quinta-feira, 16 de outubro de 2025

A multipolaridade? Talvez no futuro

 


 Vijay Prashad     13.Oct.25     Outros autores

Embora o domínio mundial dos Estados Unidos esteja a enfraquecer e a China surja como rival, a ordem mundial unilateral permanece intacta, segundo o historiador Vijay Prashad. Nesta entrevista realizada pelo jornalista David Goeßmann para o meio de comunicação Jacobin, explica por que considera a NATO como a organização mais perigosa do mundo.

Embora o domínio mundial dos Estados Unidos esteja a enfraquecer e a China surja como rival, a ordem mundial unilateral permanece intacta, segundo o historiador Vijay Prashad. Nesta entrevista realizada pelo jornalista David Goeßmann para o meio de comunicação Jacobin, explica por que considera a NATO como a organização mais perigosa do mundo.

Se observarmos o debate político na Alemanha, poderíamos ter a impressão de que o Ocidente está cercado por inimigos que querem destruí-lo. Mas fora da bolha Washington-Berlim, o tom é diferente: os Estados Unidos, que dominam a política mundial pelo menos desde o colapso da União Soviética, estão eles próprios mergulhados numa crise profunda e cada vez menos capazes de manter o seu domínio mundial. Isso acarreta, por um lado, o risco de conflitos armados cada vez mais numerosos, como as guerras actuais na Ucrânia ou na Faixa de Gaza, mas também a possibilidade de um mundo onde haja espaço para vários actores regionais e trajectórias de desenvolvimento autónomas fora do chamado consenso de Washington.

Enquanto as negociações para um cessar-fogo na guerra em Gaza são retomadas, o Irão suspende a sua cooperação com a AIEA e os países BRICS-Plus se reúnem no Brasil, o historiador Vijay Prashad analisa as mudanças de poder no cenário mundial. A NATO é a organização mais perigosa do mundo, adverte Prashad, enquanto a hipocrisia da Europa em relação à parte mais pobre do mundo continua. Mas não se deve sobrestimar também essas mudanças – o dólar continua dominante como moeda mundial e as elites governantes dos países BRICS+ ainda estão longe de se emancipar do Ocidente. Uma nova ordem mundial continua, por enquanto, um horizonte distante – mas a crise da actual também oferece oportunidades para avanços da esquerda.

O Irão foi bombardeado por Israel e também pelos Estados Unidos sem qualquer pretexto credível. Teerão respondeu com disparos de mísseis contra Israel e uma base americana no Qatar. O genocídio de Israel em Gaza continua após mais de 600 dias, sem fim à vista, enquanto o exército israelita continua a atacar o Líbano. Todos estes ataques são actos de agressão e são ilegais à luz do direito internacional. Como avalia a actual situação de conflito e o futuro do Médio Oriente e do Próximo Oriente?

A Índia e o Paquistão travaram uma guerra durante três dias. Tornou-se então evidente que, com duas potências militares, cada uma com uma defesa aérea muito boa, drones, de um sistema que pode ser integrado em caças, ninguém poderia vencer. Nem a Força Aérea Indiana nem a Força Aérea Paquistanesa foram capazes de penetrar e destruir os sistemas de defesa aérea do adversário.

No caso de Israel e do Irão, se considerarmos apenas as capacidades militares, rapidamente ficou claro que nenhum dos dois poderia vencer. Israel não invadirá o Irão, o Irão não enviará tropas terrestres para Israel. A única coisa que poderia alterar o equilíbrio seria a intervenção dos Estados Unidos, que dispõem do poder de fogo de longe mais importante.

Os Estados Unidos realizaram efectivamente três bombardeamentos. Mas isso não teve praticamente nenhuma consequência. O Irão respondeu com um ataque a Al-Udeid [base militar americana no Qatar], que foi basicamente coreografado, sob o tema: «Nós contra-atacámos». Tenho, portanto, a impressão de que os estrategas militares desses países agora reconhecem que, enquanto não houver um avanço tecnológico-militar significativo ou Israel não usar armas nucleares contra o Irão, será impossível vencer. Do ponto de vista político, Israel está a cometer um genocídio contra os palestinianos. Isso é ilegal. Estão a cometer um genocídio e os Estados Unidos fornecem as armas. A Europa também fornece armas, incluindo a Alemanha. Estão a participar numa ação criminosa. O ataque de Israel ao Irão viola o artigo 2.º, n.º 4, da Carta das Nações Unidas. É o mesmo artigo em nome do qual [a presidente da Comissão Europeia] Ursula von der Leyen ficou tão indignada quando a Rússia invadiu a Ucrânia. Mas os europeus não condenam Israel.

O genocídio cometido por Israel contra os palestinianos e o ataque ao Irão devem ser colocados no mesmo plano. O Irão não atacou Israel. Não houve legítima defesa. Nenhuma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas autorizou Israel, nos termos do capítulo 7 da Carta das Nações Unidas, a lançar um ataque contra o Irão. Não houve qualquer provocação iraniana, nem mesmo ameaças verbais contra Israel. Na verdade, altos responsáveis israelitas explicaram publicamente por que atacaram o Irão. Disseram que o Irão estava actualmente fraco. Que era preciso aproveitar a situação. O Irão provavelmente anunciará dentro de dois ou três meses que possui uma bomba atómica. E então, será o fim para a mudança de regime no Irão.

A motivação das intervenções bélicas é semear o caos na região para depois tirar partido disso?

Não creio que eles queiram o caos. Eles procuram antes o que chamam de uma reorganização do Médio Oriente e do Próximo Oriente. Israel acredita que pode erradicar o Hamas nos territórios palestinianos. Querem expulsar os palestinianos de grandes partes da Faixa de Gaza, criar um Israel seguro, aproveitar a situação e também expulsar os palestinianos da Cisjordânia ou, pelo menos, desmoralizá-los para que não deixem de combater os colonos.

Israel já não está interessado numa solução de dois Estados, se é que alguma vez esteve – o que provavelmente nunca foi o caso. Prefere a solução de três Estados. A solução de três Estados é a seguinte: todos os palestinianos são enviados para o Líbano, a Jordânia e o Egipto, ou seja, para os três Estados que fazem fronteira com os territórios palestinianos. Que desapareçam.

Trata-se, na verdade, de uma política de aniquilação social: pode-se aniquilar fisicamente as pessoas, ou seja, cometer um genocídio, ou destruí-las socialmente, simplesmente expulsando-as para outros países – o que também é contrário ao direito internacional, uma vez que se trata de um território ocupado protegido pelas disposições das Nações Unidas. A transferência de populações para fora de uma zona de guerra é ilegal à luz do direito internacional.

No que diz respeito aos iranianos, eles procuram uma mudança de regime no Irão desde 1980. Foram o Ocidente e os árabes do Golfo, os sauditas, que empurraram em 1980 Saddam Hussein a invadir o Irão e a iniciar uma guerra que durou até 1988. Apoiaram Saddam durante todo esse período.

Após 1988, houve declarações pontuais de altos responsáveis americanos dizendo que iriam atacar o Irão. Após o 11 de Setembro, os Estados Unidos cometeram um erro estratégico ao derrubar o governo talibã no Afeganistão em 2001 e, em seguida, Saddam Hussein em 2003. Dois inimigos históricos do Irão, os sunitas intransigentes no Afeganistão e Saddam Hussein, foram eliminados por quem? Pelos americanos, o que deu ao Irão uma enorme vantagem na região. O Irão começou a expandir a sua influência e a influenciar os acontecimentos no mundo árabe. Então, em 2006, os Estados Unidos deram luz verde a Israel para destruir o Líbano e enfraquecer o Hezbollah, uma nova violação da Carta das Nações Unidas.

No meio desses acontecimentos, surgiu de repente a acusação de que o Irão pretendia construir uma arma nuclear. Os Estados Unidos acabaram por iniciar discussões ilegais com o Irão sobre o seu programa nuclear, apesar de o Irão ser membro do Tratado de Não Proliferação. O Irão está sujeito ao controlo da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), já autoriza inspecções e dialoga com representantes da ONU. Portanto, não havia motivo para iniciar um processo ilegal com os Estados Unidos, os europeus, os iranianos e a ONU fora da AIEA e do Tratado de Não Proliferação para discutir um programa de armamento nuclear alucinatório.

Tudo isto é uma farsa. Porque enquanto o Irão era pressionado, a Índia, que não é membro do Tratado de Não Proliferação e não é inspeccionada pela Agência Internacional de Energia Atómica, testou duas vezes uma arma nuclear. A Índia obtém dos Estados Unidos uma isenção especial para adquirir materiais físsíveis do Grupo de Fornecedores Nucleares. Israel também possui armas nucleares, não é membro do Tratado de Não Proliferação e recebe materiais do Grupo de Fornecedores Nucleares.

O ataque ao Irão não é, portanto, nada de novo. Insere-se num longo processo que visa derrubar este governo. Eles querem «limpar» o Médio Oriente, colocar o filho do Xá de volta no poder em Teerão, levar os palestinianos a abandonar o território e reorganizar a região.

Como avalia, após 500 anos de colonialismo ocidental, de hegemonia neocolonial ou neoliberal no Sul global e dos programas de ajustamento estrutural das últimas décadas que estrangularam os países pobres, a forma como o Ocidente trata os países em desenvolvimento?

A atitude persiste: o Ocidente não deve nada a esses países: «Ouçam, nós colonizámos-vos, lamentamos. Mas construímos ferrovias e pontes, ensinámos-vos as nossas línguas e vocês adquiriram a razão e a ciência». Essa mentalidade continua a ser ensinada nas escolas. Na Alemanha, por exemplo, as crianças não aprendem nada sobre o genocídio dos Herero e dos Nama.

Durante a Guerra dos Boers, os britânicos construíram campos de concentração. Os nazis tiraram a ideia dos seus campos, Treblinka e Buchenwald, daí. Após a guerra e o Holocausto, os britânicos construíram campos de concentração no Quénia para prender os combatentes da revolta Mau-Mau. Portanto, não é que tenhamos «aprendido a lição» e que «nunca esqueceremos». Isso é ensinado às crianças na Grã-Bretanha? Não, elas ainda aprendem que Churchill é um herói.

Macron disse aos africanos que eles deveriam ser gratos. Isso é escandaloso. Um mínimo de decência deveria impedir um líder mundial de pedir a alguém que colonizou que fosse grato. Como se pode dizer uma coisa dessas? É vulgar. Na política também não vejo mudanças. Vejamos o Fundo Monetário Internacional (FMI). O Fundo é uma instituição democrática, pois tem Estados-membros. Cada Estado-membro deveria, portanto, como membro de uma organização, ter o direito de propor o que deseja fazer ou não. Mas no FMI, há direitos de voto desiguais. Os governos ocidentais controlam mais direitos de voto no FMI, a votação é feita de acordo com a parte do dinheiro depositado. Isso não é justo e deveria ser democratizado.

Os países mais ricos também determinam a forma como os burocratas do FMI, que supostamente servem os países membros, falam com os países. Por exemplo, eles vão ao Senegal e explicam: «É isto que vocês têm de fazer, caso contrário, terão um relatório negativo da nossa parte ou não receberão mais dinheiro». Basicamente, comportam-se como a máfia.

Mas vê mudanças de poder quando, como aconteceu, a França e os Estados Unidos são expulsos do Níger e de outros países africanos? Ao mesmo tempo, a China avança nos países em desenvolvimento, constrói as infraestruturas da Nova Rota da Seda e investe nos países mais pobres.

As coisas avançam demasiado lentamente. Tomemos os casos do Senegal e do Sri Lanka, onde os dois governos progressistas eleitos de centro-esquerda têm de voltar ao FMI. Porquê? Porque as alternativas não se desenvolveram com rapidez suficiente. O processo dos BRICS, por exemplo, criou um novo banco de desenvolvimento. No entanto, os seus empréstimos avançam com lentidão extrema. Foi criado um acordo de reserva de emergência, que deveria ser uma alternativa ao FMI. No entanto, ele ainda não entrou realmente em vigor.

A Nova Rota da Seda é diferente. Ela fornece fundos para infraestruturas. Ela constrói infraestruturas, o que é óptimo porque reforça as capacidades desses Estados. Uma mudança de poder está em curso aqui. Mas quando se trata de empréstimos para problemas financeiros, balanças de pagamentos, reservas cambiais, etc., o FMI é o único ou o principal actor. É interessante notar que os bancos chineses preferem não conceder empréstimos para a crise da dívida. Eles preferem conceder empréstimos para projectos de infraestruturas. Não querem conceder empréstimos aos países para gerir a sua crise de endividamento a longo prazo. Os governos têm, então, de recorrer novamente ao FMI.

Assim, os países do Sul estão a passar por uma mudança, mas ela é demasiado lenta e não ocorre onde a dívida se acumula. As populações do Sul global não têm actualmente força para dizer aos credores obrigacionistas: «Desculpem, vocês assumiram um risco ao investir nos nossos países. Vocês têm de amortizar os empréstimos». Mas tem razão, está a ocorrer uma mudança, mas não devemos sobrestimar os desenvolvimentos actuais.

Em termos económicos, a China cresce muito mais rapidamente do que os Estados Unidos e a Europa. Se olharmos para o que se denomina paridade do poder de compra, ela já ultrapassou a dos Estados Unidos. Depois, há a já mencionada Nova Rota da Seda, graças à qual Pequim está a construir uma infraestrutura comercial e de transportes global, investindo em mais de 150 Estados. Não vivemos, então, já num mundo multipolar – pelo menos economicamente?

A sua formulação «pelo menos economicamente» é enganadora, porque «pelo menos economicamente» nada está a acontecer. Em primeiro lugar, é verdade que a China está certamente na frente em termos de desempenho económico. Mas muitos países asiáticos, como o Vietname, a Indonésia, o Bangladesh ou a Índia, estão todos a crescer muito mais rapidamente. Isso é bastante impressionante. Mas também temos de reconhecer que se trata de taxas de crescimento e que esses países partem de um nível de grande desvantagem. Em termos de nível de vida absoluto, eles ainda estão bastante longe dos países mais ricos.

As taxas de crescimento são certamente impressionantes. Também é verdade que a China comercializa muito mais com a maioria dos países e dispõe de mais excedentes para investir na construção de infraestruturas e indústrias nesses países. A China criou, de facto, um novo modelo de desenvolvimento que o FMI e os credores ocidentais não criaram. Eles concederam empréstimos para a dívida durante toda a minha vida, e não para infraestruturas e industrialização. A China mudou as regras do jogo, isso é absolutamente verdade.

No entanto, ainda não vivemos num mundo onde a relação de força mudou. Os países ocidentais, sob a liderança dos Estados Unidos, ainda controlam os sistemas de armamento. Quase 80% das despesas militares mundiais são feitas anualmente pelos países da NATO-Plus [membros da NATO mais Austrália, Japão, Nova Zelândia, Coreia do Sul e Israel]. O seu poder militar é excepcional.

Além disso, estamos expostos a um enorme fluxo mediático ocidental. Eles definem o mundo. Pode haver meios de comunicação noutros países, na Índia, etc., mas quando se trata de notícias mundiais, eles seguem a CNN, a Reuters, a Associated Press, a Agência France-Presse. Eles definem os acontecimentos. É surpreendente ver a rapidez com que se chegou a um consenso sobre o facto de estar a ocorrer um genocídio em Xinjiang, incluindo a indignação a esse respeito. Mas o que está a acontecer na Palestina não pode ser um genocídio, deve ser outra coisa, dizem, porque Israel foi atacado.

Devido a factores como a língua e a incapacidade de combater a chamada desinformação, os meios de comunicação chineses ou russos não conseguem ganhar espaço a nível mundial. No YouTube, as empresas ocidentais que controlam o material escrevem: «São meios de comunicação estatais russos, é desinformação». É impossível controlar o mundo do discurso e das ideias que o Ocidente domina. Multipolaridade? Talvez no futuro. Mas, por enquanto, acho que devemos ser sóbrios e realistas, porque ainda não é o caso.

Dirige o Tricontinental Institute. Num novo dossier, qualifica a NATO como «a organização mais perigosa do mundo». É uma formulação forte.

Não é um exagero. A NATO é o pacto militar que desmembrou a Jugoslávia e que, com os Estados Unidos, invadiu o Afeganistão para levar à destruição do país. A NATO é a organização que basicamente desmantelou a Líbia e recusa qualquer tipo de investigação.

Em relação aos crimes de guerra na Líbia, a resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU de 2011 estipula simplesmente que uma zona de exclusão aérea deve ser estabelecida sobre a Líbia. A OTAN violou imediatamente essa resolução e começou a bombardear o aparato estatal líbio, destruindo assim o Estado líbio e a Líbia. A construção de um Estado leva centenas de anos. A NATO destruiu-o em poucos dias.

Nenhum outro pacto militar devastou tantos países no pós-guerra. Peter Olson, advogado da NATO, redigiu uma declaração após os ataques à Líbia, na qual contesta fundamentalmente que a NATO possa alguma vez ser investigada. Nela afirma que a NATO não pode cometer crimes de guerra. Porquê? Porque não é uma organização não civilizada, tal é a mensagem, mas sim uma organização europeia.

Mas a NATO não é europeia. Mark Rutte, o actual secretário-geral [da NATO], foi a Washington, sentou-se ao lado de Trump e disse: Em Haia, faremos da cimeira da NATO uma grande demonstração do poder americano – não da força da NATO ou dos parceiros europeus, mas dos Estados Unidos. Não existe uma política externa europeia independente da NATO. A NATO é um cavalo de Troia para o domínio dos Estados Unidos.

Os aliados europeus da NATO e os parceiros próximos na Ásia, como a Coreia do Sul e o Japão, são usados para conter ameaças aos Estados Unidos que não são ameaças à Europa. A China é uma ameaça para a Europa? A Rússia era uma ameaça para a Alemanha? A maioria das pessoas na administração Trump acredita que a China é a maior ameaça. Mas admitem que Pequim não representa uma ameaça militar. O país é responsável por 4% das despesas militares mundiais. É uma ameaça económica. Está a caminhar para uma produção de tecnologias de sétima ou oitava geração.

Mas não é uma ameaça para a Europa, e sim para as multinacionais americanas, nas quais a burguesia europeia investiu. A burguesia proprietária alemã investe mais na Black Rock e em Wall Street do que no DAX. Os europeus são, portanto, arrastados para um conflito internacional em nome dos Estados Unidos e dos interesses de seus monopólios. Não é um conflito europeu.

Que importância atribui ao BRICS+, o grupo de países emergentes em torno do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul, que atrai cada vez mais Estados que desejam aderir? Está a nascer diante dos nossos olhos uma nova ordem mundial, que não se baseia no domínio unilateral de Washington, enquanto assistimos a um caos mundial, ao autoritarismo político e à violência?

Essa é uma excelente pergunta. O que é interessante com o “plus” é que os países do BRICS praticamente embarcaram todos os grandes produtores de petróleo, com excepção dos Estados Unidos. Assim, se você adicionar a Rússia, a Arábia Saudita, o Irão, etc., você tem os principais produtores de petróleo e gás, incluindo o Egipto. São desenvolvimentos muito importantes que mostram que se trata essencialmente da OPEP-Plus [Organização dos Países Exportadores de Petróleo]. Portanto, temos uma OPEP+ dentro de um processo BRICS. E se eles começarem a pensar em sistemas monetários alternativos, poderão pensar numa nova moeda, essencialmente baseada no valor do petróleo.

É claro que isso não agrada aos ambientalistas, mas, honestamente, o petróleo ainda nos vai acompanhar por algum tempo antes que possamos fazer uma transição real. É uma realidade muito triste que não possamos passar tão rapidamente do petróleo para as energias renováveis na nossa civilização. A moeda poderia, portanto, ser inicialmente baseada na matéria-prima petróleo. Em outras palavras, o petróleo torna-se aquilo sobre que a moeda é indexada, como o ouro no passado. Nesse intervalo, de 1971 até hoje, foram os activos americanos.

Porque, fundamentalmente, uma moeda deve ser lastreada por um activo. Se eu possuo muitas notas de uma moeda, devo poder fazer algo com elas. Se ninguém quiser aceitar os meus dólares, eu deveria poder comprar terras, uma empresa, uma fábrica ou qualquer outra coisa nos Estados Unidos com eles. Deve haver um activo que garanta que o meu dinheiro não se torne simplesmente papel sem valor. Mas nenhum país do BRICS está actualmente disposto a ceder os seus activos para estabilizar uma moeda. Os chineses têm controlos de capitais. Não permitem que estrangeiros comprem as suas terras. Não creio que alguma vez o permitam. Portanto, não haverá nenhum país do BRICS que disponibilize os seus activos como âncora para a moeda. Isso simplesmente não vai acontecer.

O relógio do apocalipse do Bulletin of the Atomic Scientists foi ajustado este ano para 89 segundos antes da meia-noite. Nunca estivemos tão perto do fim da humanidade. Como avalia os riscos nucleares e o que deve ser feito?

Acho o relógio do apocalipse anacrónico. Deveria estar mais perto da meia-noite. O ataque dos Estados Unidos e de Israel ao Irão enviou uma mensagem muito séria a muitos países do mundo, uma mensagem que já foi enviada há uma década, a saber: se não tiverem armas nucleares, destruiremos o vosso Estado. Este sinal foi enviado quando os países da OTAN invadiram a Líbia, atacaram e destruíram o país. Porquê? Porque a Líbia tinha anteriormente iniciado um programa de armas nucleares. O país renunciou voluntariamente a esse programa para se integrar no sistema mundial.

Posteriormente, teve de pagar um preço muito elevado: o Estado foi destruído. A Coreia do Norte, por sua vez, possui armas nucleares e ninguém se atreve a atacar o país. Espero que os iranianos tenham uma bomba atómica antes do final do ano e que a anunciem. Vão começar a enriquecer urânio para construir uma bomba, porque não? Têm de se proteger.

Na realidade, os ataques contra o Irão não serviram a não proliferação nuclear, mas sim a proliferação das armas atómicas. Posso garantir que a junta militar de Mianmar já ligou para os norte-coreanos e disse: enviem-nos uma bomba, enviem-nos mísseis. Mianmar, Arábia Saudita, Turquia, Irão – todos esses países vão armar-se nuclearmente. O relógio do apocalipse avançará então para 59 segundos.

Os movimentos sociais e, em geral, a esquerda parecem estar em posição de fraqueza em muitos países do mundo. Por outro lado, nas últimas décadas, houve protestos e campanhas poderosas, desde o Occupy Wall Street e a Primavera Árabe até às campanhas pelo clima e à resistência política à repressão. No entanto, o mundo continua a caminhar para o abismo e as crises agravam-se. Como vê isso e de onde tira o «optimismo da vontade», para o dizer com Gramsci?

Se olhar à sua volta em Berlim, verá em dez segundos um entregador ou um motorista da Uber a passar. A classe trabalhadora em todo o mundo foi «uberizada». As pessoas trabalham longas e irregulares horas por baixos salários. Mesmo que não trabalhem muitas horas, as suas condições de trabalho são largamente desorganizadas. Não trabalham juntas em fábricas. Se trabalham juntas em fábricas, não têm o direito de falar umas com as outras. Há uma disciplina rigorosa, é muito difícil sindicalizar as pessoas. O número de membros dos sindicatos diminuiu consideravelmente.

A população activa já não está organizada no mundo. Mas é precisamente aí que reside a reserva da esquerda, ou seja, numa classe operária organizada, num movimento sindical e num movimento camponês organizado. Mas isso não nos impede de lançar mobilizações. Porque para levar as pessoas a uma manifestação, elas não precisam de estar organizadas. Mas não devemos confundir uma mobilização de massas, enormes protestos pela Palestina, com uma esquerda organizada.

No entanto, a mobilização ajuda mais a direita do que a esquerda, pois a direita não precisa construir organizações de massa da classe trabalhadora e dos camponeses. Ela pode sobreviver por meio de mobilizações de massa. Na Alemanha, a AfD cresce, mas em muitos países a extrema direita ainda não consegue impor-se nas eleições. Somente quando a direita tradicional e a extrema direita se unem é que há grandes sucessos. Como a direita tradicional traz seu dinheiro e seu aparelho, tem uma vantagem financeira.

Por outro lado, há avanços como agora, em que um socialista democrático venceu as primárias em Nova Iorque, Zohran Mamdani. Conheço muito bem os seus pais. O seu pai é um intelectual ugandês, a sua mãe é uma realizadora indiana, Mira Nair. Ela fez grandes filmes como Mississippi Masala, é uma realizadora fantástica. O filho deles é um formidável socialista democrático de 33 anos. Vem de uma família muçulmana, o seu segundo nome é Kwame, em homenagem a Kwame Nkrumah [o primeiro presidente do Gana]. Essas conquistas existem, podem acontecer a qualquer momento também na Alemanha. Alguém dinâmico pode surgir, porque isso faz parte da política eleitoral moderna e televisiva. Mobiliza-se as pessoas, entusiasmam-se e pode obter-se uma vitória eleitoral.

Portanto, sempre há esperança e oportunidades. É possível alcançar conquistas. Existem organizações de massa no mundo. Dois milhões de camponeses no Brasil fazem parte do Movimento dos Sem Terra. Produzem a maior parte do arroz biológico da América Latina, o que é incrível.

É muito importante que contemos histórias sobre o trabalho que todos realizamos, especialmente em locais escondidos e remotos. É inspirador que uma jovem leia um artigo, se sinta comovida e motivada. Ela cria um grupo de leitura no seu bairro, constrói uma organização, começa a envolver-se politicamente e diz que devemos limpar as ruas. Torna-se conhecida, acaba sendo eleita na sua comunidade, faz uma ou duas coisas boas e inspira outras pessoas. É assim que a mudança acontece.

Entrevista realizada por David Goeßmann.

Fonte: https://jacobin.de/artikel/multipolaritaet-vijay-prashad-nato-usa-china-unilateralitaet

Em

O diário.info

 https://www.odiario.info/a-multipolaridade-talvez-no-futuro/

13/10/2025

 


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