quarta-feira, 15 de abril de 2020

O que o vírus nos está ensinando?



 por Fernando Horta

E o vírus, numa destas imponderabilidades da História passou a nos dar
aula sobre coletividade, segurança, distribuição de bens materiais,
ajuda ao próximo e reconhecimento dos trabalhos socialmente relevantes.


      

A lavagem cerebral que o neoliberalismo fez no mundo todo, especialmente
depois da crise de 2008, foi realmente impressionante. Usando um enorme
poder financeiro, o “donos do mundo” atacaram em três pontas distintas:
primeiro nos cursos de economia e administração para promover (e pagar
muito mais) os defensores de suas ideias. De Larry Summers, Carmem
Reinhart e Ken Rogoff até Gregory Mankiw, todos foram catapultados ainda
mais para cima do que suas ideias sozinhas poderiam fazer. Elevados a
famosa “TINA” (there is no alternative), o pensamento neoliberal tomou
os centros de pesquisa e ganhou o selo “científico”, isolando críticos e
tornando-se hegemônicos não pelo poder dos argumentos, mas do dinheiro
que os argumentos defendiam.

Ajudados por “think tanks” conservadores e pela mídia quase monopolista,
estas ideias desceram ao povo com a chancela de verdades plenas e
passaram a orbitar o imaginário de todo aquele que tivesse contato com a
rede mundial de computadores através de plataformas como o youtube.
Jovens pobres e distanciados de qualquer possibilidade de enriquecimento
no mundo capitalista atual passaram a acreditar piamente em conceitos
como “meritocracia”, “trabalho” e “esforço” sem raciocinar a partir de
suas próprias experiências de vida. Foram convencidos de que se eram
pobres, a culpa era exclusivamente sua e que era possível “enriquecer”
apenas trabalhando e se esforçando. Para fazer este Conto da Carochinha
funcionar, o sistema construiu uma escada de “coachs” que falavam em
“sucesso”, “mindset”, “vontade”, como enriquecer e “dar o máximo de si”
enquanto deixavam as “palestras” que davam dirigindo um carro popular de
cinco ou dez anos atrás.

Não importava mais a realidade. O sonho era vendido em todas as
esquinas, ora fantasiado de “franquia”, ora de “empreendedorismo
digital”. A história do sistema que deixava rico aquele que trabalhava e
pobre aquele que não trabalhava foi contada aos quatro cantos da Terra,
ao mesmo tempo que ela se tornava plana. Marx virou um facínora. Lênin,
uma aberração histórica. E até Paulo Freire, o demônio brasileiro.
Note-se que todos os pensadores que defendiam que o sujeito pensasse a
partir da sua própria realidade, que defendiam o materialismo ao invés
de um idealismo juvenil foram atacados. Com a internet, o plano era
vender sonhos a todos, indiscriminadamente.

Tarólogos viraram filósofos. Torturadores, democratas. Nazistas
tornaram-se “lutadores da liberdade” e os pobres responsáveis pela sua
pobreza. Fazer gesto de fuzilamento era sinal de que era “temente a
Deus”, defender o fim da saúde pública era “defender um Brasil melhor” e
acabar com toda a proteção ao trabalho a ao trabalhador passou a ser
entendido como um gesto de coragem pelo “futuro do Brasil”. Professores
viraram vagabundos, herdeiros que nunca trabalharam viraram “joão
trabalhador” e policial assassino “defensor do país”.

Leia também:  A importância da atuação do Estado para mitigar a
insolvência sistêmica
 <https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/a-importancia-da-atuacao-do-estado-para-mitigar-a-insolvencia-sistemica/>

Neste cenário de completa loucura as instituições sucumbiram (fácil
demais). Ministros se tornaram animadores de auditório, e sessões de
tribunal programas de televisão. Juízes viraram acusadores e os
acusadores tornaram-se pastores de uma fé muito peculiar: a que defendia
que qualquer meio e qualquer argumento deveria levar à crucificação.
Militares se tornaram políticos e políticos foram organizados de forma
militar. Seguem ordens estranhas, agridem, atacam em bandos,
organizam-se em pelotões e não dão a mínima para os que sofrem e os mais
necessitados deste país.

Jornalistas, a quem a sociedade entregou a fina tarefa de lutar contra o
poder com apenas a verdade, passaram a ser negociantes de opinião e
vendedores de mentiras. Nada é impossível de se dizer ou patrocinar, não
importa o tamanho da asneira ou do absurdo. Basta pagar bem a quem
outrora fez um juramento ético para com a sociedade. Ninguém mais era
capaz de dizer o que era verdade e o que era mentira. As “fakenews”
começaram nas redações de jornais e revistas antes de se popularizarem
em aplicativos e grupos sociais.

A crise do século XXI era uma crise de toda a humanidade. O planeta não
aguentava o consumo, a sociedade não suportava a concentração de renda e
a democracia não estava preparada pala a vilania das redes sociais
associadas ao dinheiro da expropriação financeira mundial. Nem mesmo o
Papa conseguiu trazer seu rebanho para longe dos ídolos de ouro. Cristo
passou a ser uma palavra suja na boca de charlatões que ao invés de
ensinar compaixão, amor à vida e respeito ao próximo, só fazem é pedir
dinheiro a quem não tem para fazer o contrário do que o galileu um dia
pregou.


Com o caos instalado, muitos de nós – atônitos – não compreendíamos como
havíamos chegado aqui. E tampouco tínhamos qualquer ideia de como trazer
centenas de milhões à razão de novo. A terra era plana, as vacinas
matavam, Deus exigia dinheiro e quem dava amor eram os comunistas (coisa
do diabo). Ser pobre era um pecado mortal e ser rico uma demonstração
inequívoca de genialidade. Matar crianças negras em situação de rua era
“limpeza”, enquanto se chorava copiosamente por animais abandonados. Os
índigenas voltaram a ser “vagabundos” e era preciso incendiar suas
florestas para “desenvolver o brasil”. O nióbio passou a ser solução
para a economia brasileira e o leite de ornitorrinco um dos produtos
mais importantes que o Brasil tinha a oferecer ao mundo, junto com a
exportação de abacate para a Argentina que poderia inverter nossa
balança de comércio.

Eis que surge o vírus.

A forma de vida mais simples e talvez mais primitiva do planeta. Sem
sistema nervoso, ou qualquer capacidade de pensar. O vírus não acredita
em mentiras, nas redes sociais ou em cultos de televisão. Não respeita
ordens de PM com cassetete em punho ou vociferação de político e seus
perdigotos. O vírus não respeita praias particulares, carros importados
com vidro à prova de bala ou casas com vista para a Baía de Guanabara. O
vírus não pergunta em que você votou, quanto você ganha ou quem você
acha que deve morrer.

Ele mata.

E o vírus, numa destas imponderabilidades da História passou a nos dar
aula sobre coletividade, segurança, distribuição de bens materiais,
ajuda ao próximo e reconhecimento dos trabalhos socialmente relevantes.

Se você olhar na história das religiões há um lugar comum. Sempre uma
figura que surge em momentos de crise para liderar a humanidade a um
novo sentir e uma nova forma de pensar. Neste processo ele mata muitos,
ameaça outros vários e salva uns poucos. Talvez o vírus venha a ocupar o
lugar do Messias. Afinal, ele está nos ensinando coisas que já nos
havíamos esquecido.


Se vamos aprender, não sei. Há quem diga que estamos no limiar de uma
grande transformação. Há quem defenda que nada vai efetivamente mudar.
Sinceramente, não sei. Contudo, o banho de pragmatismo e realidade que o
vírus está dando ao mundo é inegável. Reabram os cultos e morram em nome
de Deus. Quebrem a quarentena para salvar a economia para os ricos
poderem sobreviver. Gritem no parlamento para não dar assistência aos
pobres e vejam esses mesmos pobres se levantarem em ódio quando lhes
faltar o médico, o remédio ou o pão.

O vírus não fez nada diferente do que é o sistema capitalista. Apenas
diminuiu o tempo de resposta entre as ações e os resultados. E aqueles
que enganam e mentem, aqueles que sempre enganaram e mentiram não
conseguem mais tempo para convencer que a morte é “boa para o Brasil” ou
que tudo não passa de uma “gripezinha”. Nem mesmo com “lives” e “robôs”
pagos por empresários sonegadores e criminosos.

Não é o juízo final, mas o vírus tá pagando todas as apostas.

In
GGN
https://jornalggn.com.br/artigos/o-que-o-virus-nos-esta-ensinando-por-fernando-horta/
15/4/2020

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