégia de crescimento sem uma
compreensão do capitalismo e sem uma base ideológica classista. Os
neoliberais falam em nome de uma burguesia interna e globalista e os
nacionalistas constroem um discurso sobre a possibilidade de um pacto
interno de parte da burguesia com os trabalhadores em geral. Até que
ponto elas podem contrariar a lógica do capital que vem se impondo nos
últimos dois séculos e que se impõem agora, com mais força e mais
abrangência, globalmente? Até que ponto, por exemplo, certas propostas
que vem a teoria monetária moderna não entram em conflito com os
imperativos do capital?

É preciso ver que o capitalismo desde a sua emergência no século XVI,
primeiro como capitalismo comercial e depois como capitalismo
industrial, constituiu-se como um sistema econômico vocacionado para
abranger o mercado mundial. Eis que a história apenas comprova aquilo
que um exposição dialética célebre já apontara em meados do século XIX:
o capital é um sujeito automático que tende a derrubar todos os
obstáculos que se lhe antepõem, sejam eles de natureza puramente
geográfica sejam elas de natureza institucional.

Eis que o capitalismo tem de ser pensado como uma totalidade concreta em
desenvolvimento, a qual está baseada na troca generalizada de
mercadorias. Estas são produzidas privadamente, mas são socializadas por
meios dos mercados. Daí que o trabalho que conta para constituir o valor
não é o trabalho concreto, mas aquele socialmente atuante na produção de
mercadorias e que foi reduzido a trabalho abstrato pelo processo social.

Essa sociabilidade requer, pois, o dinheiro não só para intermediar as
trocas, mas para expressar concretamente o trabalho abstrato, medir o
valor. A lógica da produção de mercadorias não é apenas uma lógica
restrita de geração de valor, mas uma lógica que tende a se
universalizar. O próprio valor tende, por isso, a se tornar valor que se
valoriza, ou seja, capital.

É por isso também que não se pode pensar rigorosamente o capitalismo
como um sistema de produção que visa intrinsecamente atender as
necessidades humanas em geral. O seu princípio consiste em fazer o
dinheiro gerar sempre mais dinheiro e, somente quando essa meta
sistêmica é atingida, podem ser providas tais necessidades, não
igualmente e para todos, mas sim diferencialmente de acordo com a
capacidade das pessoas de atenderem as necessidades da valorização do
capital.

O sistema do capital exige, assim, que as pessoas se tornem indivíduos
modernos, agentes racionais que se contentam em se submeter a esse poder
social objetivo na esfera da produção e da circulação de mercadorias. E
a consequência dessa subsunção vem a ser o estranhamento e a alienação –
algo que implica, como sabe, uma interversão do sujeito em objeto por
meio de sua participação em um processo real que tem moto próprio.

A lógica expansiva do sistema exige também que os estados nacionais se
tornem competidores na arena formada pelo mercado mundial. Se devem
garantir as condições da reprodução do capital no âmbito nacional, são
forçados a se abrirem ao comércio internacional, submetendo-se às forças
que aí imperam. Como essa dupla determinação é, em última instância,
irresistível, pode-se compreender por que as políticas econômicas em
geral encontram-se limitadas em sua capacidade de realizar as aspirações
das forças políticas na criação de uma forma específica de
desenvolvimento nacional. E isso ocorre já quando elas se expressam na
linguagem da racionalidade econômica.

Os constrangimentos impostos às políticas econômicas implementadas no
âmbito dos estados nacionais é, sendo enfático, a contrapartida
necessária do movimento insaciável de autovalorização do capital. Os
desejos não deixam de sonhar que se realizarão, mas as determinações do
capital nunca deixam de acordá-los para o pesadelo do mundo real. Ora, a
globalização é uma manifestação fundamental desse processo que acossa a
todos no mundo atual. Ela deveio historicamente por meio de ondas
sucessivas, mas ocorreu em efetivo porque este sempre foi o télos
imanente do processo de acumulação. E isso implícito no trecho que segue
da obra de Marx.^[1] <#notas>

    É apenas o comércio exterior, o desenvolvimento do mercado em
    mercado mundial, que faz com que o dinheiro se transforme em
    dinheiro mundial e o trabalho abstrato em trabalho social. A riqueza
    abstrata, o valor, o dinheiro e, portanto, o trabalho abstrato,
    desenvolvem-se à medida que o trabalho concreto se torna uma
    totalidade de diferentes modos de trabalho abrangendo o mercado
    mundial. A produção capitalista baseia-se no valor ou na
    transformação do trabalho incorporado no produto em trabalho social.
    Mas isso só ocorre com base no comércio exterior e no mercado
    mundial. Esta é, ao mesmo tempo, a pré-condição e o resultado da
    produção capitalista.

O poder do capital como metafísica realmente operante no devir da
sociedade moderna tem sido subestimado, mesmo quando ele vem a ser
reconhecido como um sujeito automático. As teorias econômicas em geral,
entretanto, não o reconhecem e, por isso, confiam excessivamente no
poder da política econômica. Contudo, é possível mostrar como a sua
lógica se impõe de modo “silencioso” a todos os países que moram no
planeta Terra e que se encontram fortemente entrelaçados pelo mercado
mundial. É bem evidente, por exemplo, que a lei da tendência à igualação
da taxa de lucro atua efetivamente em escala global, ainda que
respeitando o grau de desenvolvimento.^[2] <#notas>

Os gráficos da figura abaixo, que cobrem um período de 70 anos do
evolver da economia global, exibem um resultado surpreendente.^[3]
<#notas> Mostram que as taxas de lucro médias dos países ricos (G7), dos
países do G20 e dos mercados emergentes (ME)^[4] <#notas> apresentaram
todas um mesmo padrão geral de evolução: tenderam a subir entre 1950 e
1967 e a cair após 1997. Nos países ricos, tenderam a cair entre 1967 e
1982 e, nos países emergentes, elas começaram a cair em 1974 sem nunca
se recuperarem tendencialmente. Nos países do G7, ao contrário do que
ocorreu nos países do ME, houve uma recuperação das taxas de lucro entre
1982 e 1997. O caso da China, não tratado aqui, mostra-se como uma
anomalia nesse padrão.

A crise de lucratividade dos anos 1970 atingiu quase todos os países,
mas a recuperação neoliberal ficou restrita aos países desenvolvidos.
Ora, isso ocorreu em virtude de um impacto diferenciado das políticas
neoliberais que então se difundiram. Estas se orientaram desde o início
para reforçar o poder internacional dos países imperialistas, em
especial dos Estados Unidos.

Taxa interna de retorno do capital (%).

Nos países centrais, elas reduziram os nível dos salários reais dos
trabalhadores, transferiram as atividades intensivas em trabalho para a
Asia, promoveram a liberação financeira etc. Nos países dependentes, a
elevação da taxa de juros nos EUA para combater a inflação produziram
crises nas economias periféricas; daí em diante elas tiveram de se
submeter ao sistema financeiro internacional, o que reforçou a sua
dependência. Ao invés de importador, muitos deles – como o Brasil –
tornaram-se exportadores de capitais.

A figura em sequência apresenta a taxa interna de retorno do capital
para o Brasil, cujo padrão, é bem evidente, segue grosso modo o padrão
do agregado das economias emergentes, antes apresentado. Com uma
diferença importante: aoinvés de as taxas de lucro se estabilizarem
entre 1982 e 1997, tenderam então a cair fortemente. Assim, a transição
democrática ocorrida a partir de 1985 foi acompanhada de uma tendência
ao declínio econômico, o que se deveu operacionalmente às políticas
neoliberais que sancionaram a nova forma subordinação, liderada pelas
finanças, posta pelas potências imperialistas.

Taxa interna de retorno do capital (%) no Brasil.

Agora, é preciso perguntar por que a taxa de lucro é tão importante no
sistema capitalista em geral. Ora, sabe-se desde Marx que “a taxa de
lucro é o aguilhão da produção capitalista”, pois a “valorização do
capital é a sua única finalidade”. Em consequência, os períodos
históricos em que a taxa de lucro tende a subir são caracterizados como
de euforia econômica; ao contrário, quando ela tende a cair tem-se
sempre estagnação ou mesmo depressão. A sua queda, como diz o autor de
/O capital,/ retarda o investimento, promovendo “superprodução,
especulação, crises, capital supérfluo ao lado de população supérflua”.
Ora, foi exatamente isso o que ocorreu no Brasil nos últimos cinquenta
anos. Mas essa tendência, entretanto, foi episodicamente contrariada
entre 2002 e 2010 – nos governos Lula, como se sabe – em virtude de um
boom nos mercados internacionais de /commodities./

Taxa de investimento bruto (% do PIB) no Brasil.

A conexão entre o evolver da taxa de lucro e o evolver da taxa de
acumulação encontra-se hoje bem documentada estatisticamente. Quando
cresce a taxa de lucro, a taxa de investimento tende a subir junto com
ela. Quando cai, essa última tende igualmente a declinar. É isto que se
vê quando se compara a evolução da taxa interna de retorno do capital no
Brasil com a taxa de crescimento do estoque de capital. A figura em
sequência mostra essa correlação com uma divergência importante. A taxa
de lucro começa a cair já em 1974, mas a taxa de investimento muda de
sentido apenas a partir de 1982. Ora, esse retardo de aproximadamente
seis anos se deve ao chamado II PND, plano por meio do qual a ditadura
militar tentou manter o seu projeto de Brasil grande.

Posto esse quadro geral em que tento combinar sinteticamente um pouco da
teoria crítica do modo de produção capitalista com dados empíricos
tirados das contas nacionais, tem-se agora condições de especular sobre
o futuro dessa sociabilidade no Brasil. O que se pode esperar?

É possível pensar em dois cenários alternativos: em um deles seria
mantida a política neoliberal que tem prevalecido desde 1990, a qual –
note-se – busca subordinar a estrutura econômica do país aos mandamentos
do capital internacional e às condições institucionais impostas
internacionalmente pelas potências imperialistas; no outro, essa
política “entreguista” seria substituída pelo novo desenvolvimentismo, o
qual pensa o Brasil como um sujeito histórico capaz de certa
autodeterminação.

Num caso, ter-se-ia mais do mesmo, mas no caso alternativo haveria
mudanças importantes. Como o novo desenvolvimento não dissocia o sistema
do capital do Estado como as correntes liberais, prevê a adoção de um
“intervencionismo moderado” com os seguintes objetivos: reverter a
desindustrialização, elevar o investimento público, manter o câmbio
desvalorizado, sustentar taxa de juros baixas, taxar a exportação de
/commodities/ com o fim de neutralizar a vantagem comparativa na
produção de produtos primários.

Como se deixou claro anteriormente, a política econômica em geral tem
alguma eficácia na busca de certos objetivos, mas ela não pode
contrariar substantivamente às tendências mais profundas da acumulação
de capital, a qual acontece agora como um processo global que integrou
fortemente todas as nações por meio do mercado mundial. De qualquer
modo, é preciso se preocupar na luta política com as formas
institucionais e como as políticas estatais, porque elas pode ser mais
ou menos desfavoráveis para os trabalhadores em geral.

No entanto, como foi visto no primeiro gráfico aqui apresentado, a
economia mundial se encontra numa fase de longa depressão. E a economia
capitalista no Brasil não é uma exceção, mas um caso paradigmático. Em
consequência, não se pode prever que essa economia possa alcançar
novamente um nível de desenvolvimento acelerado tal como ocorreu no
período após o fim da II Guerra Mundial até 1980, aproximadamente. Ora,
o autor que aqui escreve pensa que o capitalismo enquanto modo de
produção se encontra agora no seu ocaso e que, por isso, as dificuldades
para obter um crescimento crível provavelmente aumentarão em relação ao
passado recente. Assim, ele não prevê que o futuro do sistema econômico,
mas também da sociedade brasileira como um todo, possa ser próspero,
risonho e franco.

É preciso, pois, construir a alternativa de um socialismo democrático.

[1] O presente autor deve essa citação, retirada do Livro III das
/Teorias do mais-valor,/ a um escrito de Tony Smith: /The place of the
world Market in Marx’s systematic theory./
[2] Quando maior o grau de desenvolvimentode um país menor deve ser a
sua relação produto/capital, que é, como sabe, um determinante da taxa
de lucro. O outro determinante importante é a participação do lucro no
produto nacional (PIB).
[3] Todas as taxas internas de retorno aqui apresentadas foram obtidas
das Penn World Table 10.1. Elas são comparáveis porque as séries foram
construídas com uma mesma metodologia. A agregação das taxas do G7, G20
e ME foram feitas por Michael Roberts e publicadas em seu blog The next
recession.
[4] Fazem parte do G7: Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália,
Japão e Reino Unido. O G20, além desses sete, inclui outros doze países:
África do Sul, Argentina, Brasil, México, China, Coreia do Sul, Rússia,
Índia, Indonésia, Turquia, Austrália, Arábia Saudita. Vinte e sete
nações formam o ME, entre elas, aquelas doze já elencadas e que compõem
o G20.


        30/Janeiro/2022


    [*] Professor Titular e sênior do Departamento de Economia da
    FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br; blog na internet:
    https://eleuterioprado.blog.


    O original encontra-se em
    eleuterioprado.blog/2022/01/30/a-estagnacao-e-o-futuro-da-economia-capitalista-no-brasil/ <https://eleuterioprado.blog/2022/01/30/a-estagnacao-e-o-futuro-da-economia-capitalista-no-brasil/>


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Como o misticismo e a pseudociência se tornaram centrais para o nazismo

 

 

UMA ENTREVISTA COM
Eric Kurlander
Tradução de
Gercyane Oliveira

Ideias sobrenaturais estavam se generalizando na virada do século XX, em
especial na Alemanha. Porém, na crise social após a Primeira Guerra
Mundial, as ideias esotéricas e pseudocientíficas viraram uma ferramenta
poderosa de mobilização nazista, direcionadas para demonizar os judeus e
a esquerda.


UMA ENTREVISTA DE

Ondřej Bělíček

No fim do século XIX, a Europa industrializada era o epicentro daquilo
que Max Weber denominou de “desencantamento do mundo”. Práticas
religiosas tradicionais vinham sendo desafiadas pelas forças da
modernidade, com a Igreja incomodada com o avanço do Iluminismo, ciência
e secularismo.

Entretanto, geralmente a famosa citação Weber omite a segunda parte de
sua tese – que o mundo estava se encantando também por algo novo. Novos
tipos de doutrinas esotéricas, religiosas e fronteiras emergiam como
alternativas aparentemente modernas à religião e à ciência tradicional.

Isso incluía a antroposofia (uma variação austro-alemã sobre a doutrina
esotérica da teosofia, que combinavam elementos da espiritualidade
oriental com cristianismo, filosofia ocidental e ciência natural);
ariosofia (uma versão mais explicitamente racialista e eugenista da
teosofia), a Teoria do Gelo Mundial (uma teoria “acientífica” que
insiste que o gelo é a substância básica por trás de todos os processos
tanto cósmicos como geológicos e evolutivos da terra), astrologia e
parapsicologia (o estudo dos fenômenos psíquicos e paranormais). Essa
tendência incluiu também religiões alternativas, New Age, homeopatia,
folclore e um interesse renovado pelo hinduísmo e budismo.

Em seu livro /Hitler’s Monsters/
<https://yalebooks.yale.edu/book/9780300189452/hitlers-monsters>, Eric
Kurlander analisa a específica influência de ideias sobrenaturais que
tiveram ascensão e as consequências da ideologia nazista. Ele argumenta
que a invocação e apropriação de crenças populares esotéricas,
pseudocientíficas e religiosas ajudaram o partido de Adolf Hitler a
atrair apoiadores, desumanizar seus inimigos e perseguir suas ambições
imperiais e raciais. Porém – como diz o historiador a Ondřej Bělíček –,
essas ideias também se enraizaram em um contexto sociopolítico
particular – que se reproduz, se não na mesma escala, também em nosso
próprio presente.

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OB

*No fim do século XIX, desenvolveu-se um forte movimento dedicado a
ideias sobrenaturais, doutrinas esotéricas, espiritualismo e ocultismo.
O que esse movimento na Alemanha e na Áustria teve de diferente, em
comparação a outros lugares onde essas tendências também floresceram?*

EK

A singularidade é dupla. Por um lado, o investimento naquilo que eu
chamo de “imaginário sobrenatural” na Alemanha e na Áustria tinha uma
influência maior. Não se tratava só de um aspecto discreto do dia a dia,
tal qual quando você vai à igreja ou uma sessão espírita no domingo. Foi
algo integrado à política e às teorias sociais de forma muito mais
direta e onipresente. Muitas dessas figuras esotéricas passaram a
delinear conclusões políticas baseadas nessas crenças.

Isso, por exemplo, ocorreu também na França e no Reino Unido, ainda que
não na mesma medida. Por outro lado, o teor do imaginário sobrenatural,
em que existiam muitos movimentos como teosofia, astrologia e assim por
diante, também era bem mais racial-folclórico na Alemanha e na Áustria
que na França ou Reino Unido.

Havia muitas pessoas falando sobre diferentes raças no século XIX, não
só na Alemanha e na Áustria. Entretanto, quando se olha para a forma
como tais doutrinas esotéricas e anti-científicas foram implantadas na
esfera pública, a raça e o antissemitismo foram, ao que parece, mais
proeminentes em comparação com a França, Reino Unido e até mesmo os
Estados Unidos, que tinham seus próprios grupos esotéricos, como os
“camisas prateadas” da KKK e William Pelley.

Em suma, a raça faz parte também da língua oficial da ciência e da
reforma social no Reino Unido, França e Estados Unidos, mas não estava
no centro das práticas científicas e ocultas; e tais práticas,
inversamente, não desemprenharam um papel central nas ideologias ou
teorias de direita na política ou na sociedade.

OB

*Você também menciona que o folclore alemão, a mitologia, a religião
indo-ariana e as teorias racistas frequentemente eram parte do sistema
escolar alemão. Você menciona especificamente a influência que o
professor Leopold Pötsch tinha no jovem Hitler. Isso também foi uma
particularidade nacional?*

EK

Isso chega ao conceito de ciência alternativa. Todos falavam sobre
Charles Darwin e o declínio civilizacional do Ocidente, a ascensão de
raças não brancas – tudo o que fazia parte das discussões científicas
naturais e sociais da segunda metade do século XIX. Até mesmo
progressistas liberais e socialistas utilizavam o conceito de raça
naquele momento, que não seria aceito hoje.

Se você fosse à escola na França ou nos Estados Unidos nas décadas de
1880 e 1890, ouviria teorias sobre a superioridade racial de alguns
grupos sobre outros, e teorias da história que tendiam a idealizar os
homens brancos ou de seu país de uma forma muito nacionalista. A
diferença é que, na Alemanha e na Áustria, a mitologia nórdica e o
folclore se misturaram com esse chamado pensamento “científico” sobre
raça, politizado e, então, integrado à pedagogia. Isso ocorreu não
apenas nas escolas, mas na literatura popular e científica.

OB

*Muitas das principais personalidades de movimentos sobrenaturais na
República de Weimar, na Alemanha, depois se tornaram proeminentes
nazistas. De alguma maneira, os partidos no entreguerras trabalharam
politicamente com a crença do sobrenatural ou isso foi específico dos
nazistas?*

EK

Sem dúvida, existam alguns indivíduos nos partidos de centro esquerda
interessados ​​em astrologia e mitologia alemã, mas, de modo geral, eles
não os integraram em suas ideias políticas e sua propaganda. Se você
fosse membro dos dois partidos liberais, dos social-democratas ou dos
comunistas, seria improvável que você invocasse as imagens de vampiros e
o diabo, lobisomens ou bruxas, para descrever seus oponentes políticos
ou a si próprio. Nem você falaria frequentemente sobre suásticas ou
antigos sóis negros ou runas como símbolo da raça ariana ou nórdica.

Só que não apenas os nazistas invocavam essa iconografia. Existiam
grupos paramilitares famosos de toda sorte que recorriam a esses tipos
de símbolos, que organizavam festivais de solstício e falavam em
restaurar o Império Alemão e reassentar os europeus ocidentais com
“camponeses guerreiros”.

Os partidos de centro esquerda alemães, como na maior parte dos países,
almejavam certamente argumentar a respeito do que fazer com finanças,
tributos e educação, mas os partidos de centro direita eram tão
propensos a invocar propaganda emocional ligada a teorias baseadas em
raça sobre a superioridade germânica e o perigo quase sobre-humano dos
monstruosos judeus e bolcheviques, de uma forma difícil de se engajar
racional ou empiricamente. Como argumentaria com alguém que apela ao
caráter loiro e de olhos azuis quase míticos do povo alemão e diz que
seu país foi colonizado por uma cabala de bolchevistas judaicos, maçons
e raças inferiores?

Nem todos os alemães acreditavam nessas coisas: muitos – talvez até
mesmo a maioria – não acreditava. E se recorde que apenas um terço deles
votou em Hitler. Os nazistas nunca tiveram mais de 37% dos votos, apesar
da crise vinda da Grande Depressão e outros fatores. Porém, as pessoas
que votavam nazistas parecem ter sido desproporcionalmente inseridas no
imaginário sobrenatural.

OB

*Suponho que, depois da guerra perdida em 1918 e da Grande Depressão,
essas ideias sobrenaturais devem ter se espalhado entre toda a população
alemã. É possível afirmar qual tipo de pessoa tendia a apoiar essas ideias?*

EK

A história, a sociologia e a ciência política nos mostraram que,
enquanto os nazistas apelaram ao número substancial de alemães de todas
as demografias, católicos e trabalhadores tendiam a não votar tanto nos
nazistas. Por outro lado, os protestantes de classe média baixa ou de
origem sociológica no meio rural votavam desproporcionalmente no partido
de Hitler. Ao observar o modo como funciona o imaginário sobrenatural, é
aquilo não aparece de forma proeminente nos socialistas urbanos e no
meio social dos trabalhadores.

Não é que as classes trabalhadoras alemãs fossem imunes às ideias
sobrenaturais – se a ciência oculta, a pseudociência ou a religião
alternativa. De certo, alguns membros da classe trabalhadora liam seus
horóscopos ou acreditavam em aspectos do paranormal. Só que, por
variadas razões, as classes trabalhadoras eram, em geral, mais isoladas
das consequências políticas dessas ideias graças ao caráter do meio
urbano e proletário – poderosamente à esquerda e, de fato, muitas vezes
suavemente marxista.

Além da força dessa cultura proletária, o próprio interesse
socioeconômico dos trabalhadores e sua típica filiação partidária com os
social-democratas ou os comunistas, temos uma ênfase intelectual da
teoria marxista em explicações materialistas sobre a realidade
sociopolítica. Por tais razões, era bastante difícil para os partidos
não marxistas e ideologias não materialistas penetrarem nas classes
trabalhadoras alemãs, sobretudo entre os habilidosos trabalhadores em
áreas urbanas, que se mostraram nitidamente resistentes à política
conservadora, clerical e, em menor grau, fascista no período entreguerras.

Mesmo entre o eleitorado com uma maior propensão ao pensamento não
materialista, baseado na fé, como os católicos rurais e de cidades
pequenas, a força do meio social e religioso católico – reforçado por
décadas de perseguição protestante – isolou os católicos devotos de
formas alternativas de pensamento sobrenatural, assim como os
radicais-nacionalistas, partidos desproporcionalmente protestantes, como
o Partido Nacionalista do Povo Alemão e os nazistas.

Essas ideias parecem ter sido mais populares entre os alemães de classe
média que talvez não fossem mais devotos católicos ou protestantes, mas
que ainda se interessaram em religiões alternativas, esoterismo meio
cristão meio pagão e outras ideias sobrenaturais. Essas tendências
esotéricas também parecem nitidamente ter se originado na Alemanha,
especialmente onde a política é objeto de preocupação – o que parece ser
outra diferença entre o jeito como essas doutrinas se espalham e como o
“imaginário sobrenatural” funcionava na França, Reino Unido, Estados
Unidos, por exemplo, em comparação com a Alemanha e a Áustria.

Nos países anteriores, parece que as mulheres participavam desses
movimentos tanto quanto os homens, certamente como seguidoras, mas
também, muitas vezes, como lideranças. Na Alemanha e na Áustria,
propagando o esoterismo, a pseudociência e o paganismo folclórico
pareciam ser um empreendimento quase exclusivamente masculino.

Você nota isso no movimento nazista, que era também muito masculino.
Eram principalmente homens brancos que não foram particularmente
educados em termos de conhecimento científico, mas tinham certa educação
universitária. Trabalhadores de colarinho branco, pequenos empresários,
engenheiros, esses são os tipos de pessoas que tornaram essas ideias
mais interessantes. Um perfil demográfico similar ao daqueles que gostam
de assistir shows sobre “alienígenas” ou relíquias perdidas ou soldados
mortos-vivos do Himmler no /History Channel/ hoje em dia. São as pessoas
que têm algum tipo de educação, alguns conhecimentos sobre história, mas
estão abertos a argumentos pseudocientíficos e baseados na fé.

OB

*De várias maneiras, isso se assemelha aos grupos de pessoas de hoje que
creem em teorias de conspiração, como QAnon, movimento antivacina e
etc.. Como os intelectuais, cientistas e autoridades reagiram a essa
tendência pseudocientífica naquela época?*

EK

Muitas figuras líderes de centro esquerda ou liberais observaram esse
investimento nada saudável no pensamento sobrenatural, baseado na fé, e
afirmaram: “aqui está um fenômeno que é anticiência, irracional e
preocupado com o pensamento mágico, a história alternativa e a religião
mágica, e parece estar ajudando as forças antidemocráticas de extrema
direita. Precisamos ter cuidado com isso”.

<https://autonomialiteraria.com.br/loja/jogos/kapital-quem-ganhara-a-luta-de-classes/>

Na imprensa, Bertolt Brecht e alguns socialistas zombaram dos nazistas
por flertarem com essas ideias. Eles acharam chocante que os alemães
acreditassem nos apelos emocionais de Hitler e Goebbels – em alguns
casos escritos por Hanns Heinz Ewers, um escritor de terror famoso por
romances sobre vampiros, cientistas loucos e adoradores de diabo e,
depois, um propagandista nazista. Não compreendiam como algum partido
poderia chegar ao poder sendo algo equivalente contemporâneo de Stephen
King ou Clive Barker na promoção de sua causa. Alguns apoiadores dos
partidos liberais, que perderam muitos mais de seus eleitores para os
partidos conservadores e de extrema direita que os social-democratas ou
os comunistas, estavam realmente prontos para botar a culpa de seu
fracasso político no comportamento irracional dos alemães.

Alfred Rosenberg, o ideólogo nazista, assumiu que muitas pessoas votaram
nos nazistas porque estavam interessadas no oculto. O influente filósofo
político conservador Carl Schmitt notou um investimento generalizado no
que ele chamou de “romantismo político”. Então, com o declínio do centro
liberal, os únicos partidos políticos que poderiam se opor aos nazistas
eram os partidos de esquerda, mas eles falavam uma linguagem totalmente
diferente e eram incapazes de competir com os nazistas nos termos do
apelo emocional ao nacionalismo e ao renascimento folclórico,
fundamentados no “desejo de mito dos alemães” e desejo de transcender as
crises políticas e econômicas e as divisões sociais do período entreguerras.

OB

*E quanto ao próprio Hitler? Você poderia descrever qual era sua relação
com ideias sobrenaturais, ocultismo ou pseudociência?*

EK

Hitler foi perfeitamente emblemático como um típico membro do Partido
Nazista – ou, de certo, líder nazista – a esse respeito. Ele não era tão
envolvido em ideias sobrenaturais, por exemplo, tal qual Himmler, Hess
ou Alfred Rosenberg. Sempre foi mais cético quanto às teorias
sobrenaturais mais amplas sendo usadas de forma muito proeminente como
parte da propaganda nazista. Ele, todavia, ainda as elaborou, e sua
retórica foi misturada com argumentos pseudocientíficos, a invocação da
mitologia e o apelo às emoções. Ainda que não comprasse todas as
doutrinas de raça esotérica que alguns de seus colegas fizeram, ele
entendeu sua importância para o Partido Nazista e empregou essa linguagem.

No meu livro /Hitler’s Monsters/, menciono a famosa citação de Hitler em
/Mein Kampf/ alertando o Partido Nazista a não se tornar lar de
“acadêmicos errantes envolvidos em /bearskins/”. Lembrando do xamã do
QAnon com pele de animal que invadiu o prédio do Capitólio
norte-americano em janeiro de 2021, esse comentário obscuro de Hitler
parece bem mais relevante. Como Donald Trump ou Marine Le Pen, que se
afastaram publicamente dos “xamãs do QAnon” em suas fileiras, Hitler
estava preocupado se o Partido Nazista pudesse perder apoio entre os
eleitores da classe média tradicional.

Mesmo se Hitler publicamente tentasse divulgar nazistas de grupos
religiosos esotéricos e pagãos, como a Sociedade Thule e o folclore
“errante dos estudiosos em /bearskins/”, ele, porém, reconheceu que seus
apoiadores estavam atraídos por ideias sobrenaturais e teorias de
conspiração para dar sentido a um mundo cada vez mais complexo e ameaçador.

OB

*Qual foi a relação dos nazistas com ideias sobrenaturais depois que
Hitler chegou ao poder? Você menciona que era perigoso para o Partido
Nazista deixar crescerem o movimento sobrenatural e o ocultismo, pois
temiam que pudesse sair de seu controle.*

EK

Não é que eles rejeitaram o raciocínio sobrenatural. Eles estavam com
medo especificamente de grupos ocultos que representassem um obstáculo
sectário a uma “comunidade racial” unificada liderada pelo o Partido
Nazista. Essas doutrinas e associações ocultas, como a teosofia, a
ariosofia, o movimento da antroposofia de Rudolf Steiner, e outros
grupos folclóricos e messiânicos – que tiveram seus próprios rituais,
tradições secretas e, acima de tudo, seus próprios “Führer” – foram
vistas pelos nazistas como sectárias. Isso significava que eles detinham
sua própria identidade sociocultural e, potencialmente, uma ideologia em
competição com o nazismo.

Portanto, muitos estudiosos apontam a repressão ao ocultismo durante o
Terceiro Reich – equivocadamente, em minha visão, dizendo “olha, os
nazistas odiavam o ocultismo”. Só que eles não odiavam. Eles tentaram
controlar certos tipos de ocultismo e outros grupos “sectários” por
várias razões, da mesma maneira que tentaram controlar a religião, os
programas sociais, mulheres, trabalhadores, camponeses ou industriais. A
propensão natural deles como um regime fascista era tentar controlar as
coisas e fazer com que todo mundo “trabalhasse para o Führer”, mas isso
não significa que eles rejeitassem o /völkisch/ esotérico ou religioso
ou o pensamento pseudocientífico.

Então, sua hostilidade aos ocultistas não era do mesmo tipo que aquela
que envolvia atitudes nazistas em relação aos socialistas ou comunistas
ou, de certo, aos judeus. Eles reiteradamente aceitaram no partido
ex-líderes ocultistas, desde que parassem de tentar manter organizações
esotéricas-folclóricas separadas, como a Sociedade Thule ou a Werewolf
Bund ou a Tannenburg Bund.

Os nazistas estiveram também divididos sobre o que era “ocultismo
científico” e o que era o ocultismo popular para ganhar dinheiro. O vice
de Hitler, Rudolf Hess, os membros do Ministério da Educação do Reich,
Himmler, a SS e até o Ministério de Propaganda de Goebbels trabalharam
para diferenciar as doutrinas ocultistas e as ideias e indivíduos
“científicos” alternativos ou, ao menos, pragmaticamente úteis daquilo
que chamavam de ocultismo de Boulevard popular ou “judaico”, como Erik
Hannusen – que, eles diziam, apenas roubava o dinheiro das pessoas.

Assim, os nazistas vigiavam e periodicamente prendiam ou interrogam os
ocultistas que supostamente faziam dinheiro minando o “esclarecimento
público”. Contudo, para Himmler, Hess, Walther Darré, e outros líderes
nazistas, os ocultistas científicos “reais” e cientistas alternativos
ainda podiam averiguar se o raio de Thor era mágico ou se a posição das
estrelas e da lua promovia a agricultura orgânica.

Esses “cientistas” foram patrocinados por vários ministérios nazistas e
especialmente pela SS de Himmler. Então, eles seletivamente rejeitavam
algumas ideias e indivíduos ocultistas como não sérios e
anticientíficos, mas também estavam dispostos a legitimá-los e até mesmo
empregá-los quando eram simpáticos à doutrina esotérica e alternativa
particular ou à crença /völkisch/ religiosa. O conceito duvidoso da
Teoria do Gelo do Mundo parecia reforçar a ideia de uma raça ariana
antiga e sugerir o questionamento da “física judaica” da mesma maneira a
lei relatividade e a mecânica quântica. Daí o porquê de tanto Himmler
como Hitler tê-la patrocinado.

OB

*Você menciona que a imaginação sobrenatural “propiciou um espaço
ideológico e discursivo em que era possível desumanizar, marginalizar os
inimigos dos nazistas e transformá-los em monstros”. Você poderia
elaborar como funcionou isso?*

EK

Quando você sai do reino da ciência moderna, como a biologia e a física,
começa a operar no reino do “imaginário sobrenatural”, onde tudo é
possível ou justificável, visto que passa a misturar a biologia com
esoterismo, história e arqueologia com folclore e mitologia, pode
transformar os judeus asquenazes de um povo parcialmente europeu que
compartilharam com alemães uma ancestralidade da Europa Central e
Oriental, em monstros biológicos totalmente alienígenas, com tendências
cruéis e sobre-humanas, por trás de tudo de malévolo ocorrido na história.

O imaginário sobrenatural, que mistura a ciência e o ocultismo, a
história e a mitologia, permitiu também que os nazistas escolhessem as
características que gostariam de atribuir ao inimigo deles,
comparando-os a vampiros, zumbis, diabos e demônios. Também permitiu a
eles que atribuísse certas características superiores aos alemães,
delineadas, muitas vezes, de forma idêntica da mitologia ou da ciência
alternativa.

Em seu último esforço para criar uma divisão partidária na elite no fim
de 1944, eles invocaram os nomes de lobisomens, do folclore germânico.
Apesar de os lobisomens serem considerados heróis trágicos ou nobres
possivelmente ligados à horda de Odin ou aos /berserkers/ nórdicos, eles
eram na França seres amaldiçoados ligados ao satanismo e à feitiçaria.
No folclore alemão, os lobisomens eram, portanto, heróis trágicos,
ligados enfim ao sangue e ao solo; criaturas que defenderiam suas
florestas e terra contra os intrusos eslavos. Por outro lado, os
vampiros não eram figuras românticas trágicas nem mesmo heróis, como
foram retratados na França ou no Reino Unido, mas parasitas orientais
degenerados ligados aos judeus e aos povos eslavos, que estavam tentando
minar a pureza do sangue alemão.

Folclore, mitologia, teorias sobre alienígenas, Teoria do Gelo Mundial,
gigantes de gelo, deuses e monstros foram usados para justificar por que
os alemães teriam o direito de invadir o Leste Europeu e subjugar ou
destruir raças inferiores e o chamado “judaico-bolchevismo”.

O pensamento sobrenatural tinha um efeito multiplicador sobre as
políticas violentas já existentes na eugenia dessa época, abusadas em
tantos outros países, incluindo o Reino Unido, a Suécia ou os Estados
Unidos, mas nunca em uma extensão desenfreada. O ingrediente “secreto”
aqui, argumento eu, era o pensamento “sobrenatural”.

OB

*Que influência o imaginário sobrenatural teve sobre o esforço de guerra
dos nazistas?*

EK

Em primeiro lugar, o imaginário sobrenatural influenciou as visões
geopolíticas dos nazistas, que manipularam a arqueologia, o folclore e a
mitologia para fins de política externa. Himmler e Rosenberg
desenvolveram os argumentos – com base, em larga medida, em folclore,
mitologia e ciência alternativa – de que, há milhares de anos, as
pessoas nórdicas eram a civilização dominante na Europa e que eles
tinham o direito de reivindicar esse status. Arqueologia ruim, o uso
seletivo de biologia e da antropologia e a mitologia alimentou várias
ideias a respeito da Europa Oriental e por que os alemães teriam
direito, tais quais cavaleiros teutônicos medievais, de (re)conquistar o
Leste.

O pensamento sobrenatural não era o único fator na determinação da
política nazista, mas certamente reforçou as relações racistas e
imperialistas dos nazistas em relação aos europeus orientais. Sim, em
algum momento durante a guerra, os nazistas negociaram acordos com os
ucranianos e os Estados bálticos por razões pragmáticas, mas, em última
instância, eles tinham esse gigantesco complexo de pensamento
sobrenatural subjacente às suas concepções de raça e espaço. Isso ajudou
a justificar, por exemplo, a deslocar os poloneses para fora de suas
casas e botar alemães em seu lugar ou enviar os judeus para os campos de
concentração.

O imaginário sobrenatural estava também diretamente ligado a
experimentos de eugenia durante o Holocausto. Um dos piores médicos
nazistas, Sigmund Rascher, era filho de um dos mais célebres
antroposofistas, Hanns Rascher. Você tem esse importante médico muito
aberto a essa ideia de raça e espaço – que acompanha Ernst Schaefer na
expedição ao Tibet de Himmler para descobrir as antigas origens da raça
ariana – e mais tarde está disposto a fazer experiências em seres
humanos para testar suas teorias pseudocientíficas e de Himmler.

Quando você toma o nível de ingenuidade científica e de confiança que os
alemães tinham nos anos 1930 e o mistura com um regime imerso no
pensamento sobrenatural, liderado por Hitler e Himmler, que não tinham
experiência em ciência natural, que eram autodidatas, que liam folclore
e mitologia e sonhavam com espaçonaves, e propicia a plataforma de uma
guerra terrível onde a violência massiva já se tornava aceitável, isso é
bastante perigoso. Junto à eugenia, isso tudo compôs o combustível
desses experimentos horríveis e até mesmo do Holocausto.

OB

*Parece que os alemães que acreditavam no imaginário sobrenatural
realmente achavam que os eslavos eram vampiros, os judeus vermes e os
soviéticos basicamente monstros.*

EK

Eu não posso dizer a você que milhões de soldados em campo de batalha
realmente viam judeus como monstros sobre-humanos; muitos alemães tinham
amigos e cônjuges judeus antes e depois do Terceiro Reich. Entretanto,
os nazistas certamente usaram o imaginário sobrenatural para desumanizar
judeus, eslavos e bolcheviques e transformá-los em um inimigo desumano.
Alguns alemães étnicos relataram terem sido atacados, confessamente
durante o trauma da guerra, por “bebedores de sangue” eslavos.

A questão é: como isso aconteceu? Meu argumento é que não era /somente/
a ciência da biologia ou imperialismo ou capitalismo industrial ou a
violência em massa e o trauma da “guerra total” – todos esses fatores
eram importantes –, mas também o imaginário sobrenatural nazista. O
quanto alguém acredita de fato nas várias doutrinas, contos e ideias que
constituíam esse imaginário dependia da pessoa. Às vezes, todavia,
parece que alguns nazistas realmente acreditavam que havia outras
espécies e raças – em particular, os judeus, que eram simplesmente
monstros desumanos, literal ou figurativamente, e que tinham que ser
eliminados para que a civilização “ariana” sobrevivesse.


      Sobre os autores


          Eric Kurlander <https://jacobin.com.br/author/erickurlander/>

é professor de história na Universidade Stetson.


          Ondřej Bělíček <https://jacobin.com.br/author/ondrejbelicek/>

é editor do A2larm.cz.

Em
JACOBIN
https://jacobin.com.br/2022/01/como-o-misticismo-e-a-pseudociencia-se-tornaram-centrais-para-o-nazismo/
25/1/2022