sábado, 19 de julho de 2025

 

BRICS contra a economia rentista

Michael Hudson e Ricard Wolff [*]
entrevistados por Nima Alkhorshid

Rendimento não merecido, composição de Nick Youngson.

NIMA ALKHORSHID: Olá a todos. Hoje é quinta-feira, 10 de julho de 2025, e os nossos amigos Richard Wolff e Michael Hudson estão de volta. Bem-vindos.

RICHARD WOLFF: É um prazer estar aqui.

NIMA ALKHORSHID: Michael, deixe-me começar com o que está a acontecer com o BRICS lá no Rio de Janeiro. Eles começaram a cimeira e estão a discutir muitos assuntos, mas uma das principais questões é a tarifa e a forma como os Estados Unidos estão a lidar com o resto do mundo. O senhor está a levar isso muito longe com o BRICS.

MICHAEL HUDSON: Bem, acho que, no que diz respeito à resposta dos BRICS, ela vem realmente da Rússia e da China.

O presidente russo, Putin, e o ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, foram os mais explícitos ao esclarecer exatamente o que os BRICS precisam e a razão óbvia para isso, ou seja, que a Rússia e a China são os principais alvos dos ataques dos EUA, o que inclui um ataque aos BRICS. Acho que a ruptura com o controlo dos EUA se tornou urgente neste momento devido às ações do governo Trump.

Mas o resto dos BRICS é mais reativo do que proativo. Estão a queixar-se, mas não implementaram políticas específicas para se libertarem. Eles percebem algo que Trump percebe (enquanto economistas e o público evitam reconhecer):   que a era americana do pós-guerra acabou. Mas ainda há muito pouca discussão sobre a criação de uma alternativa real.

O relatório final dos BRICS enfatizou que eles querem quotas mais altas no Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, mas isso não oferece uma alternativa à visão neoliberal dos EUA. Não fala realmente sobre que tipo de instituições alternativas eles precisam para evitar toda a armadilha do desenvolvimento neoliberal que foi imposta pelos EUA em 1945 e os tornou muito ricos nos últimos 80 anos, mas que já não está a enriquecer os EUA.

Agora, de repente, os Estados Unidos estão a mudar todas as regras. E o facto é que os BRICS ainda não decidiram as suas próprias regras. As únicas alternativas de liderança que vejo são as do líder russo.

Deixem-me falar sobre o que está a acontecer nos Estados Unidos para que eu possa contextualizar os BRICS. O que está a acontecer nos Estados Unidos é muito parecido com o que aconteceu com a União Soviética na década de 1990, quando estava a se desintegrar. Há uma corrida para pegar o que puder, um saco de surpresas. A elite do pós-guerra vê que o jogo acabou e está a agarrar tudo o que pode às custas da economia. Estão a dividir tudo, aumentando os preços monopolistas, reduzindo os impostos sobre si mesmos, cortando programas governamentais. A guerra de classes está realmente de volta.

Acho que o mesmo está a acontecer na Europa. As ações das empresas militares europeias estão a subir muito. Os governos estão a reduzir os gastos públicos e a criar uma crise social. Na Grã-Bretanha, na Alemanha e na França, os salários estão a diminuir. O mesmo está a acontecer no Japão. Portanto, os aliados dos Estados Unidos estão a passar pelo mesmo tipo de colapso que os Estados Unidos.

A questão é:  o que substituirá esse novo tipo de apropriação, em que os Estados Unidos dizem:   “Bem, não podemos seguir as velhas regras do livre comércio e investimento que nos enriqueceram nos últimos 80 anos. Vamos impor tributos a vocês. O que vão fazer a respeito?”

A questão é: o Ocidente pode impedir que a maioria global (que considero mais importante do que os BRICS) se torne um novo centro próspero, crescendo sem o controlo dos EUA e tornando-se beneficiária do seu comércio e investimento, em vez dos investidores estrangeiros?

Tudo o que os Estados Unidos podem fazer para impedir isso neste momento é agir como um destruidor. E dentro dos BRICS, estão a tentar usar, penso eu, a Índia e o Brasil para enfraquecer qualquer ruptura real com a política dos EUA.

Acho que a imposição de tarifas de 50% sobre o Brasil ontem por Trump foi uma tentativa de intimidá-lo para se submeter aos Estados Unidos. E ele disse que, se o Brasil impuser tarifas recíprocas aos Estados Unidos, ele aumentará as tarifas sobre o Brasil para mais de 50%.

Depois de ouvir a opinião de Richard, quero discutir o que acho que a maioria global e os BRICS realmente precisam.

NECESSIDADE DE PLANO

RICHARD WOLFF: Ok. Concordo, mas eu abordaria isso de uma maneira um pouco diferente. Fiquei impressionado com o que os BRICS alcançaram. Concordo com Michael, o plano para superar a situação atual ainda não existe. Não acho que eles tenham chegado a uma conclusão. Acho que eles próprios não têm certeza. Acho que há muitas divergências e divisões entre eles que ainda não foram resolvidas. [Interrupção]

MICHAEL HUDSON: Bem, a chave é que o mundo está a dividir-se em duas partes. Os diplomatas dos EUA conseguem ver isso, eles vêem isso como uma divisão civilizacional, mas os BRICS e a maioria global não estão a tratar isso dessa forma. Todos sabem que há uma ruptura com o passado, mas os BRICS não têm uma visão clara de que estão na mesma posição em que a Grã-Bretanha, a França e a Europa estavam há 200 anos, quando tentavam libertar-se do feudalismo, da aristocracia hereditária que cobrava rendas fundiárias – o capitalismo industrial queria libertar-se de tudo isso. É isso que os BRICS terão de fazer.

RICHARD WOLFF: Deixe-me salientar que não devemos ter pressa. Michael tem razão, mas na verdade só se passaram cerca de 16 ou 17 anos desde que os BRICS começaram. A princípio estavam apenas a dar os primeiros passos. Agora estão claramente em andamento. Cresceram em número. Têm dois níveis de participação, o de membro e o de parceiro, se bem entendi a sua linguagem. E atingiram esse marco há uma ou duas semanas, quando o valor total do comércio entre eles ultrapassou US$1 milhão de milhões. É um desenvolvimento impressionante.

Todos temos que agradecer ao Sr. Trump, porque o seu programa tarifário foi um grande impulso para o aumento do comércio entre eles (já que, obviamente, quando comercializam entre si, as tarifas do Sr. Trump não têm qualquer impacto, pelo menos não diretamente). Por isso, estou bastante impressionado, tendo em conta todas as suas diferenças em muitas, muitas questões, que tenham conseguido manter-se unidos.

A segunda coisa que eu diria é a prática de agarramento à força ("grab-itization"). Gosto do termo, se foi o Michael que o inventou; agarrar tudo é uma boa metáfora, mas gostaria de o ampliar um pouco mais.

O jogo das tarifas tem várias vantagens. Em primeiro lugar, pode exigir uma certa quantia em tributos. No entanto, lembremo-nos que, no final, os tributos serão pagos pelos americanos ao seu próprio governo falido. Ainda não sabemos quanto será financiado pelos outros países.

O Sr. Trump adora falar sobre tarifas, sobre o que elas fazem aos outros países. Mas a primeira vítima de uma tarifa são os americanos que têm de a pagar, não os estrangeiros. E é uma questão em aberto, dependente de muitas variáveis, quanto da tarifa que o americano que a paga será capaz de repassar para o país estrangeiro para baixar os seus preços e compensar o efeito das tarifas. Parte disso irá acontecer. Mas grande parte do efeito será o aumento dos preços nos Estados Unidos.

Deixem-me dar um exemplo que se tornou popular há 24 horas. Acontece que a grande maioria (90% ou mais) dos sapatos e ténis que os americanos usam são importados. São importados principalmente de cerca de seis países, todos os quais viram enormes tarifas impostas sobre eles.

A estimativa das empresas americanas de calçado é que terão de aumentar os preços em cerca de 37% para lidar com as tarifas de 40 a 50 a 60% que foram impostas a muitos dos países que produzem calçado. Agora, essa parte da inflação ainda não atingiu os Estados Unidos, mas já está a ser considerada nos cálculos de todas estas empresas.

Portanto, penso que é importante compreender que o efeito das tarifas, em termos dos EUA versus os BRICS ou o resto do mundo, ainda não está resolvido.

Em seguida, a imposição destas tarifas – é claro que Trump compreende esta parte – é uma forma de quebrar qualquer unidade, por exemplo, entre o Vietname e a China em torno de certas questões, ou a unidade que os BRICS estabeleceram entre os seus membros e parceiros. Porque o que isso faz é incentivar os países a competir entre si pela preferência dos Estados Unidos.

Isso é claramente divisivo para os BRICS. Significa que eles talvez estejam a dizer uma coisa enquanto fazem acordos com Washington nos bastidores. Vamos descobrir isso nos próximos meses e anos. Mas seria ingênuo não pensar que isso está a decorrer.

É possível ver o impacto dessa estratégia específica porque a sua maior vítima é a Europa, onde não há união porque esses países não confiam uns nos outros para não fazerem acordos secretos com os Estados Unidos. O continente não confia na Grã-Bretanha e vice-versa. A França e a Alemanha não confiam uma na outra. Cada uma teme que, se for muito longe na oposição a Trump, ele favoreça as outras em detrimento dela. E assim por diante.

A Europa tem sofrido com o fracasso da forma como saiu do feudalismo – todo esse barulho nacionalista tem-lhes custado muito caro desde então.

Finalmente, outra dimensão. Se olharmos atentamente para o que Trump disse sobre a ameaça ao Brasil e a tarifa de 50%, o argumento que ele apresentou foi que quer impedir a investigação sobre Bolsonaro. Ele não está satisfeito com isso. Ele quer aliados lá e quer puni-los por causa dos seus procedimentos judiciais internos, o que é uma justificativa notável para uma tarifa. Quero dizer, não estamos habituados a ver esse tipo de coisa. Isso teria sido mantido em segredo, se fosse um objetivo em tudo isso.

Mas, dada a forma como o Sr. Trump trabalha, tudo isto parece ser uma confusão, uma confusão de tarifas entrelaçadas com compromissos ideológicos, entrelaçadas com objetivos políticos de longo prazo que são mal definidos e provavelmente impossíveis de alcançar.

Por isso, sinto-me levado a fazer o que o meu amigo Yanis Varoufakis faz, encontrar o método na loucura. Estou contente por estarmos a fazer isso, e devemos fazê-lo. Mas não devemos esquecer que há muita loucura aqui e muitos objetivos conflitantes que não vão funcionar. E isso vai ajudar-nos a evitar ver demasiada lógica, demasiada gestão. E assim acabo por não ser tão crítico em relação aos BRICS, por mais fácil que seja fazê-lo. Podiam fazer mais? Sim. Podiam ter ido mais longe? Sim.

Mas até mesmo Lula, se eu puder concluir sobre isso, fez uma coisa interessante no seu discurso mais recente que li. Ele diz: “Não sou daqueles que atacam a globalização. O problema não foi a globalização”. O problema foi – ele não usa essas palavras, mas vou colocá-las na boca dele – o imperialismo americano. Os Estados Unidos usaram uma economia globalizada para seus próprios fins. Lula quer que todos entendam que a globalização ainda está na agenda e que ele, pelo menos, é a favor dela.

Vejo nisso o eco dos chineses e de outros que apoiam o livre comércio, reposicionando o mundo em torno dessa velha luta capitalista, livre comércio versus protecionismo. Eles estão a tornar-se habilmente os defensores de um regime de livre comércio contra o protecionismo estreito e retrógrado do MAGA.

Acho que essa é uma imagem muito poderosa, que muda o que é o mundo avançado e o que é o mundo menos desenvolvido. Ela não substitui a estratégia de desenvolvimento económico (que ainda precisa ser definida), mas reconceitua de forma muito inteligente o que está a acontecer no mundo em termos de globalização e protecionismo. E isso é muito diferente da forma como os Estados Unidos entendem a economia mundial.

MICHAEL HUDSON: Acho que tem razão. O que está realmente em causa é o tipo de sistema económico que o mundo vai ter, pelo menos o mundo fora dos Estados Unidos. O problema não é apenas o capitalismo. É particularmente a versão europeia e americana do que o capitalismo se tornou, que é muito diferente de como começou.

Os países da maioria global enfrentam hoje um problema muito semelhante ao que a Europa enfrentou quando se libertou do feudalismo, do controlo do passado, do controlo de uma aristocracia predatória e hereditária que detinha as terras, cobrava rendas e estabelecia monopólios para pagar as suas dívidas externas e tinha um sistema bancário predatório. Todo o sistema teve de ser revisto. Foi isso que tornou o capitalismo industrial revolucionário.

O capitalismo industrial queria libertar as economias de todo esse fardo da classe rentista que havia surgido do feudalismo. E a solução de Adam Smith, dos fisiocratas franceses e do resto dos economistas clássicos foi esta:

Se tributarmos os rentistas (que vivem da renda económica, do rendimento não merecido (unearned income))... se tributarmos a terra, se tributarmos os monopólios e impedirmos os monopólios e os tornarmos domínio público, então nos tornaremos uma economia de baixo custo.

E se a Inglaterra vai ser a oficina do mundo, não podemos arcar com os custos dessa classe rentista pós-feudal. Vamos ter de nos livrar deles.

Bem, vejamos a situação atual. Assim como a Grã-Bretanha, a França e a Alemanha tiveram de libertar as suas economias do fardo rentista do feudalismo, os países do BRICS e a maioria dos países da maioria global precisam de se libertar da renda herdada da época do colonialismo europeu e do seu controlo credor.

Mas o problema é que esse controlo rentista é internacional. É estrangeiro. É americano e europeu muito mais do que de investidores internos. São as empresas multinacionais que assumiram o controlo dos recursos naturais, dos recursos minerais, do petróleo e da terra. Foram os investidores estrangeiros que compraram os monopólios das infraestruturas naturais e estão a sangrá-los de tudo o que podem. E são os investidores estrangeiros que financiaram a banca local e controlam o sistema de crédito local segundo os princípios neoliberais.

FALTAM ECONOMISTAS CLÁSSICOS NO SUL GLOBAL

O que é único hoje é que os BRICS não chegaram à mesma solução que os economistas clássicos chegaram para libertar o capitalismo industrial no início do século XIX de toda essa estrutura feudal. É isso que precisa ser feito, mas eles não têm um corpo de economistas clássicos.

A maioria dos seus economistas, funcionários e administradores foram enviados para universidades americanas para estudar. Quando fazem um curso de economia, não aprendem nada sobre economia clássica; não existe renda económica; todos ganham o que têm; não existe exploração.

Enquanto que a economia clássica era toda sobre exploração. É isso que é a renda económica. É rendimento não merecido.

Hoje, a renda não merecida não é paga simplesmente às maiorias globais ou à classe dominante interna dos BRICS. É paga a investidores estrangeiros americanos e europeus, multinacionais. E se fizessem o que a Europa fez para se tornar uma economia industrial competitiva, poderiam então dizer:

“Temos soberania. E a nossa soberania será fazer exatamente o que Adam Smith e John Stuart Mill e seus seguidores disseram. Vamos tributar a renda económica da indústria petrolífera, da indústria mineira. Vamos tributar os monopólios e teremos as nossas próprias leis antitrust para que os investidores estrangeiros possam obter lucros normais sobre o que investem, mas não vamos deixá-los obter lucros exorbitantes e renda económica.»

E vamos definir o rendimento que obtêm, o rendimento tributável, como o seu fluxo de caixa global. Não vamos permitir que os investidores estrangeiros digam que não obtiveram qualquer rendimento porque gastaram todo o nosso rendimento a pagar juros a nós próprios e a cobrar depreciação sobre o petróleo e os minerais que esgotam, para os quais existe uma dedução fiscal para que não paguem quaisquer impostos.»

Todo o sistema que foi implementado para promover a revolução ideológica anticlássica e pró-rentista que ocorreu no início do século XX e floresceu sob Margaret Thatcher e Ronald Reagan tem de ser substituído pelo capitalismo industrial do final do século XIX, evoluindo para o socialismo, para uma economia mista público-privada, onde o governo regulamentava os monopólios naturais e tributava a renda econômica.

A ideia dos economistas clássicos de um mercado livre, como discutimos anteriormente, era um mercado livre de renda econômica, não livre para os rentistas ou livre de qualquer tributação ou regulamentação governamental da economia.

Então, suponha que os países do BRICS dissessem:   “Vamos desenvolver a nossa indústria da mesma forma que a Inglaterra, a França, a Alemanha e os Estados Unidos desenvolveram a sua, com uma economia mista público-privada, impedindo que a renda económica aumentasse o custo de produção. E se não fizermos isso, não poderemos industrializar-nos”.

«E, a propósito, o outro fardo feudal que temos é a dívida externa com que fomos sobrecarregados devido à forma como a ordem económica pós-guerra foi criada em 1945.»

Os países do Sul Global emergiram da Segunda Guerra Mundial com reservas externas muito abundantes porque venderam matérias-primas aos Aliados durante a guerra. E a forma como os Estados Unidos conceberam o FMI e o Banco Mundial e os acordos de comércio livre levou os países do Sul Global a perder as reservas que tinham acumulado durante a guerra, caindo na dependência comercial e, cada vez mais, na dependência da dívida.

Tudo isso tem de ser descartado, assim como a Europa descartou o fardo feudal, o feudalismo que tinha. E a luta para se libertar do investimento estrangeiro que (como disse Lula) é coordenado principalmente pelos Estados Unidos é a contrapartida de como a Europa alcançou a sua prosperidade.

LIVRE COMÉRCIO JÁ NÃO AJUDA OS EUA

O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Lavrov, fez um discurso maravilhoso sobre a necessidade de estabelecer mecanismos de comércio exterior que o Ocidente não possa controlar, como corredores de transporte, sistemas de pagamento alternativos e cadeias de abastecimento. E, como exemplo, citou como os Estados Unidos paralisaram a Organização Mundial do Comércio, que eles mesmos criaram com base no livre comércio, mas agora o livre comércio não ajuda os Estados Unidos porque os Estados Unidos estão desindustrializados.

Vou citar o que Lavrov disse:

"Quando os americanos perceberam que o sistema globalizado que criaram – baseado na concorrência leal, nos direitos de propriedade invioláveis, na presunção de inocência e em princípios semelhantes, e que lhes permitiu dominar durante décadas – também começou a beneficiar os seus rivais, principalmente a China, tomaram medidas drásticas. Quando a China começou a superá-los no seu próprio terreno e pelas suas próprias regras, Washington simplesmente bloqueou o órgão de apelação da OMC. Ao privá-lo artificialmente do quórum, tornaram inativo este mecanismo fundamental de resolução de litígios e isso permanece assim até hoje".

E se os BRICS e os países da maioria global dissessem que o que a China fez, de certa forma, seguiu a lógica exata do capitalismo industrial quando este estava a emergir?

A China manteve a propriedade e a terra no domínio público. Não permitiu que os monopólios fossem privados. Não permitiu que um sistema bancário privado financeirizasse a economia e concedesse empréstimos para aquisições de empresas e compra de corporações industriais, utilizando os seus lucros para recompra de ações e pagamento de dividendos. A China fez exatamente o que Adam Smith, John Stuart Mill e os capitalistas industriais queriam fazer, além de evoluir da mesma forma que o capitalismo industrial.

Para que os BRICS se tornem independentes desse sistema que os levou à dívida, à dependência comercial e alimentar, eles teriam que dizer:   a China forneceu uma versão moderna do modelo clássico de mercado livre, livre de rendas exploradoras. E nós vamos seguir esse modelo.

Mas isso exige que retiremos a propriedade estrangeira do nosso petróleo, das nossas matérias-primas, dos nossos recursos, dos nossos monopólios. E se não podemos nacionalizá-los – sabemos que isso está fora de questão –, pelo menos podemos tributar todos os seus rendimentos não auferidos, os rendimentos não auferidos que David Ricardo, Smith, John Stuart Mill, Marx e Veblen, todo o século XIX, se esforçaram tanto para definir.

RICHARD WOLFF: Deixe-me abordar isto de uma forma ligeiramente diferente. Aqui, vou basear-me em Marx e na sua forma particular de lidar com isto.

Pode dizer-se que a ruptura do feudalismo, seja na forma de Smith e Ricardo ou de qualquer outro, surge do reconhecimento de que a renda da terra tem muito a ver com o crescimento da população.

É por isso que um metro quadrado em Nova Iorque custa muito mais do que um metro quadrado no Nebraska, certo? Não se trata do solo. Não se trata dos investimentos que foram feitos na terra ou não. Basicamente, é que cada vez mais pessoas obtêm vantagens por estarem numa população aglomerada, o que permite a quem possui a terra simplesmente aumentar a renda, e ela torna-se cada vez maior.

Pode-se pensar que as pessoas antifeudais tiveram um momento de eureka. E nesse momento, perceberam que, para ter acesso à terra, não é necessário um senhorio (landlord). Por outras palavras, pode-se, figurativamente ou não, livrar-se do senhorio e ainda assim ter a terra, que é o que o resto da população ou o resto da economia precisa.

Bem, Marx, num momento de humor, disse que a única diferença entre ele e as pessoas que perceberam o que acabei de dizer é que ele quer acrescentar que exatamente o mesmo se aplica ao capital.

Precisamos de máquinas? Absolutamente. Precisamos de fábricas e escritórios? Sim. Precisamos dos proprietários dessas coisas, que podem ficar com uma grande parte da nossa produção para nos dar acesso a elas? Não. Nós podemos produzir essas coisas.

Sabemos disso porque já o fazemos. São os trabalhadores que fabricam as máquinas. São os trabalhadores que constroem os edifícios. São os trabalhadores que fazem tudo isso. Então, se são os trabalhadores que fazem isso, por que haveria outros que não são trabalhadores a acumular receitas? Não faz mais sentido, diz Marx, do que um proprietário que herdou do avô um determinado terreno poder desviar uma enorme quantidade de receitas.

Então, a conclusão, tal como disse Michael, é que se essa receita fosse adquirida por uma agência da comunidade que quisesse o desenvolvimento económico, então, é claro que usaria essas receitas para esse fim. E essa é a velha ideia socialista. As pessoas fazem o trabalho, produzem bens de consumo para o seu próprio consumo, produzem meios de produção para se tornarem mais produtivas como comunidade.

Para que esta história seja contada, não é necessário que uma classe social separada reúna nas suas mãos a receita e a dedique exclusivamente ao crescimento do bem-estar da comunidade, se esse fosse o seu objetivo. Mas sabemos que, se existe tal classe, o capitalismo garante que o objetivo que ela perseguirá com a receita que obtém é a rentabilidade. E a rentabilidade não tem nada a ver com o que uma comunidade de trabalhadores faria se fosse ela própria a mandar aqui.

Por isso, deixem-me propor aos BRICS, tal como Michael fez, um foco estratégico que pode fazer uma diferença real:

O socialismo que produziram até agora, um governo com regulamentação e propriedade massivas (como na China, por exemplo), é um passo, provavelmente um passo necessário... mas não é um passo suficiente. O que têm de fazer é ir mais longe.

Têm de colocar realmente os trabalhadores no comando, não indiretamente através da eleição de alguns... não, não, não. Têm de, na base, em todos os escritórios, em todas as fábricas, em todas as lojas, colocar as pessoas que lá trabalham no comando. Já não existe uma classe capitalista. Na verdade, superaram a divisão de classes porque o empregador e o empregado tornaram-se a mesma pessoa. Um deles é um indivíduo, o outro é um membro do coletivo.

Não há mais senhor vs escravo, não há mais senhor vs servo e não há mais empregador vs empregado. Então teremos a microfundação para tornar possível aquilo de que Michael está a falar.

Mas isso significa que nos países do BRICS – e não vejo outra saída para isso – na medida em que ainda existirem organizações de empregadores e empregados, será necessário ir além delas. E haverá resistência por parte dos empregadores, sejam eles particulares ou funcionários públicos. Terá de engolir o sapo, não em nome de uma ideia abstrata, mas em nome da base necessária para essa organização alternativa da economia mundial de que Michael fala e para a qual os BRICS estão a caminhar, mas ainda não chegaram.

MICHAEL HUDSON: Isso deixa a questão: como se chega de onde se está agora ao que descreveu como o sonho final do socialismo?

Marx tratou disso. Ele foi realmente o inventor da contabilidade de custos para o capitalismo industrial.

Ele disse que o capitalista industrial era muito mais do que um senhorio. A renda do senhorio não acrescentava valor. Acrescentava ao preço, mas não havia custo de produção para a terra, porque a terra era fornecida gratuitamente pela natureza. À medida que a economia se torna mais próspera e a população cresce, há um aumento não merecido. O senhorio não fez nada.

Mas, disse Marx, o capitalista faz algo. O capitalista organizava a indústria. E Marx incluía o lucro do capitalista como valor, não como renda económica, porque dizia que o papel dos capitalistas industriais é ganhar dinheiro criando mais-valia, empregando mão-de-obra, vendendo os seus produtos com lucro, mais do que têm de pagar à mão-de-obra e ao custo de produção.

Mas a dinâmica do capitalismo industrial era que a empresa, para crescer, reinvestia os seus lucros em mais investimento de capital e mais emprego. E, nesse sentido, ele disse que o capitalista desempenha um papel produtivo no capitalismo. Ele diz que, em última análise, à medida que o capitalismo desempenha esse papel de criar indústria em uma escala cada vez maior, ele está a preparar toda a estrutura para que os socialistas assumam o controle e, em determinado momento, haja uma gestão socialista.

Ele também descreveu toda a estrutura da renda do capitalista. Aqui está a parte ganha da renda, os lucros reais sobre o investimento de capital necessário por fábrica. Mas o custo de produção da indústria capitalista incluía a renda da terra e outras coisas, outros fatores — e estes não deveriam ser dedutíveis dos impostos.

Assim, Marx refinou toda a ideologia fiscal de Adam Smith, Ricardo e John Stuart Mill e deu sentido a tudo isso, dizendo que o capitalista industrial era a chave para a transição para o socialismo.

Desta forma, a China permite o investimento privado com fins lucrativos, o capitalismo privado em pequena escala, mas não permite que os multimilionários se desenvolvam e não permite que o capitalismo industrial pela sua classe inovadora – que é muito inovadora – se financeirize e se transforme em capitalismo financeiro, que acabou por destruir e desindustrializar o capitalismo nas economias ocidentais.

Acho que esse é o panorama geral das economias dos BRICS e do Sul global.

Mas, para fazer isso, eles precisam de uma ideia completa de contabilidade de custos e de como tributar exatamente essas empresas, para que possam dizer:   não vamos nacionalizar vocês, apenas vamos garantir que ganhem realmente o que produzem. Se fizer um investimento de capital, é permitido obter – sobre o valor do capital físico, equipamento de mineração e equipamento de perfuração de petróleo – um lucro regular de, digamos, seis a oito por cento. Não é permitido obter lucro sobre os vastos investimentos que pagam renda económica que fez. Isso não é um investimento.

Estamos a lidar com um conceito totalmente diferente de rendimento nacional, produto nacional bruto e eliminação de transferências para investidores estrangeiros que não fazem parte do produto, mas são essencialmente uma transferência, um tributo à classe rentista que se formou em grande parte.

Para fazer isso, eles teriam que ler os volumes dois e três de O Capital, para ver como a economia clássica realmente evoluiu no século XIX.

RICHARD WOLFF: Sim, acho que não discordamos, exceto que eu quero enfatizar a mudança de ajuste em nível micro que reorganiza radicalmente todas as empresas para que elas possam, juntas, fazer o que você acabou de dizer.

No interesse de reproduzir o seu poder e a sua situação social, eles precisam ter regras em vigor para que, por exemplo, nenhuma empresa, mesmo que organizada como uma cooperativa, possa ter uma posição de monopólio. Para que essa [posição] não esteja disponível.

Considerando que sabemos que a natureza competitiva do capitalismo sempre produz vencedores e vencidos e não tem razão para não continuar até que restem apenas uma ou duas ou três empresas monopolistas ou oligopolistas. A produção de um monopolista é intrínseca ao sistema capitalista. Ele os produz e reproduz constantemente.

É por isso que existem Jeffrey Bezos, Elon Musk e todos os outros.

Não só não há nada que o impeça, como o sistema está montado de tal forma que todos os capitalistas que já conheci sonham em ter «quota de mercado». Bem, essa é uma ideia nada subtil. Trata-se de conseguir a capacidade de aumentar o preço acima do que seria se fizesse o tipo de cálculo de custos que o Michael acabou de especificar.

Se queremos fazer o nosso trabalho, temos de especificar a economia política que poderia estabelecer a tarefa de limitar o monopólio.

E nós tentámos isso. Tivemos a lei Sherman Antitrust em 1890. Tivemos a lei Clayton em 1914. Foram fracassos espetaculares. Não impediram a monopolização. Nunca impediram. É uma fraude. Temos um departamento antitrust que é outra fraude que não faz o seu trabalho. E não o faz, seja republicano ou democrata, porque isso está incorporado no sistema. O financiamento bancário depende do tipo de quota de mercado que se pode prometer ao banqueiro que se pode obter com um empréstimo que permite eliminar os concorrentes. Isso não seria possível se se organizasse a base de forma diferenciada. Eles não permitiriam porque todos poderiam ser vítimas disso de uma forma que poderia realmente prejudicá-los.

Penso, portanto, que estes são os próximos passos de um BRICS.

Mas há outra dimensão nisto que não quero perder e gostaria de ouvir os comentários de Michael. Parece-me que os BRICS já são uma transformação histórica. O facto é que – sei que já fiz isto antes, mas quero que pensemos nisso – se somarmos o PIB de todos os países do BRICS atualmente, chega-se a cerca de 35% do PIB global. Se somarmos o PIB do G7, ou seja, os Estados Unidos e os seus principais aliados, estamos a falar de 27 ou 28%.

Para mim, é isso. Acabou. Já não estamos onde estávamos nos 80 anos desde Bretton Woods, uma economia mundial em que os Estados Unidos e os seus aliados eram a potência económica global que moldava o mundo e, com isso, a potência política, militar e ideológica. Não somos o centro económico da economia mundial. Os Estados Unidos não são. E esta diferença foi cruzada em 2020.

Aqui estamos nós, cinco anos depois, e a diferença só aumentou a favor dos BRICS e contra os Estados Unidos.

Isso, na minha opinião, representa uma pressão implacável sobre o Sr. Trump, sobre todos neste país, quer admitam o que acabei de dizer como uma estatística ou não. Consciente ou inconscientemente, eles têm uma sensação sinistra de que a própria marcha do tempo é agora sua inimiga.

Então, surge um desespero que produz essa mentalidade de "agarramento", com a qual Michael começou hoje. Mas essa é uma mentalidade fundamentada numa transformação material real.

Suspeito que, em algum lugar, os BRICS também sabem disso. Eles não sabem muito bem o que fazer – Michael está certo. Por outro lado, eles estão a negociar mais entre si do que nunca. E não se trata apenas de comércio de emergência. Por outras palavras, não é apenas a Rússia a vender petróleo e gás à China e à Índia porque não podem ser manipulados.

Agora, uma palavra final: porque Michael mencionou o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Lavrov. No mesmo discurso ao qual Michael se refere, Lavrov apresenta uma estatística, e eu verifiquei que está correta. Aqui está e é algo para se pensar.

BM: UCRÂNIA E ÁFRICA

Desde o início da guerra na Ucrânia, no início de 2022, o Banco Mundial, uma instituição ocidental criada pelas reuniões de Bretton Woods, concedeu à Ucrânia o dobro do dinheiro que concede anualmente à África. Agora, deixem-me lembrar-vos:   a população da Ucrânia é de 39 milhões de pessoas. A população da África é de 1,55 mil milhões de pessoas.

Não há qualquer justificação para tal comportamento, a não ser que se esteja desesperado e a mobilizar todos os recursos disponíveis, sem se importar com as consequências. É um comportamento muito diferente daquele a que estamos habituados. É como se o Sr. Trump tivesse acabado com a ajuda externa à África e ontem, em seguida, convidado aqueles tristes cinco líderes para conversar com ele.

Duas vezes mais para a guerra na Ucrânia, que afeta 39 milhões de pessoas, do que o que se dá anualmente a 1,55 mil milhões.

É impressionante se pensarmos nisso. Pense na mensagem de desenvolvimento económico aqui. Ajudar a Ucrânia a basicamente destruir tudo porque o dinheiro é usado para a guerra, em vez de ajudar 1,5 mil milhões de pessoas que são vítimas do subdesenvolvimento económico por excelência no mundo em que vivemos. É realmente de tirar o fôlego.

MICHAEL HUDSON: Richard, a população [beneficiada] da Ucrânia é de apenas 1000 pessoas. Essas 1000 pessoas recebem todo o dinheiro do FMI, todo o dinheiro do Banco Mundial. Esse dinheiro não é gasto com o resto da população em geral. Vai para a oligarquia cliente. Essa é a chave.

Mas quero voltar ao que falaste, a marcha do tempo. A questão é: como é que o governo americano, que parece ser o mais proativo neste momento sob Trump, impede que a marcha do tempo avance numa direção que não é do interesse nacional americano? Como é que impede o desenvolvimento dos BRICS? É realmente isso que acho que deveria ter sido o foco da conferência no Brasil.

Acho que o plano dos EUA é, de facto, como você aponta, baseado no monopólio. Na verdade, o presidente do Federal Reserve, esta semana, reforçou muito o seu argumento sobre os preços monopolistas. Ele disse: “Donald Trump está a tentar forçar-me a baixar as taxas de juro [mas eu quero mantê-las inalteradas, dado o efeito incerto das tarifas] para impedir o aumento dos preços”. Mas o aumento dos preços não é causado pela criação de dinheiro. O aumento dos preços não tem nada a ver com a criação de dinheiro. As empresas estão a perceber que não há qualquer aplicação da lei antitrust, que podem simplesmente explorar, explorar e explorar os seus clientes. Os supermercados estão a explorar. Todos estão a explorar os clientes. Foi isso que ele disse. E, claro, ele tem razão.

Numa escala maior, pergunto:   como os EUA vão sobreviver como um país monopolista, impondo aos BRICS e ao resto do mundo seus direitos monopolistas e os privilégios rentistas relacionados, que são exclusivamente favoráveis a si mesmo no comércio e nos investimentos mundiais?

Bem, a América de Trump quer tornar outros países dependentes da tecnologia da informação americana, das suas plataformas de Internet, da sua tecnologia militar. Quer tornar-se ela própria o grande poder monopolista sobre outros países. Se não conseguir alcançar o seu domínio através da industrialização, pode alcançá-lo através do capitalismo monopolista pós-industrial, que acaba por ser a fase final do capitalismo financeiro neste caso.

Assim, para Trump e para os Estados Unidos, o Estado de direito baseia-se num sistema que permite exigências unilaterais dos EUA para impor sanções comerciais e financeiras, ditando como e com que países estrangeiros podem negociar e investir entre si.

Além disso, mencionou na primeira parte da sua palestra:   quem vai pagar estas tarifas? Serão os consumidores americanos ou os exportadores estrangeiros?

Bem, muitas dessas tarifas não serão pagas porque o comércio deixará de existir. Os estrangeiros não podem pagar para ter acesso ao mercado americano pagando essas tarifas, e os americanos não podem comprar dos estrangeiros com essas tarifas. Haverá uma retração do comércio mundial em todos os tipos de conexões que foram estabelecidas nos últimos 80 anos.

Haverá uma interrupção tão grande no comércio que a verdadeira questão que os BRICS enfrentarão é:   agora que não podemos exportar para os EUA e não vamos importar dos EUA, como faremos nosso comércio e nossos investimentos entre nós, ao invés de fazê-lo com os Estados Unidos? É isso que eles têm que fazer.

Tudo isso exigirá a criação de novas instituições internacionais, em que a Rússia e a China estão na liderança para tentar promover.

Os Estados Unidos estão a tentar impedir isso. Estão a fazer tudo o que podem para impedir a criação de qualquer alternativa. É isso que os próprios americanos chamam de choque de civilizações.

A ideia americana de civilização é a imposição da economia neoliberal financeirizada. E a alternativa é a autocracia, a ditadura, como os Estados Unidos diriam que existe na China.

Mas a ideia americana de democracia é a ditadura de clientes. Esta não é a democracia dos países que estão a crescer e a rejeitar ditaduras de clientes e a assumir a sua soberania.

Estamos a lidar com uma luta não entre a civilização americana e britânica, mas entre a barbárie e o próprio princípio da civilização baseada no direito internacional, na igualdade das nações em termos de soberania, na liberdade da interferência estrangeira, nas regras da guerra, em todas as regras que foram destruídas pela política americana nos últimos anos.

RICHARD WOLFF: Gostaria, nos poucos minutos que nos restam, de usar o velho argumento do livre comércio contra tudo isso.

Os Estados Unidos estão a fechar-se com um muro de proteção. Todos estes preços vão subir em virtude das tarifas que lhes são impostas, mais ou menos. E o importante a ter em mente é que no resto do mundo que não está a seguir o exemplo, os preços serão mais baixos do que nos Estados Unidos. Não na mesma medida em todos os lugares, mas mais baixos.

Isso começa a ser incorporado nos sistemas de preços externos, que se tornam cada vez mais diferenciados dos preços protegidos pelo monopólio dentro dos Estados Unidos.

Isso significará que os Estados Unidos, como totalidade capitalista, estarão numa posição competitiva em deterioração em relação ao resto do mundo, porque todos os insumos aqui serão mais caros do que os seus equivalentes fora da zona de proteção.

Não é um arranjo sustentável ou, em outras palavras, isso se tornará um mecanismo que, com o tempo, deteriorará e isolará o capitalismo dos Estados Unidos do resto do mundo. Portanto, essa também não é uma estratégia viável.

Os primeiros momentos em que Trump jogou isso para o ar podem parecer algum tipo de inovação notável, mas todos sabemos que a história do capitalismo é uma história de oscilações entre o livre comércio e a proteção. Não somos os primeiros a passar por isso. E a fase de proteção, que surge quando o livre comércio não funciona, acaba sempre por ser um beco sem saída. Na verdade, é por isso que voltamos ao livre comércio, porque temos uma repulsa pelos problemas da proteção.

Em suma, não se trata de descobrir uma nova solução. Trata-se de ansiar por uma solução antiga que já devíamos ter aprendido que não funciona.

MICHAEL HUDSON: Bem, essa disparidade de preços é exatamente o que a Grã-Bretanha enfrentava há 200 anos. Ela percebeu que outros países tinham uma vantagem natural em termos de preços porque podiam crescer, por um lado, podiam cultivar os seus alimentos e produzir matérias-primas a um custo muito menor do que a Grã-Bretanha.

Então, o que fez a Grã-Bretanha? Além de reformar a sua própria economia para reduzir os seus custos, disse:

«Vamos colonizar esses países e investir neles. Podemos tomar posse das suas vantagens, da sua terra para produzir alimentos e das suas matérias-primas. Então, em vez de esses países obterem os benefícios do seu baixo custo de produção, nós, britânicos e outros proprietários colonialistas europeus, vamos conquistar a posse do património natural, da terra, dos recursos naturais e da infraestrutura desses países para nós mesmos. Eles farão parte da nossa própria economia, não da economia dos outros países.»

Essa percepção da ameaça de preços mais baixos no exterior levou ao colonialismo e imperialismo britânico e ao desenvolvimento do imperialismo financeiro na forma de corporações multinacionais comprando o controle de todos os recursos básicos e ativos que tornavam esses outros países mais naturalmente competitivos do que a Europa (que tinha o fardo da sua aristocracia e tudo mais).

O PARASITA DO SUL GLOBAL

É esse tipo de luta que está a ser travada hoje. É como se estivéssemos a assistir a uma nova tentativa dos americanos de fazer o que os colonizadores europeus fizeram ao tomar a África e outros países, investindo no sul global, apropriando-se dos seus recursos e negando a renda desses recursos aos seus países anfitriões. O sul global é um anfitrião no sentido de hospedar um parasita que extrai o seu valor.

Esta é exatamente a luta que deve ser reconhecida pelos países da maioria global. E penso que foi reconhecida pelo discurso de Lavrov, pelos russos e certamente pelos chineses.

Mas o problema é: como fazer com que os BRICS admitam que isso requer uma reestruturação realmente radical da ordem mundial? Esta é uma luta civilizacional. Como vamos criar um plano para isso? Até agora, eles realmente não desenvolveram um plano.

Falou-se em desdolarização, como se isso pudesse resolver o problema, mas isso vai muito além de se livrar do dólar americano. É libertar a economia de toda a organização financeira capitalista rentista da economia. Claro, era isso que o capitalismo industrial deveria ter feito à medida que evoluía para o socialismo.

Então, tem razão. Os países do BRICS e do Sul global têm de evoluir para o socialismo.

E a questão é: isso pode ser feito sem uma revolução? Colocámos essa questão no final do último programa.

Foi necessária uma revolução na Rússia em 1917, uma revolução na China em 1945. Os outros países dos BRICS e a maioria global podem alcançar esta alternativa à exploração dos EUA e da Europa sem uma revolução? Os Estados Unidos vão fazer tudo o que puderem para lutar contra isso. E isso é o que vai determinar os próximos anos da diplomacia internacional.

RICHARD WOLFF: Quero dizer a todos que não fiquem demasiado deprimidos.

Vocês viram as economias europeias passarem do século XIX, com um comércio mais ou menos livre, para o século XX, com a colonização e a proteção de cada colónia, um conjunto de propriedades coloniais umas contra as outras. Isso resultou nas Primeira e Segunda Guerras Mundiais.

É por isso que não se deve seguir o caminho da proteção, acompanhada por forças militares para impor essa proteção. Reparem que o orçamento que acaba de ser aprovado pelo Sr. Trump aumenta as forças armadas e a polícia. É a chamada segurança interna. Tudo o resto é cortado porque é preciso concentrar-se na proteção em todos os sentidos da palavra. Isso levou a guerras repetidas, especialmente quando o país sitiado tenta impedir os outros de se protegerem.

O que aconteceria – e não estou a sugerir isso, mas – se e quando os BRICS se sentassem e, como uma unidade, respondessem às tarifas dos Estados Unidos com uma tarifa uniforme entre eles? Tornando-se um mercado comum e excluindo os Estados Unidos?

Pessoas com memória verão aqui a própria evolução dos impérios coloniais – o americano, o britânico, o alemão, o japonês – que foram as causas das maiores guerras mundiais do século XX que a humanidade já viu.

O que está a ser feito aqui não é uma solução. É um ato de desespero que vem da ganância de que Michael nos falou hoje logo no início.

MICHAEL HUDSON: Bem, criar um mercado comum é exatamente o que a China está a tentar fazer com a Iniciativa Belt and Road.

Se vão ter comércio entre vocês, precisam de transporte. Precisam da Belt and Road. E é exatamente isso que os Estados Unidos estão a tentar fazer militarmente para impedir isso no Afeganistão, no Irão, com atividades no Azerbaijão.

É exatamente disso que se trata a luta geopolítica dos próximos anos:   tentar quebrar a capacidade de outros países de trabalharem juntos e destruir todas as conexões, não deixando alternativa a não ser depender dos Estados Unidos e da Europa.

Essa é a nova Guerra Fria, e é uma guerra sobre que tipo de civilização o mundo terá, ou pelo menos o mundo fora do mundo dourado nos Estados Unidos, na Europa e seus aliados.

NIMA ALKHORSHID: Muito obrigado, Richard e Michael. Foi um grande prazer, como sempre. Até breve.

17/Julho/2025

Vídeo desta entrevista:

[*] Economistas.

O original encontra-se em michael-hudson.com/2025/07/brics-vs-the-rentier-economy

Em

Resistir.info

 https://resistir.info/m_hudson/brics_17jul25.html

17/7/2025 

Este artigo encontra-se em resistir.info

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