segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

*“Democracia em vertigem” obriga a lembrar o que deve mudar nas esquerdas*




        *por Roberto Bitencourt da Silva*

O filme “Democracia em vertigem”, dirigido por Petra Costa e que
concorre ao Oscar de melhor documentário, é um bom e importante registro
histórico sobre o curso dos acontecimentos políticos e sociais dos
últimos anos, no Brasil.

Mostra os intragáveis, nauseantes e escroques personagens das direitas,
diretamente envolvidos no golpe de 2016, assim como expõe as ilusões e
crenças liberais do petismo – que configura, ainda hoje, uma espécie de
esquerda Maysa, “meu mundo caiu”…

Em meio a muitas bobagens e percepções incompatíveis com a dureza da
realidade nacional, bem como interesses explicitamente antipopulares,
egoístas e antinacionais, ambos os fenômenos retratados pela diretora,
por intermédio da seleção de opiniões reverberadas por personagens
anônimos e ilustres, as ponderações mais lúcidas refletidas no filme
foram proferidas por um trabalhador.

Indagado pela câmera, em uma praça, um senhor de meia idade
posicionou-se com firmeza e clareza política, mais ou menos nesses
termos, afirmando o que segue: “Querem retirar a Dilma para favorecer os
banqueiros, os latifundiários, os ricos, os americanos, para entregar o
petróleo… para o estrangeiro… Com Lula e Dilma, a gente conseguia umas
migalhas”.

Correspondendo às expectativas então apresentadas pelo entrevistado,
realmente, nem migalhas para o Povo Trabalhador o abjeto e
ultraespoliativo bloco de poder admite mais. É dominação bruta e
explícita das classes dominantes domésticas e gringas o que predomina.

Sendo forçado por ofício a assistir ao filme, sob o estímulo e a
lembrança dessa exigência profissional por minha companheira, recordo-me
de atos, gestos, iniciativas nefastas e lamentáveis omissões políticas,
que tanto marcaram as últimas duas décadas brasileiras, com força de
incidência na composição da triste moldura do tempo presente.

Se o condomínio do poder não pretende admitir sequer a concessão de
“migalhas” -denotando uma voracidade terrível sobre os direitos
coletivos e individuais da maioria e as riquezas e os recursos nacionais
– não deveríamos mais, especificamente sob um enfoque de esquerda,
nutrir ilusões cômodas, imediatistas e infrutíferas para a saída da
desgraça neocolonial em vigor. Diga-se, ilusões e esquemas de
interpretação que atravessam as esquerdas partidárias brasileiras, não
se restringindo ao PT.

Leia também:  Uma causa em causa própria, por Alexandre Coslei
 <https://jornalggn.com.br/artigos/uma-causa-em-causa-propria-por-alexandre-coslei/>

A respeito, refiro-me, em especial, à lamentável prioridade conferida à
ação político-partidária nas instituições; à atenção exclusiva (e
improdutiva) reservada aos processos eleitorais; e à desastrosa
tentativa de aliança entre as aspirações das classes sociais detentoras
do grande capital nacional e internacional e os interesses da maioria da
população, integrada pela pequena burguesia e as classes trabalhadoras –
altas, medianas, populares, oprimidas e marginalizadas.

Ora, romper com a a agenda entreguista e os atores políticos, econômicos
e sociais, que preconizam e aplicam o aprofundamento da nossa
subserviência neocolonial às potências capitalistas, ao capital
estrangeiro, ao imperialismo (palavra-chave que não faz parte do quadro
descritivo do filme de Costa, mas que é categoria vital para entender o
nosso tempo e as nossas vicissitudes nacionais), assim como dar cabo ou
mitigar bastante o poder dos seus vassalos títeres internos, são medidas
imprescindíveis para a defesa da Pátria e do Povo Brasileiro.

Medidas incontornáveis para que possamos existir enquanto Nação, para
que tenhamos capacidade de (re)construir a dignidade nacional e dar
vitalidade aos instrumentos de exercício da soberania nacional e popular.

Iniciativas decisivas para que o País possa controlar e dispor dos
excedentes e das riquezas aqui geradas, em vez de transferi-las para os
países centrais do capitalismo, como também almejando desenvolver
tecnologia própria, visando reduzir ao máximo a dependência
técnico-científica aplicada do exterior.

Para isso, requer-se uma combinação filosófica e programática de
princípios socialistas, nacionalistas e anti-imperialistas. Uma projeção
de ações que demanda árido e hercúleo trabalho político-cultural
renovador das esquerdas, com vistas a incentivar a capacidade
organizacional e mobilizatória popular. Uma práxis política mais
dedicada à irradiação de ideias, dotada de maior desprendimento material
e eleitoral, sem preocupação com conveniências e arranjos políticos de
momento.

Trata-se, precisamente, de um conjunto de iniciativas, comportamentos e
visões políticas, portador de fundamentais (ainda que difíceis) alvos
econômico-sociais, que não se coaduna com o mesquinho horizonte político
registrado pelas lentes e a narrativa do oportuno documentário de Petra
Costa.

Leia também:  Chile: 115 dias ininterruptos de protesto, por Marina Lacerda
 <https://jornalggn.com.br/artigos/chile-115-dias-ininterruptos-de-protesto-por-marina-lacerda/>

*/Roberto Bitencourt da Silva – cientista político e historiador./*

In
GGN
https://jornalggn.com.br/artigos/democracia-em-vertigem-obriga-a-lembrar-o-que-deve-mudar-nas-esquerdas/
9/2/2020

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