sábado, 21 de dezembro de 2019

Coletes amarelos & descaramento Como a brutalidade em França continua a ser invisível



*por George Galloway [*]

Embora utilizem coletes de alta visibilidade, os que protestam em França
têm sido quase invisíveis nos chamados media "de referência", provocando
também um silêncio ensurdecedor do movimento trabalhista e sindical e
até mesmo da assim chamada "esquerda" no seu bojo.

Se bem que uma cabeça quebrada ou mesmo uma vidraça partida em Hong Kong
ou na Venezuela muitas vezes lidere os noticiários, mais de um ano de
sublevação semanal e de movimentos de massa de trabalhadores que se
deparam com a extrema violência do estado francês e o seu dolorosamente
liberal presidente Macron têm sido ignorados pela imprensa ocidental e
pelos jornalistas da rádio e TV com estudada arrogância.

Não pode haver justificação racional para isto. Hong Kong está a quase
10.000 km da Inglaterra, Caracas a quase 8.000 km. A França está a 50 km
de distância. Não é barato enviar e manter equipes de jornalistas no
outro extremo da terra. Proliferam viagens baratas para Paris.

Nenhum critério noticioso poderia justificar a quase total ausência de
cobertura da desordem generalizada e as multidões maciças no nosso
vizinho europeu mais próximo ao longo de um ano inteiro. Na verdade, é
tamanha a antipatia entre a elite inglesa e a francesa (e vice-versa)
que, tomando emprestada uma palavra alemã, seria expectável que uma
sensação de /schadenfreude / conduzisse a cobertura britânica, à
velocidade máxima! Mas não houve nada disso.

Já não são só os coletes amarelos. Obviamente, o que aconteceu agora é
que toda a classe trabalhadora organizada da França entrou no campo de
batalha. Grandes centrais sindicais – como o moderado CFDT, bem como a
militante CGT – com milhões de membros estão agora a confrontar
fisicamente o poder do estado francês.

A causa imediata deste novo desenvolvimento é a "reforma" das pensões de
Macron. Nos dias de hoje, reformas são coisas más, enquanto antigamente
eram boas – essencialmente fazendo os trabalhadores franceses
trabalharem mais por menos pensões após a aposentadoria.

Mas, tal como com os coletes amarelos – cujo /casus belli / original era
um imposto sobre combustíveis – agora trata-se muito mais do que pensões.

A classe trabalhadora francesa está cansada da austeridade, cansada da
corrupção e dos excessos de trono de pavão do presidente Macron, cansada
da UE, cansada de toda a classe política. Precisamente a fórmula que
levou à vitória do Brexit do nosso lado da Mancha.

Tradicionalmente, os franceses – predispostos ao longo de séculos à
revolução – estão longe de serem conciliadores que se arrastam nos
protestos. Por outro lado, a "polícia de choque" francesa não faz
prisioneiros. Uma força irresistível depara-se com um objecto inamovível.

Mas uma coisa é a polícia agredir estudantes ou mesmo trabalhadores
comuns. Outra coisa é ver a polícia com couraças a investir com toda a
força – equipamento de protecção – como tem acontecido nas últimas duas
semanas. Jamais se viu dois disciplinados serviços uniformizados
chocarem-se um contra o outro nas ruas de Paris desde... bem, desde sempre.

A crise parece estar a fugir do controle do estado francês; o Natal
poderia literalmente ter de ser cancelado. O turismo foi duramente
atingido, conheço pessoalmente três casais que cancelaram férias
românticas de Natal na capital francesa. As viagens aéreas, de autocarro
e de comboio ameaçam parar. Ficaríamos menos surpresos ao acordar com a
notícia de que a Assembleia Nacional havia sido saqueada do que Louis
Bourbon ao saber do assalto à Bastilha.

Dado o desafio quase existencial que está a ser escalado contra um dos
pilares gémeos da UE, pode-se começar a entender o silêncio quase
universal nas capitais ocidentais – principalmente o seu medo do poder
do exemplo.

Mas por que o silêncio da "esquerda"?

Em parte, é uma sensação de vergonha pelo facto de os trabalhadores
franceses estarem a avançar a espécie de combate que ela nunca sonharia
contemplar. Mas em parte é a ausência de liberalismo entre fileiras
compactas de trabalhadores franceses. Eles rejeitaram com desprezo a
política de identidade que tanto infesta o que passa como esquerda na
maioria dos países ocidentais.

Não se trata de direitos dos gays, de emancipação negra, de modismos de
gênero neutro. Não se trata de requerentes de asilo ou contra o racismo
em defesa de imigrantes ou sobre a Bolívia ou Venezuela ou contra o
triste registo colonial da França nas actuais guerras em África.
Trata-se da classe trabalhadora francesa que confronta o sistema
capitalista de frente e com sangue vermelho nas ruas. Trabalhadores
franceses negros e (predominantemente) brancos, gays e
(predominantemente) heterossexuais, homens e mulheres, que se
auto-identificam apenas como trabalhadores cansados de serem roubados.
Isto tudo é um tanto demasiado... proletário para aquilo que se tornou a
"esquerda".

E tal como Nelson na Batalha de Copenhaga, eles levantam o telescópio
até o seu olho cego e declaram: "Não vejo navios". A esquerda não vê os
franceses em guerra, mas os trabalhadores franceses podem vê-los. E não
é uma visão bela.

18/Dezembro/2019

*[*] Director de cinema, escritor e orador. Foi membro do Parlamento
britânico durante 30 ano. É apresentador de shows na TV e na rádio.

O original encontra-se em
www.rt.com/op-ed/476161-pension-reform-protests-france/
<https://www.rt.com/op-ed/476161-pension-reform-protests-france/> *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/franca/brutalidade_18dez19.html
18/12/2019

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