sexta-feira, 15 de novembro de 2019

RELAÇÕES DE PRODUÇÃO EDUCACIONAIS E A PEDAGOGIA DO MST




Candido G. Vieitez
Introdução
            O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tem uma proposta pedagógica própria, diferente da pedagogia oficial. Essa proposta encontra-se sinteticamente expressa nas seguintes matrizes pedagógicas: pedagogia da luta social; pedagogia da organização coletiva; pedagogia do trabalho e da produção; pedagogia da cultura; pedagogia da história; pedagogia da terra; pedagogia da alternância; pedagogia da escolha[1].
Inequivocamente, a mais importante atividade pedagógica do MST decorre da existência e atividade do próprio Movimento. No entanto, transcendendo esse acontecimento pedagógico imanente, o MST desenvolve atividades educacionais mais formalizadas, dentre as quais destacamos: os vários cursos de livre formação que o Movimento propicia a seus membros e; a atividade escolar propriamente dita, ou seja, aquela habilitada a oferecer certificados ou diplomas legais segundo os critérios do sistema escolar[2].
Neste estudo examinamos essa última variante educacional. Duas são as vertentes de atividade educacional escolar praticada pelo MST: a que se desenvolve nas escolas que pertencem ao Movimento, e a que tem lugar nas escolas estatais, que, basicamente, são aquelas situadas nos assentamentos da reforma agrária.
Nenhuma proposição de pedagogia alternativa à dominante pode ser levada a cabo em termos absolutos, vale dizer, abstraindo completamente as determinantes presentes na sociedade. Contudo, distintas atividades educacionais apresentam diferentes graus de liberdade tanto em relação à ordem social quanto à sua pedagogia característica.
Nos cursos livres, abstraídas as determinações sociais de fundo, o MST organiza a atividade pedagógica segundo seu livre arbítrio. Nos cursos escolares, entretanto, a legislação educacional tem de ser contemplada[3]. No entanto, nas escolas próprias do Movimento a liberdade de organização pedagógica é significativamente maior do que nas escolas do Estado[4].
A maior parte dos estudos realizados sobre a educação do MST, seguindo uma tendência geral dos estudos pedagógicos, tomam como objeto os princípios pedagógicos. Esta abordagem decorre em parte do fato de que a gestão ou administração escolar, que toca mais imediatamente o tema das relações de produção pedagógicas, é usualmente vista pela pesquisa apenas como atividade meio. Divergindo dessa impostação, uma linha de pesquisa da qual fazemos parte, defende que a gestão ou administração escolar, mais diretamente ligada às relações sociais existentes na escola, é um currículo oculto, o qual, no que diz respeito ao quesito estratégico da socialização, é tão importante quanto os conteúdos curriculares propriamente ditos[5]. Sob essa perspectiva temos estudado uma categoria que é bastante cara à pedagogia do MST, a gestão democrática da escola (DAL RI; VIEITEZ, 2013).
A temática da gestão democrática examina basicamente a parte das relações de produção pedagógicas relativa à micropolítica escolar, à forma assumida pela autoridade escolar. Nesta pesquisa, sem pretensão sistêmica, ampliamos esse escopo para incluir outras dimensões daquelas relações. E para tanto tomamos como referência para a análise o que metaforicamente podemos denominar de as instâncias da economia política escolar: a produção pedagógica estrito senso, a distribuição a circulação e o consumo escolares.
   Antes de chegarmos a esses pontos, no entanto, nos detemos para examinar a base social do MST, sua formação, as suas características organizacionais, seu programa e, também, a escola enquanto componente estratégico do mecanismo de reprodução social. Os quatro primeiros temas estão contemplados pelas pesquisas (FERNANDES, 2000). Porém, os retomamos aqui sucintamente para chamar a atenção sobre certos aspectos. Pois, esses contribuem para o esclarecimento de questões tais como: como é que uma organização que na maior parte de sua trajetória defendeu – e em parte ainda defende- uma reforma agrária como distribuição de terras entre pequenos agricultores (camponeses), apresenta entre seus princípios filosóficos educacionais as proposições “educação para o trabalho e a cooperação”,ou, “educação com e para valores humanistas e socialistas” (DAL RI; VIEITEZ, 2013).
As relações de produção dominantes na sociedade burguesa são as relações mercantis. E o hardcore desse universo mercantil é constituído pela compra e venda da mercadoria força de trabalho. Neste estudo sustentamos que a escola, embora não apareça como um arsenal de mercadorias[6], encontra-se determinada e transfixada pelas relações mercantis dominantes. Na escola/empresa/privada de modo ostensivo, imediato. E na escola estatal de modo mediado. Sustentamos também que, a pedagogia do MST não tem como neutralizar cabalmente o poder dessas determinações sociais. E no entanto, conforme procuramos demonstrar, um dos efeitos práticos do exercício dessa pedagogia é a de tomar certa distância das típicas relações sociais capitalistas, bem como de induzir a constituição de relações de produção pedagógicas novas. Como isso é possível, quanto isso é possível, e qual sua resultante é o que tentamos apresentar nesta reflexão.  
1.A base social do MST
            A imagem pública ou pelo menos a mais difundida do MST é a de que este é uma organização de camponeses. Isto é certo, até certo ponto. Ainda assim, a denominação de camponês requer um esclarecimento, uma vez que ela pode significar, simplesmente, o homem que trabalho no campo. Mas, o homem que trabalha no campo pode ser tanto um assalariado quanto um agricultor que explora seu pequeno lote de terra com o auxílio da família.
O MST encontra-se vinculado, sobretudo, ao campesinato constituído por pequenos agricultores[7]. Mas, aqui também cabe uma explicação. Sinteticamente podemos dizer que a base social do MST é constituída por dois segmentos: os acampados e os assentados da reforma agrária[8].
Os assentados formam uma classe de pequenos proprietários rurais que, ao que parece, constituem hoje a base mais ampla do Movimento. Observemos, no entanto, que essa base não é constituída simplesmente por pequenos proprietários em geral, mas por pequenos proprietários que, independentemente de sua trajetória pregressa, prosseguem apoiando a luta pela reforma agrária e, de modo geral, o programa de ação do MST.
Completamente distinta é a situação dos acampados. Estes estão acampados porque almejam ter acesso à terra. Contudo, isto não faz deles camponeses proprietários. Objetivamente, constituem uma fração do proletariado porque destituídos de propriedade móvel ou imóvel propiciadora de condições autônomas de subsistência. De fato, nem todos foram algum dia trabalhadores rurais, e muito menos proprietários, e uma parte deles é originária do meio urbano onde eram assalariados ou desempregados. (FERNANDES, 2000).
A situação de acampamento frequentemente se estende por anos. Só que, paradoxalmente, a vida no acampamento é praticamente a antítese da vida propiciada pela pequena propriedade privada agrária. Enquanto a pequena propriedade é naturalmente particularista e individualista, o acampamento é comunitário, coletivista e radicalmente democrático,  características que são uma condição sine qua non de sua persistência no tempo.      
A rigor, portanto, o MST não é simplesmente uma organização de camponeses/pequenos proprietários. Mas uma organização de proletários, ainda que na expectativa de virem a ser proprietários, e de pequenos proprietários que apresentam a peculiaridade de serem partidários da reforma agrária[9].
2.A formação do MST
            O MST constituiu-se formalmente em 1984 num momento peculiar de nossa história. A ditadura militar, que esmagara o movimento operário popular (MOP) anterior a 1964, a contar dos anos 1970 começara a ser confrontada pelo reaparecimento do MOP.
            O novo movimento não retornou cabalmente às consignas da revolução brasileira anteriores a 1964, e nem tinha a mesma composição sócio-política daqueles anos. Quem mais se aproximou daquelas posições talvez tenha sido o MST. Pois este, ao arvorar a bandeira da luta pela reforma agrária, colocou-se de certo modo como herdeiro do legado das Ligas Camponesas. A luta pela reforma agrária havia sido asfixiada pela ditadura, mas pelo visto não havia desaparecido.
3.A organização do MST
            A reforma agrária clássica (RAC) foi o programa republicano e democrático do MST na maior parte de sua trajetória. Enfatizemos, porém, que o MST se constituiu como uma variante de organização popular, ou, organização coletiva de massas. Este tipo de organização manchesteriano (THOMPSON, 1977), diverge frontalmente das organizações burguesas por ser composta exclusivamente por trabalhadores e contemplar valores operacionais democráticos e coletivistas. É plausível que esta característica esteja relacionada com sua base social assimétrica, que tem de um lado os acampamentos comunitários e de outro os pequenos proprietários dos assentamentos. Provavelmente, também teve – e tem-  ligação com as peculiaridades políticas e ideológicos de seus ativistas de vanguarda, dentre os quais pontificaram cristãos e marxistas[10].
            Seja como for, essas determinantes parecem consoantes com o fato de que, embora o programa do Movimento seja pela pequena propriedade agrária, o seu que fazer  contempla também a presença de ideias e ações voltadas para a promoção de práticas coletivistas, comunitárias ou protosocialistas. Isto é observável em seu empenho em organizar os assentados em coletivos tendo em vista a auto-organização ou a intervenção política, no esforço em induzir a formação de cooperativas, em especial, as de trabalho associado, e em várias dimensões de sua pedagogia, como por exemplo, o empenho em promover a gestão democrática e também a formação de coletivos de estudantes na escola. 
4.Da reforma agrária tradicional à reforma agrária popular. 
            Em 2014, no seu sexto Congresso, o MST enunciou uma nova carta programática. Com ela, deixou para trás a concepção de reforma agrária clássica que norteara suas atividades na maior parte de sua trajetória, passando a postular a reforma agrária popular (RAP). A concepção de reforma agrária como democratização da propriedade agrária nascera no contexto mundial do capitalismo de Estado, quando os estados nações dependentes podiam flertar com a ideia de desenvolvimento nacional e alguma variante, mesmo que periférica, de welfare state. A RAP formulou-se no quadro completamente diferente do capitalismo monopolista transnacional (CARVALHO, 2016; PATNAIK, 2015). É dado como marco mundial desta viragem o ano de 1970 quando é lançada a política neoliberal. Sob esta política “A lei do valor [...] passa a realizar-se ao nível global, controlada pelas transnacionais com nítido prejuízo para os trabalhadores envolvidos e com o poder de Estado capturado nesta lógica” (CARVALHO, 2016).  Mas, no Brasil, os seus efeitos começaram a se sentir mais acentuadamente nos anos 1990, culminando ao que tudo indica no golpe palaciano que depôs a presidente Rousseff em maio de 1916.
Na agricultura, a contar da segunda metade dos anos 1990 e, sobretudo, da crise de 2008, os latifúndios brasileiros foram bandeando-se para o agronegócio, que opera sob a égide do capitalismo monopolista transnacional. No agronegócio, grandes corporações transnacionais, articuladas ao capital financeiro, incrustam-se na agricultura brasileira de modo autônomo, comprando e explorando terras, ou, em articulações com os latifúndios previamente existentes. Dentre os seus objetivos estão a expansão territorial ininterrupta, o controle das águas e sementes, a produção e industrialização de alimentos, a utilização massiva de agrotóxicos, o monopólio da comercialização agrícola e o controle ambiental predatório dentre outras características.
            Em fevereiro de 2015, no Encontro Regional de Educação do Campo, realizado em Itapeva, São Paulo, preparatório ao II ENERA, Delvechio, um dirigente do MST, falando a um público formado por pessoas do Movimento e professores e funcionários da rede de ensino, explicou porque o Movimento passou para a RAP. Eis um excerto de sua alocução no pé de página[11].
               A RAP não abandona a luta pela distribuição de terras ou a reforma agrária. Mas esta muda de natureza. De fato, o conceito de RAP não parece estar suficientemente clarificado, o que aflorou nas entrevistas com membros do MST realizadas por esta pesquisa. De qualquer modo, nos arriscamos a enumerar o que nos parecem os seus eixos principais: a) agro-ecologia como preservação da saúde do trabalhador e da higidez do meio ambiente; b) o estabelecimento de alianças com outros movimentos dos trabalhadores, do campo ou da cidade; c) a transformação dos empreendimentos do agro-negócio em cooperativas agrárias; d) a ampliação do esforço educacional inclusive com a possível recomposição do modelo pedagógico em comum acordo com os movimentos aliados.
            Em suma, a RAP, parece supor um enfrentamento direto com o agro-negócio e outros institutos capitalistas, o que não estava previsto, salvo indiretamente, na RAC. Assim sendo, este programa, se nossa percepção estiver correta, significa uma radicalização da crítica à propriedade capitalista agrária, e por extensão, à propriedade capitalista em geral.   
5.A escola oficial
            Conforme indicamos, as relações de produção mercantis são dominantes na sociedade burguesa. Dentre elas encontra-se a compra/venda da força de trabalho, mercadoria imprescindível sem a qual o capitalismo não teria ao menos se constituído. Basicamente, os membros da classe trabalhadora são os que vendem ao capital sua força de trabalho. O Direito burguês criou a ficção jurídica (DOMÈNECH, 2004) de que a força de trabalho é uma mercadoria igual às outras. No entanto, isso corresponde aos fatos apenas em parte. Ao ser negociada, a mercadoria comum perde imediatamente qualquer vínculo com o seu vendedor, sendo integralmente apropriada pelo comprador. Isso não acontece, porém, com a força de trabalho. O capital não compra o trabalhador, em corpo e alma, como faziam os regimes escravistas, compra apenas a força de trabalho. Porém, a extração de seu valor de uso requer a presença in corpore sano do trabalhador no campo de trabalho, o que aparece à sociedade como trabalho assalariado. E em que condições sociais se encontra o trabalhador nesse campo de trabalho? Encontra-se na única condição compatível com a alienação de sua força de trabalho, a de subordinação e exploração (DEMICHELIS, 2016).
            Relações de subordinação e exploração são inerentemente conflitivas e às vezes explosivas. E a burguesia teve de adotar medidas para manter o conflito sob controle, o que implicou convencer os trabalhadores de que o assalariamento, é não só natural como desejável[12]. Concomitantemente, teve de cuidar para que a força de trabalho apresentasse as características adequadas à sua utilização no processo de trabalho.  Historicamente, a classe burguesa se valeu de vários meios. No entanto, na segunda parte do século XIX criou uma agência especializada, a escola, com a finalidade de equacionar os dois problemas[13]: o do consentimento da classe trabalhadora e o da aquisição de certas habilidades e conhecimentos.
            A escola passa então a propiciar aos estudantes futuros trabalhadores ou já trabalhadores a habilitação requerida. Para efeito apenas didático podemos decompô-la em três instâncias: a) a habilitação linguística, científica, técnica e artística; b) a habilitação político-ideológica e; c)  a habilitação psíquico-física.    Esta última tem muito a ver com a introjeção de um tipo de disciplina pessoal, um habitus que favorece a adaptação ao campo de trabalho, como por exemplo, a observação de horários rígidos, o confinamento prolongado, a aceitação automática da disciplina hierárquica. A habilitação política ou ideológica visa sobretudo fazer com que o estudante adira à concepção do mundo da burguesia, ao instituto do assalariamento, ao autoritarismo hierárquico, etc[14]. A habilitação científica ou técnica - e com uma amplitude e escopo menor, artística – mune o estudante futuro trabalhador dos conceitos necessários à sua utilização produtiva no campo concreto do trabalho[15].
            Com o tempo a escola na sociedade burguesa adveio a habilitadora universal da força de trabalho. Essa função é garantida pelo sistema de certificação[16] ou diplomação, que demarca o escalonamento da habilitação escolar. A certificação é fundamental para o universo do trabalho. Contudo, as suas implicações vão muito além do campo de trabalho, uma vez que a burguesia conseguiu generalizar na sociedade- particularmente na classe média-  a crença de que os postos na sociedade capitalista são ocupados por mérito, que tem sua referência e base no sistema de certificação. 
             Como indicado, o ensino-aprendizagem se dá pela via manifesta do programa curricular, e pela via imanente do currículo oculto constituído pelas relações sociais vigentes na escola. 
Se o currículo oculto decorre das relações sociais escolares, qual é a natureza dessas relações? Antes de tudo o sistema escolar encontra-se determinado, via a legislação estatal, pelas necessidades de reprodução do mercantilismo capitalista que tem como uma pedra angular a adequada reprodução da força de trabalho assalariada. Numa palavra, o sistema escolar, estatal ou privado é organizado visando atender à reprodução das relações capitalistas mercantis. Concomitantemente, em si mesma a escola também opera, em maior ou menor extensão, mediante a prática de relações sociais mercantis capitalistas ou análogas às do capitalismo. A escola estatal que cobra mensalidades de seus alunos exemplifica o último caso e a escola-empresa o primeiro. 
6.A pedagogia do MST frente à pedagogia oficial dominante
            A pedagogia propositivo-alternativa do MST, que atua no terreno da educação certificadora ou escolar, seja em suas escolas próprias ou alheias, encontra-se em maior ou menor grau tangida pelas relações sociais dominantes. Isso decorre da necessidade de observar a legalidade escolar vigente. Mas, não só por isto. Em parte, decorre também das necessidades da reforma agrária, ou por outra, da situação da pequena propriedade agrária ou das cooperativas que se encontram insertas na tessitura das relações de produção mercantis. Não obstante, um efeito da ação pedagógica do Movimento é o de, em certa medida, fazer aflorar na vida escolar relações sociais de um outro signo.
Como isso ocorre sempre mais ou menos em contraposição às relações dominantes, utilizamos como revelador o contraste decorrente da análise comparativa. No decurso da análise temos de ter em mente a base social do MST, a natureza orgânica do Movimento, bem como o seu programa de ação. Com o objetivo de proporcionar um marco de referência à análise do tema proposto seguimos o esquema de examinar os elementos da economia política da escola inerentes à produção pedagógica em seus diversos momentos: a produção pedagógica estrito senso considerada, a distribuição, o intercâmbio e o consumo. Mas indicando apenas os aspectos que consideramos mais importantes, sem qualquer pretensão de um exame sistemático.
6.1. A organização do ensino
A função social fundamental da escola é a habilitação da força de trabalho com  o objetivo propiciar a reprodução do capital e da própria força de trabalho como mercadoria.
            Essa função é realizada espontaneamente pela escola estatal devido à subordinação burocrática dos funcionários do sistema escolar às autoridades estatais e à legislação educacional. Na escola-empresa, entretanto, podem se estabelecer desencontros entre o burguês coletivo encarnado no Estado e o burguês particular da escola empresa, uma vez que o objetivo prioritário deste é a valorização do capital. Desta aporia decorre que a legislação estatal normativa é provavelmente mais premente no campo da escola privada do que no do Estado. 
            Como toda produção, a produção pedagógica tem um  produto. Este, contudo, não é nada palpável na escola uma vez que consiste em transformações subjetivas ocorridas na estrutura intelectual-psíquico-física dos alunos. No entanto, a pedagogia oficial, como convém a uma sociedade de traficantes de mercadorias, encontrou na certificação um método para coisificar essa subjetividade[17]. Como consequência, na operacionalização escolar cotidiana a habilitação da força de trabalho aparece na forma de um produto prosaico, o diploma ou certificação.
O ensino-aprendizagem é realizado pelo trabalhador coletivo (MARX, 1972) escolar formado por professores, funcionários e estudantes. Uma característica iniludível deste trabalhador coletivo é que opera sob a coordenação direta do capital ou um de seus prepostos.
 Os professores e funcionários integram o trabalhador coletivo na condição de força de trabalho assalariada. O alunado o integra como força de trabalho estudantil[18], sujeito/objeto da aprendizagem.
 Os estudantes não são remunerados por sua atividade. E os estudantes da escola-empresa ou da escola estatal mercantilizada têm de comprar sua certificação. 
A necessidade da presença do alunado no campo de trabalho[19] pedagógico é iniludível. Este é um fato ao mesmo tempo análogo e inverso à necessidade da presença da força de trabalho numa fábrica, por exemplo. E decorre diretamente do trabalho como parte da essencialidade humana.  Na escola a força de trabalho estudantil absorve conhecimentos, habitus e habilidades, e constrói uma condição psicofísica essencialmente histórica, ou, como diz certa literatura, assimila os conhecimentos acumulados pela humanidade. Na fábrica, diferentemente, a força de trabalho dispõe, despliega esses conhecimentos a ela incorporados à medida que trabalha.  
Ao colocar sua força de trabalho à disposição do proprietário da escola -empresário ou Estado-, tanto o trabalhador estrito senso quanto o aluno, alienam a utilização da força de trabalho, o que implica necessariamente sua subordinação como indivíduos à autoridade proprietária, bem como, a   seus desígnios sociais.
Na escola estatal em que encontramos a presença atuante de militantes pedagógicos do Movimento, essas determinantes estão igualmente postas. A diferença em relação à escola comum está na luta desses militantes para implementar aí sua concepção pedagógica. Bem realizada essa empreitada ocorre uma modificação parcial, ainda que mais ou menos importante, da alienação (MÉSZARÓS, 2005) do trabalho escolar.
 As situações escolares são diversas e os métodos e resultados também. Por exemplo, na agrovila do Assentamento 25 de maio, em Abelardo Luz, Santa Catarina, há duas escolas praticamente contíguas. Em uma delas, de ensino fundamental, não há traço da pedagogia do Movimento. Na outra, de ensino Médio, denominada Semente da Conquista, a pedagogia do MST é presente e eficaz (VIEITEZ; DA RI, 2015). Também é necessário considerar que em uma escola estatal o corpo de professores e funcionários é de procedência diversa e dificilmente há uma unanimidade quanto à pedagogia do Movimento. Assim, a implementação dessa pedagogia, mesmo que parcialmente, demanda articulações políticas várias com o âmbito do coletivo, e nem sempre é possível evitar o conflito.
            A  autogestão democrática é uma referência estratégica dessa ação pedagógica. Isto porque ela envolve tanto o currículo explícito quanto o oculto. De um lado, ela incide sobre as relações sociais oficiais modificando-as. Do outro, possibilita que os professores ministrem suas disciplinas com liberdade, como por exemplo, discutindo com os alunos o Movimento ou a reforma agrária. No plano meramente lógico, não quanto às formas empíricas, podemos dizer que a gestão democrática do MST consiste em colocar alunos, professores, funcionários e pais em assembleias para decidirem livremente, com direitos iguais de expressão e voto, tudo que puder ser decidido a respeito da gestão da escola. Como exemplificação apresentamos um fragmento do relatório de pesquisa (ALANIZ;VIEITEZ) sobre uma reunião de representantes de alunos, gestores e pais de alunos realizada na Escola Estadual Iraci Salete Strozak, localizada em assentamento da Reforma Agrária no Município de Rio Bonito de Iguaçu, Estado do Paraná com data de 12 a 15 de dezembro de 2014[20].   
            Neste ponto devemos mudar algo do que já afirmamos sobre a habilitação escolar oficial. Mesmo esta não um fenômeno absoluto. Por mais que a burguesia o deseje, o controle sobre a vida escolar nunca é completo. Isto decorre de que na escola há também oposições e contradições que derivam da situação de classe de trabalhadores e estudantes, da estrutura escolar e também dos campos das ciências e das artes (BROOKS, 2016). A pedagogia do movimento problematiza a habilitação oficial na medida em que agrega concepções ligadas ao movimento operário popular, como por exemplo, a defesa da reforma agrária. No que examinamos aqui especificamente, as relações sociais objetivas, contrapõe em alguma medida a autogestão[21] democrática do trabalhador coletivo à gestão hierárquico-burocrática usual da escola, o que obviamente resulta entre outros efeitos, num contra-exemplo que poderá influenciar a concepção de mundo dos alunos.
As condições operacionais da escola própria do MST propiciam um grau de liberdade de ação bem maior do aquele que os militantes poder ter em uma escola do Estado. Vejamos, pois, como se organiza aí o trabalho pedagógico.  
A escola própria do MST também habilita seus estudantes para participarem do mercado de trabalho, assim como os habilita para o sistema escolar. Portanto, o seu produto também aparece como certificação. Contudo, não é a teleologia da certificação que aí pontifica.  Juntamente com o propósito certificador, que é seguramente fundamental para a juventude do MST, encontramos os seguintes outros objetivos que para o Movimento são, possivelmente, ainda mais importantes que a certificação. Esses objetivos são: a) atender às necessidades técnicas e sociais específicas dos assentamentos da reforma agrária não contemplados pela escola comum; b) preparar quadros políticos para o Movimento; c) apoiar a reprodução da propriedade camponesa e impulsionar a formação de cooperativas.
 De qualquer modo, para a pedagogia do Movimento poder emitir diplomas legais tem seu ônus.  A certificação, com sua lógica capitalista inerente adere à praxis educativa da escola competindo com a concepção pedagógica alternativa almejada, mesmo que isso se mantenha em estado latente. Além disso, a certificação exige que a escola cumpra com as determinações da legislação educacional, o que constitui um outro fator importante de aderência relativa ao sistema educacional oficial.  Numa palavra, o legalmente exigido para à certificação[22] implica apreciável constrangimento para as liberdades autonômicas reais ou virtuais da pedagogia do Movimento em sua própria escola.  
A escola própria do MST, como a oficial, organiza seu trabalho pedagógico segundo o princípio do trabalhador coletivo, articulando professores, alunos e funcionários.
As escolas não utilizam professores assalariados. Os professores são muitas vezes militantes do movimento que cumprem uma tarefa. Em outros casos há uma espécie de voluntariado. Devido a isto, as disciplinas dos cursos são ministradas de modo muito concentrado ou seus conteúdos são subdivididos por vários professores. Esta concentração é facilitada pela denominada pedagogia da alternância, pela qual os alunos passam três meses na escola em regime de internato e três meses nos assentamentos ou acampamentos.  Em compensação, não é incomum vermos professores universitários, inclusive dos programas de pós-gradução, ministrando aulas em um curso de nível médio, por exemplo. Por outro lado, a maioria dos docentes não permanece na escola. E o pequeno número de professores fixos tem também tarefas ligadas à gestão.
Tampouco há nessas escolas a categoria que usualmente denominamos como funcionários. As pessoas que executam tarefas mais ou menos próximas àquelas dos funcionários são de fato muito poucas, mas ao contrário dos docentes são fixas na escola. Esses funcionários encontram-se frequentemente no cumprimento de uma tarefa transitória indicada pelo Movimento, e não raro estão aguardando a adscrição de seu lote de terra. Eles recebem retribuição em espécie (moradia, alimentos, etc.) ou em dinheiro, mas não sob o formato salarial. Portanto, tal como os professores não se encontram na escola na condição de vendedores de sua força de trabalho. 
A quase totalidade dos alunos são provenientes dos acampamentos ou assentamentos, portanto, proprietários virtuais ou reais de um lote da RA.  Mas, também não são os alunos como usualmente os conhecemos, pois, além disso, devido ao princípio pedagógico de união da educação com o trabalho têm de repartir seu tempo entre o estudo e o trabalho real. Em geral as escolas contam com uma área agrícola e pequena agro-indústria, cuja finalidade é tanto pedagógica quanto a de ajudar a custear a escola.  Esse trabalho, bem como o de manutenção da escola é realizado cooperativamente por alunos e funcionários.
O Movimento espera que os formandos se integreme nos assentamentos ou sejam ativistas do Movimento. Na prática, entretanto, não é assim porque a terra apropriada é insuficiente e são muitos os jovens que não querem ficar no campo. Assim, embora o propósito mais recôndito da escola não seja o de formar a futura força de trabalho assalariada, a existência da certificação possibilita que uma fração desses estudantes venha a se inserir no mercado de trabalho, com o que, embora parcialmente, a escola também contribui para a reprodução da força de trabalho.
A autogestão democrática é também neste caso a categoria que nos permite sintetizar esquematicamente os efeitos da prática da pedagogia do Movimento no plano das relações sociais. A diferença em relação à ação nas escolas do Estado é que neste tipo de escola a liberdade é muito mais ampla, como indicado. E isto se reflete numa superior concretização da micropolítica da autogestão democrática, embora tanto quanto pudemos apurar, o MST não tenha até o momento sistematizado a fenomenologia de utilização dessa técnica política.
O resultado dessa condição é intuitivamente visualizável. No plano programático, a RAC no passado recente, e nos dias de hoje a RAP [23], tem curso franco e, de fato, constitui o leitmotiv da atividade pedagógica. No plano mais inclusivo das relações sociais endógenas à escola a (des)alienação do trabalho em geral, e do estudantil em particular,   embora continue a ser um acontecimento social relativo,  chega a um patamar de eficácia insólito no contexto das instituições ou organizações sociais de qualquer ordem na sociedade.  
6.2. As relações de distribuição
            Vamos considerar sucintamente a distribuição da riqueza e do poder micropolítico na escola, nessa ordem.
            Na escola-empresa, cujo objetivo primeiro é a valorização do capital, os docentes e funcionários recebem salários cedendo a mais valia. Na escola estatal[24], paga ou gratuita, não há produção de mais valia. Porém, os salários são amiúde solapados pelo empenho do Estado em diminuir custos.
            Os alunos, na escola-empresa, bem como na escola estatal paga, têm como contrapartida de seu trabalho estudantil a certificação, embora devam pagar por ela mediante mensalidades ou anuidades.
            Na escola estatal gratuita, os alunos tampouco recebem nenhuma contrapartida econômica por seu trabalho estudantil pelo motivo anteriormente exposto. Mas, recebem graciosamente a certificação que lhes é concedida a título de direito de cidadania[25].  O capital considera parte da educação um custo inevitável da reprodução. Porém, desde as origens da escola, teve o cuidado de socializar esses custos, financiando a escola gratuita com o dinheiro dos impostos.
            A pedagogia do Movimento na escola estatal em nada modifica o acima exposto. Mas, em suas escolas próprias esse quadro se altera.
            Os professores, salvo exceções, não têm contrapartida econômica por seu trabalho. Os funcionários podem perceber uma modesta contrapartida em dinheiro e ou em espécie. Mas, não no quadro do assalariamento ou de qualquer outro tipo de relação trabalhista propiciadora de exploração econômica.
            Os alunos da escola própria do Movimento não pagam taxas ou mensalidades. E a certificação é também aqui a contrapartida pelo trabalho estudantil. Entretanto, como os alunos se encontram na escola não só pela certificação, mas também pelas necessidades do Movimento ou de sua economia política, eles têm na especificidade dos conhecimentos e habilidades recebidos uma contrapartida suplementar por seu trabalho estudantil. Agreguemos a isso que enquanto internos recebem gratuitamente alimentação, alojamento e algum equipamento escolar. Por outro lado, imediatamente contribuem para a manutenção da escola com seu trabalho real (manutenção da escola, comercialização de bens produzidos, etc.) e, mediatamente, através do aporte feito à escola por suas comunidades de origem.  Vejamos em seguida a distribuição do poder na escola.
Um divisor de águas fundamental quanto à distribuição do poder na escola encontra-se na propriedade. Na escola oficial temos a propriedade estatal ou a propriedade privada. E na sociedade burguesa a propriedade dos meios de produção conta  com uma espécie de soberania relativa, o que lhe permite, por exemplo, comprar força de trabalho e, em seguida, no processo de trabalho, submetê-la à exploração econômica e à subordinação.
Portanto, de um lado temos a propriedade e suas personificações. E de outro, em posição subalterna temos os demais sujeitos da educação, os trabalhadores assalariados e os sujeitos-objetos da produção pedagógica, os alunos.
A condição de propriedade privada típica da escola-empresa dispensa considerações. A condição proprietária da escola estatal requer uma ponderação porque essa se apresenta à sociedade como pública, assim como se imposta como público o Estado. Este efetivamente desempenha funções de normatização e regulação impositivas sobre os trabalhadores e sobre a própria classe burguesa, ou seja, sobre a sociedade. Mas, isso não faz dele uma res pública, muito ao contrário, embora tenhamos a República. O Estado burguês é o burguês coletivo. E a sua tarefa precípua é a de garantir as condições sociais para o funcionamento e reprodução do capital. Portanto, o ente estatal, aí incluída a escola, autodenominado público, é de fato um ente privado, uma forma de manifestação da propriedade burguesa, do seu poder de classe dominante (BROWN, 2009; NICOLAUS, M.)  
            A questão aqui é que tanto a força de trabalho assalariada, quanto a força de trabalho estudantil, encontram-se em situação de subordinação em relação à força proprietária. Certamente os estudantes que provém dos setores médios endinheirados, e que estudam em escolas privadas, conseguem condições de estudo mais favoráveis e inclusive facilitações. Mas estas são dadas a título pessoal, mediante compra, nunca como direito, uma vez que a propriedade não abre mão de suas prerrogativas[26].  Em suma, a distribuição do poder (e da riqueza) na escola espelha as relações de produção gerais dominantes na ordem burguesa.
Essa relação na escola, entre proprietários e não proprietários é um dos elementos fundamentais do currículo oculto nunca mencionado.  Podemos talvez resumir o seu efeito pedagógico afirmando que essa relação se incorpora à psique dos estudantes como um componente que reifica a supremacia da propriedade sobre o trabalho, seja este trabalho estrito senso ou trabalho estudantil.
            Vejamos a escola do Estado sob influência da pedagogia do Movimento. Do ponto de vista estrutural as relações são as mesmas acima descrita. Porém, se aquela pedagogia tiver uma ascendência significativa na organização da vida escolar, como é o caso de várias escolas examinadas in loco por esta pesquisa, o efeito de coisificação da distribuição assimétrica pode estar variavelmente contrabalançado pelo exercício da autogestão democrática[27].
            Situação diferente é a distribuição na escola própria, gratuita, do MST. Não sendo estatal poderia ser considerada privada, mas esta classificação não é apropriada. O mais razoável é classifica-la como uma escola do MST, ou seja, de uma organização coletiva de massas. Mas, mesmo esta figura sugere uma situação um tanto unilateral, uma vez que essas escolas funcionam pela confluência colaborativa e solidária de diversos sujeitos sociais: assentamentos, Movimento, professores, funcionários, alunos, outras organizações sociais e inclusive o Estado.  
            E quem são os alunos dessas escolas?  Em geral são alunos provenientes dos assentamentos e acampamentos, alguns dos quais podem ser também ativistas do Movimento. Aqui o conceito de propriedade torna-se incerto, e as relações decorrentes da supremacia da propriedade esfumam-se numa espécie de fusão. A escola são os alunos, e os alunos são a escola. Ainda assim convém não imaginarmos que desaparecem todas as diferenciações e todas as hierarquias. Certamente os efeitos da estratificação social endógena ao MST - acampados não proprietários, pequenos proprietários rurais, cooperativas, vanguarda política do movimento – se fazem sentir na dinâmica da micropolítica escolar. No entanto, a grande clivagem entre propriedade capitalista e trabalhadores subalternas não está presente. O resultado é uma autogestão democrática mais avançada.  No Instituto de Educação Josué de castro, situado em Veranópolis, RGS, que seguramente foi o paradigma da autogestão democrática para os ativistas pedagógicos do Movimento, AD era levada a cabo mediante a reprodução  mensal da gestão,  que reunia em assembleia geral professores, gestores, alunos e funcionários para deliberarem sobre a totalidade dos assuntos da escola.
6.3. Intercâmbio e consumo
            Vejamos como a escola integra o sóciometabolismo social, encaixando-se na divisão do trabalho. Começamos pelo produto escolar, a certificação.
            Na escola-empresa e na escola estatal paga, o produto chega às mãos do consumidor, o aluno, mediante um ato mercantil de compra e venda[28]. O certificado, expressão coisificada de um fenômeno subjetivo – a aprendizagem- e de anos de trabalho assume a forma social de uma mercadoria.  Convém observar que a certificação é uma mercadoria de curso restrito, uma vez que ela só interessa imediatamente à força de trabalho virtual ou já real. Mas isto não muda em nada o fato de ser conseguida por meio de uma relação mercantil. Por outro lado, essa mercadoria enquanto valor de uso contribuirá de modo estratégico à produção da mercadoria fundamental da sociedade, a força de trabalho.
            Evidentemente, este tipo de relação não é o praticado pela escola estatal gratuita, embora o seu certificado cumpra idêntica função à do certificado mercantilizado no que diz respeito à viabilização da força de trabalho. Como já indicado, a atribuição da certificação ao aluno é realizada em nome do direito de cidadania. O direito de cidadania, ao determinar a transferência gratuita do diploma ao cidadão-aluno, inviabiliza o tráfico mercantil. Esse tipo de direito é uma decorrência da luta histórica da classe trabalhadora. Porém, como indicamos, o mais provável é que na origem tenha emergido socialmente como um custo inevitável de reprodução frente à impossibilidade da maior parte da classe trabalhadora pagar pela educação da nova geração.
            Se por um verso a escola vende seu produto, ou o entrega mais ou menos graciosamente com vistas a viabilizar a mercadoria mais importante do capitalismo, por outro ela compra produtos no mercado para seu consumo produtivo. A escola empresa e a escola estatal, compra no mercado tudo o que precisa para seu funcionamento. Mas, em especial compra sua força de trabalho constituída por docentes e funcionários de diversos tipos.
            Também quanto a este tópico observamos que a condição da escola própria do MST aparece sob uma luz um pouco distinta. A certificação também passa às mãos do aluno gratuitamente. Não em nome do direito cidadão, porém, mas devido a uma transação de tipo solidário e cooperativo que é bastante usual no âmbito do MST.
            No plano da obtenção dos meios de trabalho, a escola do MST tampouco tem como evitar totalmente as compras no mercado. Não obstante, é apreciável a quantidade de meios de trabalho que não são obtidos por esse método. Dentre eles o mais notável é a força de trabalho de professores e funcionários, que atua na escola segundo um misto de voluntariado e ou militância. No entanto, a obtenção não mercantilista dos meios de produção pedagógica abrange possivelmente os seus elementos mais importantes. A terra, os edifícios e as instalações são cedidas ou designadas por algum dos setores do Movimento para a atividade escolar. A alimentação dos alunos, bem como ao menos parte dos materiais de estudo, também são entregues à escola em caráter solidário e colaborativo pelos assentamentos ou outros setores do movimento. Em suma, trabalho em espécie e bens em espécie, com um impacto que estas linhas mal sugerem, possibilitam o funcionamento das escolas do MST, o que por sua vez só é possível devido à economia política do Movimento baseada em cooperativas e pequena propriedade rural familiar.
Conclusão
            A pedagogia do Movimento a que nos referimos aqui é basicamente a que se produziu no período de vigência da RAC, e que subsiste até os dias atuais. O novo programa da RAP por ser muito recente não modificou significativamente o modelo pedagógico até o momento, exceto no que diz respeito à temática da agro-ecologia que a atividade educacional está incorporando com impacto bastante variável. Podemos supor, porém, que se a RAP levar à prática o que hoje parecem ser sobretudo suas potencialidades, é provável que o atual modelo pedagógico venha a sofrer mudanças consideráveis em futuro próximo.
            A escola oficial encontra-se determinada pelas relações mercantis que são dominantes na sociedade, em particular aquelas que dizem respeito à reprodução. Essas relações prevalecem também no âmbito de atuação das escolas, seja no plano de organização da pedagogia, seja no contexto do intercâmbio com a sociedade. Consideramos válida esta afirmação porque, embora o importante setor da escola estatal gratuita não coloque seu produto em circulação mediante uma relação mercantil, todas as escolas operam mediante a utilização de força de trabalho assalariada, a mercadoria determinante em última ratio do modo de produção capitalista.
            Marx (1972) referiu-se aos efeitos provocados na vida social por esse tipo de relações de produção como o fetichismo da mercadoria. Os estudos históricos não parecem ter explorado suficientemente o impacto que esse fenômeno tem sobre a sociedade burguesa, particularmente sobre a classe trabalhadora. Porém, parece seguro afirmar que o fetichismo da mercadoria tem um poderoso efeito mistificador sobre a consciência ou a concepção do mundo da classe trabalhadora - como o demonstra com eficácia Beauvois (2008) em seu Tratado de la servidumbre liberal -; efeito este que é um dos fatores que contribuí para a submissão da classe trabalhadora ao capital.
            Na escola esse efeito decorre do que denominamos neste texto de currículo oculto. Ou seja, do fato inequívoco de que, seguindo a pauta de determinação geral, também nesta instância prevalecem as relações de produção mercantis, fato conspícuo que, no entanto, é rigorosamente ignorado tanto pelos agentes da educação oficial quanto por seus think tanks.
            Um traço essencial da pedagogia do Movimento é que ela entabula uma luta contra a alienação do trabalho ao qual se encontra umbilicalmente ligado o fenômeno do fetichismo. Como seria de esperar, uma vez que atua na vigência das relações capitalistas dominantes, essa pedagogia não tem como se furtar às determinações inerentes à escola ou para além dela, até porque a própria economia política do MST encontra-se organizada em base a relações mercantis simples[29].  Os resultados obtidos são sempre parciais e variáveis quanto a sua eficácia, mas, em todo caso, sempre significativos para a classe trabalhadora.  Na escola do Estado, esse trabalho pedagógico encontra-se naturalmente limitado pela legislação educacional e pela propriedade estatal. Na escola própria do MST, a limitação decorre mais da legislação e também do fato de que devido à natureza da RAC, os alunos também têm que ser preparados para o comércio, o que não deixa de ser uma contradição na pedagogia do Movimento. De qualquer modo, as escolas próprias do MST aplicam a pedagogia do Movimento com uma liberdade incomparável. Não obstante, as escolas próprias do Movimento são muito poucas porque os recursos do Movimento são escassos, e a sua expansão encontra-se na dependência de que se realizasse a revolução agrária que aparece como propositura do novo programa (RAP). Destarte, e um tanto paradoxalmente, as maiores possibilidades de desenvolvimento para a pedagogia alternativa parecem encontrar-se nas escolas do Estado, sobretudo se as alianças com os outros movimentos sociais preconizados pelo novo programa se concretizarem e o movimento operário popular em conjunto resolver partir para a luta por uma pedagogia alternativa em todo o sistema escolar.
Referências
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BEAUVOIS, J-L. Tratado de la servidumbre liberal – análisis de la sumisión. Madrid: La Oveja Roja, 2008.
BROOKS, R.  Política y protesta: Los estudiantes se levantan en todo el mundo  Sin Permiso, España, 22/5/2016 2016. http://www.sinpermiso.info/textos/politica-y-protesta-los-estudiantes-se-levantan-en-todo-el-mundo. Acesso em: 22/5/2016.
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DELVECHIO. Palestra proferida no Encontro Regional de Educação do Campo, realizado em Itapeva, São Paulo, preparatório ao II ENERA. Itapeva-SP, 2015.
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DOMÈNECH, A. El eclipse de la fraternidade – uma revisión republicana de la tradicción socialista. Barcelona: Crítica, 2004.
FERNANDES, B.M.  A formação do MST no Brasil. RJ: Vozes, 2000.
MARX,K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. SP: Escriba, 1968.
MARX, C. El Capital. México: Fondo de Cultura Económica, 1972, p. 3.
______________   Capítulo XI, Cooperación, p.259-271
MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital  São Paulo: Boitempo, 2005.
NICOLAUS, M. El Marx desconocido. In: MARX, K. Elementos Fundamentales para la crítica de la economia política (Grundrisse) 1875-1858. España: Sigloveintiuno, 1984, p. XI-XL.
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VIEITEZ, C.G.; DAL RI, N.M. A Escola Semente da Conquista e a Pedagogia do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). <http://vieitez-dalri-trabalhoassociado.blogspot.com.br/2015/07/a-escola-semente-da-conquista-e_27.html> 27/07/2015.
VIEITEZ, C.G. A democracia nas unidades escolares públicas  in: DAL RI, N.M.; BRABO, T.S.A.M. (ORG] Políticas educacionais,  gestão democrática e movimentos sociais. Marília - São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. p. 13-35.


[1] - Estas matrizes ficam mais claras ao examinarmos os correlatos princípios pedagógicos e filosóficos. Ver DAL RI, NM; VIEITEZ, C.G. Educação democrática e trabalho associado no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e nas fábricas de autogestão. SP, Ícone, 2008, p. 301.
[2] - Costumamos denominar de escola qualquer estabelecimento que ministre cursos de tipo acadêmico. No entanto e a rigor, na ordem social atual, escola propriamente dita é aquela que se encontra habilitada a oferecer certificados dos cursos realizados segundo os parâmetros legais do sistema escolar, que são a chave tanto para o prosseguimento dos estudos, quanto para o acesso ao mercado de trabalho.
[3] -Como veremos, os pedagogos do MST buscam adaptar essa legislação a seu projeto pedagógico com sucesso maior ou menor, ainda que sempre relativo. 
[4] -A escolas do Estado, para afirmar o óbvio, pertencem ao Estado. Em várias delas, porém, dependendo de circunstâncias diversas, os partidários militantes da pedagogia do MST conseguem desenvolver ação pedagógica significativa ou mesmo converterem-se no vetor dirigente in situ. 
[5] - Por socialização entendemos aquele fenômeno pelo qual a sociedade, com seus valores e características históricas, é interiorizada pelos estudantes no processo de aprendizagem.
[6] - “La riqueza de las sociedades em que impera el régimen capitalista de producción se nos aparece como um ‘inmenso arsenal de mercancías’ y la mercancia como su forma elemental”. MARX, C. El Capital. México: Fondo de Cultura Económica, 1972, p.3.
[7] -Encontra-se, também, vinculado a diversos tipos de cooperativas, embora, sejam poucas as de trabalho associado, que transcendem o âmbito conceptivo da pequena propriedade familiar.
[8] -Nunca houve uma reforma agrária no país. O que há é uma certa distribuição de terras realizada em seu nome.
[9] - A adesão à reforma agrária atenua o particularismo imanente à pequena propriedade agrária, mas não tem o condão de suprimi-lo.
[10] - Segundo observação do prof. Fernandes - estudioso do Movimento - em entrevista concedida aos pesquisadores (2014), os militantes de vanguarda mais ativos eram de extração cristã e marxista, prevalecendo nos dias de hoje a última corrente.  
[11] - A RAC tinha por objetivo o desenvolvimento do capitalismo industrial. Defendemos isso durante 30 anos. Aí entramos na globalização neoliberal. [...] Para o capitalismo o agronegócio resolvia a questão do campo. Para nós não. Então a partir de 1990 começamos a substituir a RAC por outro modelo. [...]. Ou seja, anteriormente a burguesia tinha interesse variável pela RA [...]. Mas agora não, o agronegócio resolve o problema para a burguesia. Muita tecnologia, pouca mão de obra. O pessoal vai para a cidade que sabemos como fica. Ambiente tóxico. O  Brasil é o maior consumidor de venenos do mundo.[...]. Esse modelo não interessa para nós no campo. Então, qual reforma para nós? A reforma agrária popular. E a educação tem aí um papel muito importante (DELVECHIO, 2015).

[12] - Gregos e romanos consideravam a condição assalariada como uma variante da escravidão.
[13] - Outras instâncias desempenharam e desempenham funções análogas. Porém, nenhuma com o grau de precisão e organicidade atribuída à escola.
[14] - Aqui nos remetemos precipuamente para o campo de trabalho. No entanto a habilitação escolar transcende o âmbito desse campo, abrangendo o que usualmente é referido pelos educadores como o universo da cidadania.
[15] - A formação de uma boa parte da juventude trabalhadora, ainda hoje, não vai muito além da assimilação mais ou menos elaborada do universo conceitual alfanumérico, o qual é imprescindível tanto no âmbito do trabalho quanto da sociabilidade em geral. A utilidade da educação escolar para as pessoas numa sociedade letrada não carece de explicações. Não obstante, é certo que as pessoas não podem viver do uso pessoal que fazem da educação. Para que esta sirva como um meio de vida é necessário socializa-la, es os trabalhadores praticamente só conseguem fazer isso mediante a venda de sua força de trabalho.
[16] - A certificação oficial correspondente aos diversos níveis de ensino tornou-se praticamente uma
conditio sine qua non para se aceder aos empregos.     
[17] - A preocupação com a coisificação da atividade de ensino-aprendizagem é uma obsessão na escola oficial. Ela mede os conhecimentos assimilados. Mas, antes de tudo, mede a quantidade de horas que foram necessárias à obtenção de certo grau de certificação.
[18] - Temos de atentar para o trabalho enquanto categoria física e o trabalho enquanto categoria social. Enquanto categoria física, humana, o trabalho é certo gasto de energia muscular e nervosa. Enquanto categoria social é uma definição social. No atual regime social o professor é definido como um trabalhador, enquanto o estudante não. No entanto, é evidente que como sujeito-objeto da produção pedagógica, o estudante também trabalha.

[19] - O campo de trabalho pode se expressar numa concentração de pessoas no mesmo local de trabalho ou pode estar disperso como na educação à distância. O característico é que ele se encontra dominado e articulado diretamente pelo capital ou por uma forma equivalente. Em qualquer caso, o trabalhador coletivo segue presente, embora com diferenciações apreciáveis. 
[20] -  O local estava cheio. Estavam pais, mães, crianças pequenas e etc. Uns 6 ou 7 alunos, de ambos os sexos, estavam falando para os pais munidos de anotações numa folha de papel. E estavam apresentando reivindicações à direção da escola. O principal foi: a) muitos professores faltavam excessivamente; b) problema com transporte (ônibus) que é propiciado pela prefeitura. Os alunos reclamavam de certas “arbitrariedades” dos motoristas, o que prejudicava seu acesso à escola. [..]. A assembleia foi realizada em perfeita ordem. Mas, os pais falaram com desenvoltura expondo os seus pontos de vistas sobre vários assuntos. A assembleia era bastante informal e descontraída embora fossem respeitadas a ordem de inscrição etc. Não houve votações. Todos os assuntos já eram conhecidos e pelo visto todos esperavam que alguma providência fosse tomada. [...]. Observamos uma completa desinibição tanto por parte dos alunos quanto dos pais. Eles apresentaram os problemas com franqueza e os discutiram.  Concomitantemente, a diretora mais [outra gestora] iam expondo e colocando os problemas existentes em torno às questões apresentadas. [..]. [A reunião terminou com as gestoras afirmando que tentariam medidas mais enérgicas para solucionar os problemas apresentados].



[21] - Usamos a expressão autogestão no sentido genérico de autogoverno. Mesmo neste sentido devemos tomá-la cum grano salis. 
[22] - O MST não é um exclusivo de ativistas, mas uma organização de massas. Nos acampamentos e assentamentos muitas vezes não há escolas ou o acesso a estas é muito dificultoso, sobretudo para as crianças. É nesse contexto que surge originariamente a necessidade de o Movimento oferecer também uma educação certificada, de curso universal na sociedade.       
[23] - RAC, reformam agrária clássica. RAP, reforma agrária popular
[24] - Estamos considerando a escola estatal tradicional.  Portanto, abstraindo as formas mais recentes de privatizações mascaradas das escolas do Estado.
[25] - Até os anos 1970 estava estendida na sociedade a ideia de que a educação era efetivamente um direito da cidadania em progresso irremissível. Porém, com o advento das políticas neoliberais, a classe dominante lembrou a todos que essa ideia era uma falácia política, e nos dias atuais, até mesmo as escolas estatais mais humildes encontram-se sob risco de sofrerem alguma forma de privatização.
[26] - A massa estudantil é composta por estratos sociais diversos. A maioria provém de famílias assalariadas. A ideologia escolar (meritocrática) proclama que as possibilidades futuras dos estudantes dependem dos seus dons individuais. Mas, de fato, a maior parte dos estudantes está predestinada a integrar o baixo clero do salariato. 
[27] - A gestão democrática é uma cláusula da Constituição de 1988 e, em princípio, por força da lei rege ou deve reger o funcionamento da escola estatal. Contudo, a sua existência é na maioria dos casos meramente formal. E onde é aplicada de fato sofre das restrições inerentes à técnica política liberal sob a qual foi concebida, a qual zela pela supremacia da propriedade também na esfera da micropolítica escolar.   Portanto, encontram-se em contraposição, ainda que relativa, a gestão democrática oficial e a autogestão democrática preconizada pelo Movimento. Sobre a gestão democrática oficial ver Vieitez (2015). 
[28] -Naturalmente, não nos referimos aqui à aquisição da certificação de modo criminoso, mas simplesmente à aquisição normal desse bem.
[29] - As relações mercantis simples, de compra e venda de bens ou serviços, não implicam necessariamente a exploração  e a submissão da força de trabalho como ocorre com as relações mercantis capitalistas. 

El litio de Bolivia y la urgencia de un golpe




El historiador indio Vijay Prashad escribe sobre lo que podría estar detrás del
derrocamiento del presidente boliviano



Vijay Prashad



Leia em português | Read in English | Brasil de Fato, en São Paulo
, 12 de noviembre de 2019 19:51



El presidente de Bolivia Evo Morales fue derrocado por un golpe militar el 10 de
noviembre. Ahora está en México. Antes de ser obligado a dejar la presidencia
estuvo dedicado a un amplio proyecto de llevar democracia económica y social a
su largamente explotado país. Es importante recordar que Bolivia ha sufrido una
serie de golpes de Estado, a menudo encabezados por los militares y la
oligarquía en nombre de las empresas mineras transnacionales. Inicialmente, eran
empresas de estaño, pero el estaño ya no es el objetivo principal en Bolivia. El
objetivo principal son sus enormes depósitos de litio, cruciales para los
automóviles eléctricos.

Durante los últimos 13 años, Morales ha tratado de construir una relación
diferente entre el país y sus recursos naturales. No quería que esos recursos
beneficien a las transnacionales mineras, sino a su propia población. Parte de
esa promesa se cumplió ya que ha disminuido el porcentaje de pobreza y la
población boliviana ha mejorado sus indicadores sociales. La nacionalización los
recursos combinada con el uso de sus ingresos para financiar el desarrollo
social ha desempeñado un papel importante. La actitud del gobierno de Morales
hacia las empresas transnacionales produjo una áspera respuesta por parte de
ellas, muchas de las cuales llevaron a Bolivia ante los tribunales.

En el transcurso de los últimos años, Bolivia ha luchado por aumentar las
inversiones para desarrollar sus reservas de litio de forma que devuelvan la
riqueza del país a su gente. El vicepresidente de Morales, Álvaro García Linera,
dijo que el litio será «el combustible que alimente al mundo». Bolivia no pudo
llegar a acuerdos con empresas transnacionales occidentales; entonces decidió
asociarse con empresas chinas. Esto hizo vulnerable al gobierno de Morales.
Había entrado en la nueva Guerra Fría entre Occidente y China. El golpe contra
Morales no se puede entender sin una mirada a este enfrentamiento. 

Choque con las empresas transnacionales

Cuando Evo Morales y el Movimiento al Socialismo asumieron el poder en 2006, el
gobierno inmediatamente intentó deshacer décadas de robo por parte de las
empresas mineras transnacionales. El gobierno de Morales se apoderó de varias de
las operaciones mineras de las empresas más poderosas, como Glencore, Jindal
Steel, Anglo-Argentinian Pan American Energy y South American Silver (ahora
TriMetals Mining). Envió el mensaje de que las cosas no iban a continuar como
antes.

Sin embargo, estas grandes empresas continuaron con sus operaciones – basadas en
contratos antiguos – en algunas zonas del país. Por ejemplo, la transnacional
canadiense South American Silver había creado una compañía en 2003 – antes de
que Morales llegara al poder – para explotar en Malku Khota, en busca de plata e
indio (un metal de tierras raras utilizado en televisores de pantalla plana).
South American Silver comenzó entonces a extender el alcance de sus concesiones.
La tierra que reclamaba está habitada por indígenas bolivianos, que argumentaban
que la compañía estaba destruyendo sus espacios sagrados, así como promoviendo
una atmósfera de violencia.

El 1 de agosto de 2012, el gobierno de Morales, mediante el Decreto Supremo No.
1308 anuló el contrato con la South American Silver (TriMetals Mining), que
entonces buscó arbitraje internacional y compensaciones. El gobierno canadiense
de Justin Trudeau – como parte de un movimiento más amplio a favor de las
compañías mineras canadienses en Sudamérica – ejerció una presión inmensa sobre
Bolivia. En agosto de 2019, TriMetals alcanzó un acuerdo con el gobierno
boliviano por 25,8 millones de dólares, aproximadamente una décima parte de lo
que había exigido anteriormente como compensación.

Jindal Steel, una corporación transnacional india tenía un viejo contrato para
extraer mineral de hierro en Bolivia, en El Mutún, un contrato que el gobierno
de Morales suspendió en 2007. En junio de 2012, Jindal Steel rescindió el
contrato, buscó arbitraje internacional y una compensación por su inversión. En
2014 ganó 22,5 millones de dólares de la Cámara de Comercio Internacional con
sede en Paris. En otro caso, Jindal Steel exigió una compensación de 100
millones de dólares.

El gobierno de Morales confiscó tres instalaciones de la empresa minera
transnacional con sede en Suiza, Glencore, estas incluyen una mina de estaño y
zinc, así como dos fundiciones. La expropiación de la mina tuvo lugar luego de
que la subsidiaria de Glencore se enfrentara violentamente con los mineros.

De manera más agresiva, Pan American demandó al gobierno boliviano por 1.500
millones de dólares por la expropiación de su participación en la Petrolera
Chaco hecha por la compañía estatal de energía. Bolivia llegó a un acuerdo por
357 millones de dólares en 2014.

La escala de estos pagos es enorme. En 2014 se estimó que los pagos privados y
públicos hechos para la nacionalización de estos sectores clave ascendían por lo
menos a 1.900 millones de dólares (El PIB de Bolivia era de 28.000 millones de
dólares en ese momento).

En 2014, hasta el Financial Times, estuvo de acuerdo en que la estrategia de
Morales no era del todo inadecuada. «La prueba del éxito del modelo económico de
Morales es que desde que llegó al poder, ha triplicado el tamaño de la economía
al tiempo que ha logrado un récord en reservas de divisas».

Litio

Las reservas clave de Bolivia son de litio, que es esencial para los automóviles
eléctricos. Bolivia afirma tener el 70% de las reservas mundiales de litio,
sobre todo en el Salar de Uyuni. La complejidad de esta minería y su
procesamiento ha significado que Bolivia no haya sido capaz de desarrollar la
industria del litio por sí misma. Se requiere de capital y experticia.

El Salar está a 3.600 metros sobre el nivel del mar y recibe altas
precipitaciones. Esto dificulta utilizar evaporación solar. Soluciones más
simples ya están disponibles para el desierto de Atacama en Chile y para Hombre
Muerto en Argentina. En Bolivia se necesitan soluciones técnicamente más
complejas, lo que significa que se requiere más inversión.

La política de nacionalización del gobierno de Morales y la complejidad
geográfica del Salar de Uyuni ahuyentaron a varias empresas mineras
transnacionales. Eramet (Francia), FMC (Estados Unidos) y Posco (Corea del Sur)
no pudieron hacer negocios con Bolivia y ahora operan en Argentina.

Morales dejó claro que cualquier desarrollo del litio tenía que hacerse con su
compañía minera nacional, la COMIBOL y con Yacimientos de Litio Bolivianos
(YLB), su compañía nacional de litio como socias paritarias.

El año pasado la empresa alemana ACI Systems llegó a un acuerdo con Bolivia.
Después de protestas de los residentes en la región del Salar de Uyuni, Morales
canceló el acuerdo el 4 de noviembre de 2019.

Empresas chinas – como TBEA Group y China Machinery Engineering – llegaron a un
acuerdo con YLB. Se dijo que Tianqui Lithium Group de China, que opera en
Argentina, iba a llegar a un acuerdo con YLB. Tanto las inversiones chinas como
la Compañía Boliviana de Litio estaban experimentando con nuevas formas de
extraer el litio y de compartir las ganancias del litio. La idea de que hubiera
un nuevo pacto social para el litio era inaceptable para las principales
compañías mineras transnacionales. 

Tesla y Pure Energy Minerals (Canadá) mostraron ambas gran interés en tener una
participación directa en el litio boliviano. Pero no pudieron llegar a un
acuerdo que tuviera en cuenta los parámetros establecidos por el gobierno de
Morales. El propio Evo fue un impedimento directo para que las empresas
transnacionales no chinas se hicieran cargo de los campos de litio. Tuvo que
irse.

Después del golpe, las acciones de Tesla aumentaron astronómicamente.


In
BRASIL DE FATO
https://www.brasildefato.com.br/2019/11/12/articulo-or-el-litio-boliviano-y-la-urgencia-de-un-golpe/
12/11/2019

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Cinco estrategias de la guerra híbrida en Bolivia




La caída del Gobierno de Evo Morales es un nuevo capítulo de la guerra híbrida.
Una combinación de actos de guerra convencional, milicias irregulares y desorden
criminal, apoyados en narrativa mediática y accionar diplomático. 5 cursos de
acción que revelan por qué en Bolivia no hubo una rebelión popular, sino una
agresión altamente planificada.


El golpe de Estado en Bolivia no puede explicarse apelando solamente a factores
de la dinámica interna del país. Más bien, por un conjunto de indicios, encaja
perfectamente dentro del continuum de eventos internacionales denominados guerra
híbrida, una disputa que tiene por protagonistas principalmente a EEUU y Rusia.
Esta se extiende por distintos escenarios del planeta: Ucrania, Siria, Libia,
Venezuela, Líbano, Nicaragua.

La guerra híbrida se puede definir como una combinación en un campo de batalla
de fuerzas regulares y actores no estatales, ciberataques, tareas de espionaje y
propaganda, campañas de desestabilización y otras herramientas para deponer
gobiernos.

Estrategias de la guerra híbrida en Bolivia

Los análisis que pretenden limitar el origen de los acontecimientos en Bolivia a
particularidades locales, odio racial o decisiones del Gobierno depuesto, pasan
por alto todas las pistas del planificado diseño que permitió la toma militar
del territorio. A medida que pasan las horas, se revelan los perfiles de una
operación organizada desde el exterior, cabalgando sobre rivalidades y
divisiones internas de la población local.

Bolivia, al borde del abismo
Con la colaboración del andamiaje mediático y los agentes propios en el terreno,
la cadena de eventos en el país andino simuló una "espontaneidad histórica" que
desorientó a los habitantes y a las audiencias externas. Pero detrás del fárrago
informativo en torno a la caída del Gobierno de Evo Morales, es posible ver los
trazos gruesos de la guerra híbrida.

El país se vio conmocionado por una combinación de milicias irregulares, actos
terroristas y desorden criminal, apoyados en una narrativa mediática y un
accionar diplomático que legitimaron y potenciaron la velocidad de los
acontecimientos. El objetivo principal fue asestar un gran impacto psicológico
en la población y en la dirigencia boliviana, que permitió el derrumbe en
cascada del Gobierno en menos de 48 horas.

1. Hordas urbanas y tropas irregulares: ciudadanos en el campo de batalla

Amparados en la narrativa de la "indignación popular" por un supuesto fraude
electoral, milicias criminales tomaron el control de las ciudades. En Cochabamba
y otras partes del país los motoqueros de la denominada Resistencia Cochala
utilizaron bazucas y agua con químicos para atacar a militantes del MAS que
intentaban levantar bloqueos en las vías públicas y restituir la paz. Grupos
armados se movieron coordinadamente desde Santa Cruz hacia La Paz y otros puntos
estratégicos, según un plan que no pudo ser espontáneo. Esta forma de guerrilla
urbana devela un grado de preparación previa, entrenamiento y financiación de
los grupos de choque.


Los motoqueros —cuidadosamente ocultados en el relato mediático— sembraron el
terror en distintas ciudades y utilizaron hasta ambulancias para trasladar
armamento de guerra. Los grupos de choque tomaron la calle y focalizaron su
operación en instituciones del Estado boliviano, persiguieron funcionarios y
atemorizaron a la base social de apoyo al Gobierno. En todo el país, la
superioridad de las milicias criminales se impuso a los ciudadanos de a pie
—comerciantes y trabajadores— que pretendieron restablecer la normalidad.

Este proceso contó en un momento clave con el acuartelamiento de la Policía que
dejó una virtual zona liberada al accionar de los paramilitares. Los motines
policiales agregaron sinergia a la sedición para nutrir la logística de los
grupos de choque, que estuvieron en condiciones de aprovisionarse de armamento,
vestimenta, chalecos antibalas, radios y otros instrumentos.



¿Podría Evo Morales volver al poder en Bolivia?
La escalada final se produjo con la agresión y extorsión simultánea de
ministros, parlamentarios y autoridades comunales, que renunciaron en masa en
cuestión de horas. Esto infligió un dramático giro a los acontecimientos. La
extensión y coordinación de esta operación demandó necesariamente datos de
inteligencia y coordinación militar que no pudo provenir de una revuelta
ciudadana común.

2. Red de ONG y activistas sicarios como fuente de noticias que validan la
'revolución ciudadana'

El guerra híbrida se apropia de temáticas, técnicas y consignas tradicionales de
la lucha popular, y crea en los territorios target una red de organizaciones
sicarias que fungen de ONG, periodistas independientes y activistas ciudadanos.
Esta trabajan en forma coordinada con las operaciones militares para alimentar
narrativas noticiosas orientadas a la manipulación mental a gran escala.


"Morales continuará siendo un líder social y político de gran importancia en
Bolivia"
Plantados en el terreno con años de anticipación, activistas defensores de
derechos humanos, ambientalistas y ONG producen un relato falsificado de la
realidad, un alud de retorcimientos discursivos y fake news que siembran
descontento y falsos planteamientos sobre el origen de los problemas del país.

En Bolivia, al igual que en otros teatros de operaciones, un conjunto de
organizaciones civiles actuaron como fuerza de reclutamiento y adoctrinamiento
de jóvenes, y plataforma de propaganda de la operación bélica. Su accionar
sesgado es notorio en tres circunstancias visibles:
  Sus figuras públicas se embanderan con posiciones abiertamente partidarias que
  suelen estar vetadas en organizaciones de su tipo.
  Su financiamiento proviene de fondos extranjeros, habitualmente agencias
  norteamericanas de fomento a la democracia.
  Son fuente de consulta habitual de las grandes cadenas noticiosas
  norteamericanas y europeas, que le otorgan a su testimonio una pátina de
  imparcialidad en el terreno de los hechos.

En los días posteriores de la operación, estas fuentes trabajan para encubrir
los crímenes de la operación y estigmatizar al Gobierno derrocado.

3. Apagón informativo y redes sociales naturalizando la violencia

En un escenario de guerra híbrida, la percepción de la ciudadanía de lo que
sucede es vital para ganar la batalla. La toma de Bolivia TV por parte de grupos
guerrilleros se evidenció como parte de un plan militar. El apagón informativo
de la emisora oficial permitió optimizar la tarea de la red de medios adictos
que se dedicaron a sembrar la confusión y la desinformación.


¿Qué repercusiones tendrá para México el asilo a Evo Morales?
En general, la estrategia de manipulación masiva en la guerra híbrida se centra
en la inversión del sentido de los hechos: los agresores se presentan como
agredidos y viceversa. Los vídeos de atrocidades de bandas criminales se
muestran como acciones violentas de seguidores del Gobierno. Se potencian los
mensajes del odio y de soluciones extremas, que validan ante los espectadores
del mundo cualquier conclusión violenta.

Esta narrativa en los medios tradicionales se articula con el ciberataque en las
redes: bots, troles y activistas se dedican a inundar Twitter y Facebook con
mensajes, memes y testimonios en vivo que escenifican una mentirosa unanimidad
anti-Gobierno entre la población. Se legitima la barbarie que ocurre en las
calles y se invierte la responsabilidad por los hechos, ya que se culpa al
Gobierno por el clima de violencia.

4. Accionar político y diplomático para potenciar los conflictos y legitimar la
sedición

El conflicto en torno a las denuncias de fraude electoral fue artificialmente
montado para crear una narrativa que explique y justifique la rebelión
ciudadana. El curso de los acontecimientos permite deducir que no hubo ningún
fraude porque, de otra manera, la acción política de los ciudadanos hubiera
esperado el veredicto de la comisión de la OEA, que estaba previsto para este 12
de noviembre. La actitud negociadora del Gobierno no permitió justificar ningún
desborde previo, y menos teniendo en cuenta que los representantes de la OEA se
presentaron desde el principio como hostiles al Gobierno.

Manifestantes en La Paz piden regreso de Evo Morales y llamado a elecciones
La OEA, a través de Luis Almagro (un peón desembozado de la guerra híbrida
contra Venezuela), fue funcional a la estrategia de agitación social. Primero
interfirió en el proceso con opiniones institucionalmente fuera de lugar, como
"recomendar" una segunda vuelta. Luego arrojó leña al fuego de las noticias
tendenciosas al sugerir una imprecisa "manipulación estadística". Finalmente se
llamó a un silencio cómplice inadmisible —hecho que fue resaltado públicamente
por el presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador— cuando se produjo la
ruptura institucional.

El presidente de EEUU, Donald Trump, coronó el menú de indicios con su aplauso
al golpe, y también la negativa de Gobiernos alineados con Washington a
facilitar el rescate aéreo de Evo Morales por parte de México.

5. Criminalización del Gobierno saliente y fomento de las divisiones sociales

La guerra híbrida contra los pueblos del mundo no se plantea el reemplazo de un
gobierno indeseable por un gobierno títere, ni tampoco el descabezamiento de un
sector de la sociedad para que gobierne otro. Más bien, se trata de que no
gobierne nadie, y sentar las bases para un desgobierno de tiempo indefinido. Es
el fomento del caos más que la toma del control. Se plantea el diseño de una
guerra de perros: mediante agresiones y atentados contra ciertos grupos, se
plantan las semillas de un odio profundo entre facciones rivales. En los últimos
días, este proceso toma cuerpo con el inicio de una limpieza étnica y política
contra las capas sociales que respaldan a Evo Morales, y el encarcelamiento de
funcionarios del Gobierno derrocado bajo acusaciones sin fundamento. La promesa
del cívico Camacho, líder de la sedición, de salir a la cacería de militantes
del MAS es otro ingrediente en esa línea.


Los desacuerdos en el seno de la coalición golpista para formar gobierno son
parte de un menú que incluye fomentar el caos y la ausencia de
institucionalidad.

El diseño de la guerra híbrida se orienta a que el Estado implosione por el
desacuerdo general y el odio. Se trata de cultivar la percepción de la comunidad
internacional, y entre los propios bolivianos, de que el país fracasa por culpa
de su propia población, dividida en tribus irreconciliables.

Conclusión: el peligro de una guerra continental

El accionar destructivo de las bandas criminales que operan en Bolivia —civiles,
policías y militares sediciosos—, tiene una inspiración foránea. En el fondo, el
principal objetivo es humillar al país, someter a un escarmiento a la población
más combativa, y hacer retroceder décadas el desarrollo de la sociedad en su
conjunto. El Ejército y la Policía, que dijeron negarse a reprimir a bolivianos,
ya actúan como una fuerza de ocupación extranjera, apaleando a mansalva a los
manifestantes que reclaman por el Gobierno legítimamente electo.

La guerra híbrida en Bolivia es parte de una geopolítica mundial mucho más
amplia, donde toda la estabilidad del continente corre peligro. Urge tomar
conciencia, ganar las calles y detener la escalada.

LA OPINIÓN DEL AUTOR NO COINCIDE NECESARIAMENTE CON LA DE SPUTNIK Y LOS TEXTOS
ESTÁN AUTOEDITADOS POR LOS PROPIOS BLOGUEROS

In
SPUTNIK
https://mundo.sputniknews.com/blogs/201911131089297828-cinco-estrategias-de-guerra-hibrida-en-bolivia/
13/11/2019

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Pinochet reinstala-se em La Moneda



por Juan Pablo Cárdenas S. [*]
A distopia chilena. O fantasma do ex-ditador percorre os corredores de La Moneda. Com grande acerto jornalístico, a televisão alemã ofereceu ao mundo uma reportagem audiovisual em que reproduz a declaração de guerra de Sebastián Piñera ao protesto social, quase nos mesmos termos em que o fez Pinochet décadas atrás. A exposição de ambas as imagens é eloquente e fala de como e actual morador do Palácio Presidencial é filho dilecto do Tirano que com idênticas palavras e recursos criminais manda reprimir o clamor de justiça e equidade.

É compreensível. Sebastián Piñera deve a Pinochet a oportunidade de se ter convertido num multimilionário durante esses fatídicos anos de ditadura, assim como na sua hora final o ex-governante deve ter agradecido ao actual mandatário por ir visitá-lo a Londres e advogar pela sua impunidade, quando o Tribunal Internacional de Haia poderia tê-lo condenado exemplarmente perante a história pelos seus crimes de lesa humanidade.

Não há dúvida: Piñera é parte do legado de Pinochet, da sua Constituição e regime neoliberal, os quais têm por fim seus dias contados. Hoje é a imensa e sustentada rebelião popular que exige à política uma Assembleia Constituinte e o fim dos horrores cometidos pelo capitalismo ultra desapiedado. Advertindo ao mundo para que nunca mais possa impor-se um regime económico de tantas iniquidades como o que adoptou o Regime cívico militar e recebeu o beneplácito dos governos "democráticos" que o seguiram.

Tal como o seu mentor, Piñera diz que está "mais firme que nunca", que ninguém o moverá de La Moneda até completar os anos que lhe faltam na sua administração. Contudo, os factos obstinados indicam-nos que a explosão social não retrocede, que os chilenos não se conformam com as migalhas que lhe querem dar as desesperadas iniciativas de um governo cujos ministros de estado, parlamentares e partidários já sabem que está cambaleante. Pela mesma razão que as contradições entre uns e outros se tornam evidentes todos os dias, como o facto de que há algumas horas o próprio Piñera ter implorado a lealdade do centro-direita.

Recordamos que durante um protesto o Ditador decidiu olhar de helicóptero a cidade de Santiago em chamasr . Não nos consta, contudo, que seu filho dilecto tenha feito algo parecido nestes dias de fúria social. Assim como tão pouco temos certeza de que sequer assista através da televisão tudo o que acontece. Que acompanhe o que transmitem os canais que foram tão obsequiosos com os governos culpáveis pelo sucedido e que, naturalmente, vivem a expensas dos grandes empresários cuja voracidade e perversão moral é também uma das principais responsáveis da grave crise que vivemos.

Mas tão pouco poderíamos estar seguros de que Piñera sinta alguma compaixão pelo país e por aquilo que se manifesta nestes novos protestos. Que possa realmente ruborizar-se diante das pensões miseráveis que condenam os chilenos da Terceira idade já nos seus últimos dias, depois de trabalharem por 30 ou 40 anos. Que possa sensibilizar-se sinceramente frente ao miserável rendimento médio dos trabalhadores chilenos e que, a olhos vistos, não chega para cobrir os gastos de primeira necessidade das suas famílias. Tanto é assim que uma alta de apenas 30 pesos na tarifa do metro pôde despertar tanta dor e raiva contidas.

Também não cremos que pudesse avaliar o impacto que significa para os lares chilenos que seus doentes, sobretudo as crianças e os anciões, morram todos os dias à espera de entrar no edifício dos hospitais ou receber os medicamentos necessários. Porque para Piñera e seus semelhantes, a saúde é um serviço pelo qual há que pagar, e caro, assim como a educação e as habitações básicas. Tal como se concede às empresas privadas estrangeiras a [exploração da] água ou as portagens por circular pelas auto-estradas, cujos valores aumentam todos os anos acima do índice de preços no consumidor. Segundo o que foi pactuado vergonhosa e servilmente pelos governos e parlamentos da pós-ditadura com os investidores estrangeiros. Ao concederem-lhes propriedades e privilégios que agora causam rubor a eles próprios, quando se inteiram da severa angústia dos pobres e das graves carências da classe média. Porque, sem qualquer lei ou pressão estatal, eles já prometem reajustar os salários dos seus empregados e cumprir suas obrigações fiscais burladas durante longos anos.

Não sabemos também se Piñera é capaz de se impressionar com a quantidade de pessoas agredidas pela polícia e pelos militares que ele lançou à rua para, mais uma vez, enfrentar o seu próprio povo. Apreciar como hoje mais de duzentos homens e mulheres tornaram-se deficientes devido às balas lançadas a queima-roupa pelas chamadas Forças Especiais e que lhes esvaziaram suas órbitas oculares. Não sabemos se alguma vez enquanto jovem e estudante este patético personagem recebeu alguma bastonada dos polícias, como as dessa criança golpeada brutalmente depois de detida por dois "guardiões da ordem e da segurança". Ou se será capaz de compreender o que pode significar para um jovem adolescente receber dezenas de chumbos nas suas pernas dentro do seu próprio estabelecimento escolar. Da parte, naturalmente, de outro desalmado polícia a muito poucos metros de distância.

Não, certamente não. Piñera só entende de números macroeconómicos e continua convencido que o melhor estímulo para o crescimento é que os ricos sejam cada vez mais ricos e a mão-de-obra seja cada vez mais barata a fim de que nossos produtos de exportação sejam "competitivos" no mercado internacional. Para que, além disso, as oportunidades da nossa geografia, jazidas, bosques e mares atraiam cada vez mais capitais para o Chile, onde os dividendos dos "empreendedores", como costumam qualificar-se, não chegam nunca ao bolso dos que trabalham ou dos que se aposentaram depois de 30 ou 40 anos de esforço e esperanças frustradas.

Devido à sua enorme megalomania, Piñera acredita que vai contar sempre com o apoio dos grandes empresários e do governo da Casa Branca, onde compareceu para oferecer a estrela do nosso emblema nacional a Trump e prendê-la à bandeira estado-unidense. Esquece-se que até há muito poucos anos seus próprios colegas da classe empresarial chilena envergonhavam-se da sua cobiça e falta de probidade descarada. Ao que parece, esqueceu-se dessa série de artigos e colunas que os seus pares políticos o fustigavam. Como esses lúcidos escritos de quem foi seu companheiro de lista senatorial, o reaccionário jornalista Hermógenes Pérez de Arce. Ou o seu próprio irmão, o economista ultra-neoliberal que agora tem que o seu sistema previsional esteja em perigo.

Cercado de colaboradores abjectos e desavergonhados, Piñera propõe-se a permanecer no governo, quando os números dos inquéritos indicam que a sua popularidade já baixou dos dois dígitos. Quando suas expressões são refutadas pelos chefes que se supõem da sua confiança e quando se sabe que o Presidente da Corte Suprema e o Presidente do Tribunal de Contas da República (além dos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados) repudiaram a sua iniciativa errática de convocar o Conselho de Segurança Nacional, como se o país estivesse sob perigo por causa de um inimigo externo.

Nesta altura já não sabemos se comparar Piñera com Pinochet será igualmente lesivo para ambos, especialmente para este último ainda que pelo visto se tenha convertido no seu emulo. Mas o que temos claro é que, como àquele, a este outro só pode derrubá-lo o povo e seu protesto activo. Com a diferença de que o actual usurpador de La Moneda já não está em condições de negociar a sua saída e, menos ainda, de impor o seu legado. Porque se algo temos muito claro que é se se propusesse a negociar a sua saída com o Parlamento, os partidos e os poderosos grémios empresariais, certamente os arrastaria todos pelo seu mesmo despenhadeiro. Se considerarmos que seus níveis de desprestígio verdadeiramente são compartilhados com todos eles.

É hora de o povo não procurar salvadores. Que sejam os milhões de chilenos mobilizados aqueles que o encarem e o expulsem de La Moneda. Que por motivo algum endossemos nossos direitos e obrigações cidadãs aos oportunistas do momento, que já oferecem seus serviços de intermediação. Porque já sabemos o que acontece quando se negocia o futuro nas costas dos cidadãos. Sem Assembleia Constituinte, por exemplo, a qual deve constituir-se no primeiro passo para recuperar a dignidade nacional avassalada.
10/Novembro/2019
[*] Jornalista, chileno.

O original encontra-se em juanpablocardenas.cl


Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
12/Nov/19

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Bolivia. O golpe: cinco lições




*por Atilio Boron *

A tragédia boliviana ensina com eloquência várias lições que nossos
povos e as forças sociais e políticas populares devem aprender e gravar
para sempre nas suas consciências. Aqui, uma breve enumeração, em
andamento, e como prelúdio a um tratamento mais pormenorizado no futuro.

Primeiro, que por mais que se administre a economia de modo exemplar
como fez o governo de Evo, que se garanta crescimento, redistribuição,
fluxo de investimentos e que se melhorem todos os indicadores macro e
microeconómicos a direita e o imperialismo jamais aceitarão um governo
que não se ponha ao serviço dos seus interesses.

Segundo, há que estudar os manuais publicados por diversas agências dos
EUA e dos seus porta-vozes disfarçados de académicos ou jornalistas para
poder perceber a tempo os sinais da ofensiva. Esses escritos
invariavelmente ressaltam a necessidade de destruir a reputação do líder
popular, o que no jargão especializado se chama assassinato do
personagem /("character assassination") / qualificando-o de ladrão,
corrupto, ditador ou ignorante. Esta é a tarefa confiada a comunicadores
sociais, autoproclamados como "jornalistas independentes", que em favor
do seu controle quase monopólico dos media perfuram o cérebro da
população com tais difamações, acompanhadas, no caso presente, por
mensagens de ódio contra os povos originários e os pobres em geral.

Terceiro, uma vez cumprido o anterior chega o momento de os dirigentes
políticos e as elites económicas reclamarem "uma mudança", de por fim à
"ditadura" de Evo que, como escreveu há poucos dias o inapresentável
Vargas Llosa, é um "demagogo que quer eternizar-se no poder". Suponho
que estará a brindar com champanhe em Madrid ao ver as imagens das
hordas fascistas a saquearem, incendiarem, acorrentarem jornalistas a um
poste, rasparem uma mulher presidente de municipalidade pintando-a de
vermelhos e destruírem as actas da eleição passada para cumprir com o
mandato de don Mario e libertar a Bolívia de um demagogo maligno.
Menciono seu caso porque foi e é o porta-estandarte imoral deste ataque
vil, desta felonia sem limites que crucifica lideranças populares,
destrói uma democracia e instala o reinado do terror a cargo de bandos
de sicários contratados para escarmentar um povo digno que teve a
ousadia de querer ser livre.

Quarto: entram em cena as "forças de segurança". Neste caso estamos a
falar de instituições controladas por numerosas agências, militares e
civis, do governo dos Estados Unidos. Estas treinam-nas, armam-nas,
fazes exercícios conjuntos e educam-nas politicamente. Tive ocasião de
comprová-lo quando, por convite de Evo, inaugurei um curso sobre
"Anti-imperialismo" para oficiais superiores das três armas. Nessa
oportunidade fiquei alarmado pelo grau de penetração das mais
reaccionárias palavras de ordem norte-americanas herdadas da época da
Guerra fria e pela não dissimulada irritação causada pelo facto de um
indígena ser presidente do país. O que fizeram essas "forças de
segurança" foi retirar-se da cena e deixar o campo livre para a actuação
descontrolada das hordas fascistas – como as que actuaram na Ucrânia, na
Líbia, no Iraque, na Síria para derrubar, ou tentar fazê-lo neste último
caso, líderes incómodos para o império – e desse modo intimidar a
população, a militância e as próprias figuras do governo. Ou seja, uma
nova figura sócio-política: golpismo militar "por omissão", deixando que
os bandos reaccionários, recrutados e financiados pela direita, imponham
sua lei. Uma vez que reina o terror e perante a vulnerabilidade do
governo o desenlace era inevitável.

Quinto, jamais a segurança e a ordem pública na Bolívia deveriam ter
sido confiadas a instituições como a polícia e o exército, colonizadas
pelo imperialismo e seus lacaios da direita autóctone. Quando se lançou
a ofensiva contra Evo optou-se por uma política de apaziguamento e de
não responder às provocações dos fascistas. Isto serviu para
encorajá-los e aumentar a aposta: primeiro, exigir eleições; depois,
fraude e novas eleições; a seguir, eleições mas sem Evo (como no Brasil,
sem Lula); mais tarde, renúncia de Evo; finalmente, perante sua
relutância em aceitar a chantagem, semear o terror com a cumplicidade de
polícias e militares e forçar Evo a renunciar. É de manual, tudo de
manual. Aprenderemos estas lições?

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/bolivia/boron_10nov19.html
10/11/2019

terça-feira, 5 de novembro de 2019

O despertar dos povos




José Goulão

   

Parece inegável que em pontos muito diferentes do globo há povos que
despertam contra a ditadura económica globalizante do neoliberalismo e
as suas trágicas consequências sociais.

Depois de aprovado no Senado a conquista histórica da redução da semana
de trabalho para 40 horas os trabalhadores e o povo chileno não desarmam
e continuam na rua a exigir direitos e o fim o afastamento da cúpula
ultra-liberal. 25 de Outubro de 2019, Santiago, Chile

Depois de aprovado no Senado a conquista histórica da redução da semana
de trabalho para 40 horas os trabalhadores e o povo chileno não desarmam
e continuam na rua a exigir direitos e o fim o afastamento da cúpula
ultra-liberal. 25 de Outubro de 2019, Santiago, ChileCréditos

A paz podre do neoliberalismo globalizante e o conformismo social que
lhe corresponde estão a ser sacudidos através do mundo. Nas urnas e nas
ruas – as duas frentes são democraticamente legítimas e complementares –
os povos dão sinais de que a sonolência hipnótica induzida pelo
/entertainment/ mediático em que se transformou tudo o que tem a ver com
a vida das pessoas é uma arma que também se desgasta, desmascara e vai
perdendo eficácia. Uma faúlha representada por um aumento de preços, um
corte de subsídios sociais, o lançamento de mais um imposto tornaram-se
agora susceptíveis de provocar grandes e vibrantes explosões sociais. A
arbitrariedade e a impunidade do sistema dominante começam a encontrar
barreiras humanas.

Multiplicam-se os focos de contestação popular em zonas diversificadas
do mundo. Mas será um erro avaliá-los segundo uma bitola única, além de
ser profundamente desaconselhável deixar-nos conduzir pelos conteúdos e
sistematizações que brotam da comunicação social dominante. Esta recorre
a métodos padronizados com alguns objectivos principais: diluir a
importância e a legitimidade de acções cívicas através do empolamento
dos fenómenos de violência e que, em última análise, funcionam em
benefício do opressor; misturar razões e motivos para confundir e
esconder, deste modo, a mensagem essencial enviada pelos comportamentos
de massas; associar situações que são liminarmente antagónicas; ou então
evitar ligar circunstâncias e consequências que, sendo diferentes, têm,
obviamente, objectivos convergentes. Por exemplo, tratar as
manifestações no Chile contra o neoliberalismo como irmãs gémeas dos
desacatos na Bolívia a favor do neoliberalismo é tão perverso do ponto
de vista informativo como esconder que os movimentos populares chilenos
têm exactamente a mesma motivação que os resultados das eleições na
Argentina dando guia de marcha a Macri, o homem do FMI.

A única maneira de compreender o que está a passar-se do ponto de vista
global através das grandes movimentações populares em curso é partir da
observação isolada de cada caso para chegar ao que têm em comum – como
indicadores de uma tendência.


    Do Chile à Catalunha

Embora em diferentes fases de maturação, é possível comparar, sem
misturar alhos com bugalhos como capricha em fazer a informação
/mainstream/, várias situações em diferentes continentes: Chile, Bolívia
(e Venezuela), Líbano, Catalunha, Argentina, Equador, Hong Kong,
Honduras, Iraque, Nicarágua.

    «Quem seguir os acontecimentos no Equador e em Hong Kong comodamente
    instalado em frente do televisor, ainda que vá manejando o
    telecomando para ir variando de espaços noticiosos, fica a saber que
    os energúmenos latino-americanos são incapazes de aceitar um corte
    de subsídios de combustível recomendado pelo FMI e que o corajoso
    povo asiático enfrenta destemidamente os sinistros ocupantes
    chineses. São bons exemplos de como funciona a propaganda neoliberal.»

O que está a passar-se no Chile tem características objectivas e
simbólicas importantíssimas, das quais ressalta uma rejeição absoluta da
ditadura económica neoliberal. O Chile é o país onde foi aplicada pela
primeira vez, já lá vão 46 anos, a ortodoxia económica neoliberal, a
cargo dos agentes da sua escola teórica em Chicago, sob cobertura da
ditadura política fascista do general Augusto Pinochet.

A situação demonstrou que o neoliberalismo é, de facto, o fascismo
económico; desenvolvimentos posteriores revelaram – como aliás constatou
a senhora Thatcher, inspiradora do «novo» partido parlamentar Iniciativa
Liberal – que pode ser compatível com formas muito controladas e
manipuladas de democracia política, desde que sustentadas pela
transformação da comunicação social dominante num aparelho feroz de
propaganda. O que se mantém, em qualquer das situações, são os
mecanismos de ditadura económica através da imposição da ortodoxia do
«sistema de mercado».

No Chile não houve uma transição para a democracia com a saída de
Pinochet, mas sim o prolongamento do pinochetismo travestido de
democracia, regime em que se comprometeu – traindo inexoravelmente a
memória do sacrificado Salvador Allende – o Partido Socialista do Chile,
através da ex-presidente Michelle Bachelet.


    Povo chileno continua nas ruas por mudanças sociais

<https://www.abrilabril.pt/internacional/povo-chileno-continua-nas-ruas-por-mudancas-sociais>Ler
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<https://www.abrilabril.pt/internacional/povo-chileno-continua-nas-ruas-por-mudancas-sociais>
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É contra essa eternização da escravatura neoliberal que se levantam
agora as massas chilenas, quanto a propaganda disfarçada de informação
prefere destacar os comportamentos violentos para esconder, por exemplo,
a gigantesca manifestação pacífica de um milhão e 200 mil pessoas em
Santiago no passado dia 25, que só tem paralelo com as da Unidade
Popular nos anos setenta do século passado. O aumento dos preços das
viagens de metropolitano foi o detonador, a gota que pôs fim à paciência
dos chilenos, que os ricos mais ricos de um dos países mais desiguais do
mundo julgavam eterna.

Na Catalunha não é o neoliberalismo que está directamente em causa. Mas
a incapacidade para se dar conta da existência de um movimento de
milhões de pessoas pela autodeterminação catalã é comportamento próprio
de um Estado centralista e avesso ao diálogo – como são as estruturas de
poder neoliberais.

É evidente que a propósito da Catalunha, a região mais rica de Espanha,
existem razões económicas escondidas em invocações «constitucionalistas»
baratas e em «unidades nacionais» de índole feudal. Um Estado
verdadeiramente democrático não teria dificuldades em dar a palavra aos
catalães – e a outros povos de Espanha – para decidirem sobre o seu
futuro. Mas o Estado que emana de Madrid o seu neofranquismo latente,
agora como sustentáculo da ortodoxia neoliberal, não é capaz de viver
com isso. No entanto, tal como no Chile, há novas realidades que tornam
impossível que tudo continue como até aqui.


    Marchas pela Liberdade inundam Barcelona em dia de greve geral

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Por detrás do autoritarismo do Estado espanhol está a União Europeia,
esse panteão neoliberal que se recusa a conhecer o que pretendem os
catalães mas foi lépido em acolher entidades secessionistas como a
Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Croácia, Eslovénia; e que
inventou outras por sua conta, risco, fraudes e guerras, como o Kosovo e
a Macedónia do Norte.


    Do Equador a Hong Kong

Quem seguir os acontecimentos no Equador e em Hong Kong comodamente
instalado em frente do televisor, ainda que vá manejando o telecomando
para ir variando de espaços noticiosos, fica a saber que os energúmenos
latino-americanos são incapazes de aceitar um corte de subsídios de
combustível recomendado pelo FMI e que o corajoso povo asiático enfrenta
destemidamente os sinistros ocupantes chineses.

São bons exemplos de como funciona a propaganda neoliberal.

    «tratar as manifestações no Chile contra o neoliberalismo como irmãs
    gémeas dos desacatos na Bolívia a favor do neoliberalismo é tão
    perverso do ponto de vista informativo como esconder que os
    movimentos populares chilenos têm exactamente a mesma motivação que
    os resultados das eleições na Argentina dando guia de marcha a
    Macri, o homem do FMI»

No Equador, as populações levantam-se contra o ressurgimento neoliberal
proporcionado pela traição de Lenin Moreno à política de uma década de
avanços sociais e soberanos conduzida por Rafael Corrêa, de quem foi
vice-presidente. Os equatorianos recusam-se, deste modo, a regressar a
um passado de submissão ainda recente.

Em Hong Kong, os «ninjas» teleguiados de Washington e recorrendo a uma
estratégia generalizada de intimidação actuam para que se mantenha o
colonialismo ocidental, que fez do território um bastião do capitalismo
na sua versão neoliberal mais ortodoxa.


    Resistência popular ao neoliberalismo deu alguns frutos e
    equatorianos celebram

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Uma vez que o regresso do território à soberania chinesa é interpretado
como uma tentativa para perturbar a ortodoxia colonialista reinante
torna-se fácil entender o que está a acontecer, sobretudo enquadrando a
situação na fase de ataque cerrado contra os avanços económicos e
comerciais chineses conduzido pela administração Trump. Em Hong Kong, o
activismo a soldo de Washington e Londres nada tem a ver com uma
população que, quando chamada a pronunciar-se sobre a administração do
território, vota em massa nas organizações sintonizadas com a soberania
chinesa.


    Nas urnas como nas ruas

Na Argentina e na Bolívia os cidadãos disseram nas urnas o mesmo que os
chilenos, equatorianos, hondurenhos e libaneses expressam nas ruas: a
rejeição do neoliberalismo.

A realidade é mais complexa, naturalmente, mas essa é a mensagem essencial.

    «começa a desenhar-se uma tendência popular para abandonar o
    conformismo e enfrentar Estados tornados autoritários para poderem
    impor as soluções económicas únicas, as toleradas pelo «mercado».
    Essas acções populares não se confundem, a não ser no âmbito da
    estratégia manipuladora da própria propaganda neoliberal, com
    arruaças, tumultos e comportamentos terroristas como os que
    acontecem na Bolívia, na Venezuela, Hong Kong e Nicarágua, por exemplo»

Os argentinos não deixaram margem para dúvidas: aproveitaram a primeira
oportunidade eleitoral que lhes surgiu e puseram fim ao terrorismo
neoliberal implantado pela ditadura de Mauricio Macri, ao serviço do
FMI, que em quatro anos arrasou a economia do país ampliando fenómenos
como a pobreza, a submissão, a desigualdade, a delinquência.

A afinidade entre chilenos e argentinos é total; o mesmo acontece com os
equatorianos e os hondurenhos. Estes enfrentam corajosamente um regime
terrorista nascido de um golpe patrocinado por Barack Obama e Hillary
Clinton e sustentado por sucessivas eleições fraudulentas as quais, não
obstante, têm recebido a chancela de legitimidade democrática outorgada
por delegações da União Europeia.

Na Bolívia, o triunfo de Evo Morales e a nova rejeição do neoliberalismo
foram difíceis num ambiente de manipulação norte-americana – a embaixada
em La Paz foi apanhada a comprar votos, principalmente em Santa Cruz,
tal como já o fizera com deputados da Macedónia do Norte – que continua
após as eleições.


    É oficial: Evo Morales reeleito na Bolívia

<https://www.abrilabril.pt/internacional/e-oficial-evo-morales-reeleito-na-bolivia>Ler
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<https://www.abrilabril.pt/internacional/e-oficial-evo-morales-reeleito-na-bolivia>
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O candidato oficial do neoliberalismo, o antigo presidente Carlos Mesa,
deu o tiro de partida para a contestação levantando a acusação de
«fraude» quando a contagem de votos estava no início. Dessa suposta
fraude nenhuma prova apresentou, porque não houve. Mas as consequentes
arruaças servem para a propaganda mediática disseminar o mote como uma
verdade absoluta, sancionada por «organizações internacionais», as que
se consideram portadoras dos mecanismos de avaliação de legitimidades.

Não é difícil perceber a intenção manipuladora da comunicação social
dominante quando associa os protestos na Bolívia aos do Chile. No fundo
é o mesmo estilo de propaganda que transforma em grandes manifestações
populares pela democracia as arruaças terroristas do usurpador Juan
Guaidó na Venezuela.


    Protestos continuam no Líbano contra más condições de vida

<https://www.abrilabril.pt/internacional/protestos-continuam-no-libano-contra-mas-condicoes-de-vida>Ler
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Desperta também o povo do Líbano. Nova sobrecarga de impostos num país
avassalado por uma crise económica e afogado em corrupção e privilégios
dos titulares e ex-titulares do poder foi a gota que fez transbordar a
paciência. É um protesto massivo contra um sistema político que pode ser
assimilado a outros como os do Chile, Equador e Honduras, mas que que
combina a ortodoxia neoliberal com um confessionalismo herdado do
domínio colonial – sempre presente. Por isso, as reivindicações
populares vão além da convocação de novas eleições gerais; exigem uma
lei eleitoral que deixe de estar subordinada a quotas de eleitos
distribuídas pelas comunidades étnico-religiosas e estabeleça um
sufrágio universal directo e proporcional. É aí que se fixa o nó do
problema, porque nenhum dos protectores coloniais do Líbano, da França
aos Estados Unidos, passando por Israel e Arábia Saudita, está disposto
a aceitar uma transparência democrática que possa traduzir-se, por
exemplo, numa vitória do Hezbollah, como chega a ser vaticinada ainda
que a comunidade xiita não seja maioritária no país. As manifestações de
massas fizeram já cair o presidente, mas a realização de eleições
segundo a metodologia em vigor produzirá um pouco de mais do mesmo. E,
para já, de uma maneira perversa, a Arábia Saudita marcou pontos, porque
estava interessada na queda do actual chefe de Estado.

Os tumultos no Iraque têm motivações bastante mais ambíguas e
enviesadas. Não é difícil arrastar as massas para as ruas numa situação
de crise económica grave decorrente da invasão, ocupação e
desmantelamento do país pelas tropas norte-americanas, a que se seguiram
guerras ainda por resolver. Porém, a concretização das exigências do
sector mais radical e contundente dos manifestantes, a demissão do
primeiro-ministro, seria um favor às pretensões actuais dos Estados
Unidos, que vêem no actual governo um adversário aos seus objectivos de
isolamento e fragilização do Irão.


    Povos em acção

Parece inegável que em pontos muito diferentes do globo há povos que
despertam contra a ditadura económica globalizante do neoliberalismo e
as suas trágicas consequências sociais. Independente de questões
específicas de cada caso, começa a desenhar-se uma tendência popular
para abandonar o conformismo e enfrentar Estados tornados autoritários
para poderem impor as soluções económicas únicas, as toleradas pelo
«mercado».

    «Nas urnas e nas ruas – as duas frentes são democraticamente
    legítimas e complementares – os povos dão sinais de que a sonolência
    hipnótica induzida pelo /entertainment/ mediático em que se
    transformou tudo o que tem a ver com a vida das pessoas é uma arma
    que também se desgasta, desmascara e vai perdendo eficácia»

Essas acções populares não se confundem, a não ser no âmbito da
estratégia manipuladora da própria propaganda neoliberal, com arruaças,
tumultos e comportamentos terroristas como os que acontecem na Bolívia,
na Venezuela, Hong Kong e Nicarágua, por exemplo, onde se colocam
travões aos mecanismos predadores do «mercado».

O despertar dos povos, nas urnas ou nas ruas, vem pôr em causa os
pilares em que assenta a democracia corrompida que serve de cobertura à
ditadura do «mercado». Quer isto dizer que os povos não só querem ter
voz como começam a exigir que esta seja ouvida e respeitada.

O que nos dizem estes levantamentos? Que ficar à espera de um
neoliberalismo democrático é o mesmo que aceitar passivamente a canga da
submissão perante a selvajaria capitalista. Realidade que é válida tanto
no exterior como no interior da União Europeia.

In
ABRIL ABRIL
https://www.abrilabril.pt/internacional/o-despertar-dos-povos
1/11/2019

sábado, 2 de novembro de 2019

Agonia e morte do neoliberalismo na América Latina



    Atílio A. Boron

As extraordinárias movimentações de massas verificadas no Equador e
agora no Chile inserem-se numa generalizada rejeição popular pela
barbárie neoliberal, expressão extrema da barbárie capitalista. Barbárie
que impregna todas as dimensões da vida social, económica e política de
forma de tal modo intolerável que povos inteiros se levantam contra ela.
Como este texto acertadamente conclui, o colapso de neoliberalismo não
significará o fim do capitalismo. Mas o heroico levantamento popular
chileno, no país-modelo da “Escola de Chicago”, mostra como a História
está muito longe de ter chegado ao fim.

Nas últimas semanas o neoliberalismo sofreu uma série de derrotas que
aceleraram a sua agonia e, entre convulsões terríveis e violentas,
desencadearam o seu falecimento. Depois de quase meio século de
pilhagens, tropelias e crimes de todos os tipos contra a sociedade e o
meio ambiente, a fórmula de governança tão entusiasticamente promovida
pelos governos dos países do capitalismo avançado, instituições como o
FMI e o Banco Mundial, e estimada pelos Intelectuais bem-pensantes ​​e
políticos do establishment jaz em ruínas. O navio almirante dessa
flotilha de saqueadores em série, o Chile de Sebastián Piñera,
afundou-se sob o formidável impulso de um protesto popular sem
precedentes, indignado e enfurecido por décadas de enganos, truques e
manipulações mediáticas. Tinham prometido às massas chilenas o paraíso
do consumismo capitalista e, durante muito tempo, acreditaram nessas
mentiras. Quando despertaram do seu sonambulismo político deram-se conta
que a pandilha que as governou sob uma capa fingidamente democrática os
havia despojado de tudo: arrebataram-lhes a saúde e a educação pública,
eram vigarizados sem escrúpulos pelos gestores dos fundos de pensões,
encontraram-se endividados até ao pescoço e incapazes de pagar as suas
dívidas enquanto contemplavam estupefactos como o 1% mais opulento do
país se apropriava de 26,5% da renda nacional e aos 50% mais pobres
apenas cabia 2,1%. Todo esse despojo se produziu no meio de um
ensurdecedor concerto mediático que embotava as consciências, alimentava
com créditos indiscriminados esta bonança artificial e fez acreditar a
uns e outros que o capitalismo cumpria com as suas promessas e que todos
poderiam fazer o que quisessem com as suas vidas, sem que o Estado
interferisse e aproveitando as imensas oportunidades que o livre
comércio oferecia. Mas nenhuma utopia, mesmo a do mercado total, está a
salvo da acção dos seus vilões. E estes apareceram de súbito
personificados nas figuras de alguns adolescentes do ensino médio que,
com exemplar audácia e filial solidariedade, se rebelaram contra o
aumento das tarifas do metro que prejudicavam não a eles mas a seus
pais. A sua ousadia quebrou o feitiço e aqueles que tinham caído na
armadilha de renunciar à sua cidadania política em troca do consumismo
deram-se conta de que haviam sido burlados e vigarizados e saíram às
ruas para expressar o seu descontentamento e a sua cólera.
Converteram-se, da noite para o dia, em “vândalos”, “terroristas” ou num
revoltoso bando de “estrangeiros” - para usar a eloquente descrição da
mulher do presidente Piñera - que identificaram os limites
inultrapassáveis ​​do consumismo e do endividamento infinito e o
carácter de farsa do minueto democrático que ocultava, sob prolixas
roupagens e vazias formalidades, a implacável tirania do capital.
Comprovaram nesse violento despertar que uma das sociedades outrora mais
igualitárias da América Latina compartilhava agora, segundo o Banco
Mundial, a dúbia honra de ser juntamente com o Ruanda um dos oito países
mais desiguais do planeta. Como um relâmpago, perceberam que haviam sido
condenados a sobreviver em débito vitalício, vítimas de uma plutocracia
- insaciável, intolerante e violenta - e da corrupta partidocracia que
era cúmplice daquela e gestora do saque contra o seu próprio povo e os
recursos naturais do país. Por isso que tomaram as ruas e saíram em
imponentes manifestações a lutar contra os seus opressores e
exploradores, e fizeram-no - e até hoje o fazem - com uma valentia e
heroísmo poucas vezes vistos. São já pelo menos vinte os mortos pela
repressão das forças de segurança e os desaparecidos registados somam
mais de cem, além das centenas de feridos e torturados e os milhares de
detidos que marcam, com lúgubres tonalidades, os estertores finais do
tão admirado modelo.
Depois dessa espontânea insurreição popular nada voltará a ser igual,
nada reviverá o neoliberalismo, ninguém o indicará como o caminho real
para a democracia, a liberdade e a justiça social. E isso embora Piñera
continue em La Moneda e prossiga a sua brutal repressão. Apesar da qual
nem a OEA, nem os governos “democráticos” do continente - presididos por
sombrios personagens de largo currículo - nem os hipócritas guardiões
dos valores republicanos terão o átomo de decência para caracterizar o
seu governo como uma ditadura, qualificação que apenas Nicolas Maduro
merece, embora nunca tenha havido no seu governo uma repressão tão
bestial e sanguinária como a que foi documentada numa infinidade de
vídeos gravados no Chile e que se tornaram virais online. Para Donald
Trump, Piñera é um amigo, vassalo e sicário político da Casa Branca,
imprescindível para atacar a Venezuela Bolivariana e essas são razões
mais do que suficientes para o defender e proteger a qualquer preço.
Obedientes, as ONG’s do império e suas sucursais na Europa e na América
Latina - inverosímeis ​​defensoras dos direitos humanos, da democracia,
da sociedade civil e do meio ambiente - manterão um silêncio cúmplice
ante os crimes cometidos pelo ocupante de La Moneda. Alguns expressarão
outras opiniões, mas não aquelas que são os tentáculos ocultos do
imperialismo. Imperturbáveis, os publicistas do sistema continuarão a
apontar Nicolás Maduro como o arquétipo da ditadura e o chileno como a
própria personificação da democracia. Mas tudo será inútil, e o que
morreu - a receita neoliberal - morto está.
Obviamente, a história não começa nem termina no Chile. Pouco antes do
eclodir do levantamento social ainda em curso, o Equador do traidor e o
corrupto Presidente Moreno fora convulsionado por imensos protestos
populares. O detonador, a faísca que incendiou a pradaria, foi a remoção
dos subsídios aos combustíveis. Mas o factor determinante foi a
implementação do “paquetazo” ordenado pelo FMI ao servil agente
instalado no Palácio de Carondelet. A reacção popular, iniciada primeiro
entre transportadores e sectores populares urbanos e depois potenciada
pela multitudinária irrupção das populações nativas nas principais
cidades do país estendeu pouco mais de uma semana e obrigou o cobarde
presidente a transferir a sede do Executivo para Guayaquil . Pouco
depois teve que suspender a cruel repressão com que havia respondido ao
desafio e abrir uma fraudulenta negociação com os autoproclamados
líderes da revolta indígena. Astuto, acordou uma trégua com a
desprestigiada e também ingênua liderança do CONAIE e revogou o decreto
sobre o subsídio aos combustíveis, prometendo rever o que fora feito.
Nada disso aconteceu, mas conseguiu desarticular o protesto, por agora.
Como é adequado a um traidor em série como Moreno o chefe dos
negociadores indígenas, Jaime Vargas, está a ser processado
judicialmente pelo governo. A ” paquetazo ” será posto em prática porque
o mandato do FMI é inapelável e Moreno é um peão mais do que obediente:
é obsequioso. Sabe-se que esses programas do Fundo apenas são viáveis ​​
se forem geridos com uma mistura - variável conforme os casos - de
enganos e repressão. Mas agora a passividade cidadã tem pavio curto e em
poucos meses mais, assim que se façam sentir os rigores do ajustamento
selvagem, não seria estranho que estale uma nova rebelião plebeia que
esperemos não caia nas armadilhas de Moreno e seus compinchas e culmine
com sucesso com a destituição do presidente e a refundação da democracia
no Equador. O presidente está manietado: se aplica o programa do FMI, a
massa popular provavelmente acaba com seu governo; se não o faz, o
império pode decidir que chegou a hora de dispensar os seus serviços
como inúteis. E como a Casa Branca “sabe demais” das trapalhadas e dos
negócios sujos de Moreno, não terá outro remédio que não seja aceitar o
ukase imperial e acolher-se a um “desemprego involuntário”, como dizia
Keynes. Mas apesar da sua inutilidade e dos crimes perpetrados durante a
repressão aos protestos populares, Washington encarregar-se-á de o
esconder e proteger. Como fez com outro assassino, Gonzalo Sánchez de
Lozada e com tantos outros. Dentro de pouco tempo saberemos qual será o
desenlace.
O neoliberalismo sofreu outra derrota na Bolívia, quando o presidente
Evo Morales foi reeleito com 47,08% dos votos contra 36,51% obtidos por
Carlos Mesa, candidato de Comunidad Ciudadana. Apesar de o presidente
ter conseguido mais 10,57% dos votos do que o seu oponente (mais do que
os 10% que a legislação boliviana define para declarar o vencedor na
primeira volta) e de não ter havido qualquer denúncia concreta de
fraude, apenas gritos e uivos da oposição, esta exige que seja convocada
a votação. Os desde os EUA manipulam os inimigos de Evo na Bolívia
contam com a previsível conivência da OEA e de alguns desastrados
governos da região, como os da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia. Dizem
que as irregularidades havidas na transmissão e difusão do escrutínio
(explicadas de forma convincente pelas autoridades bolivianas),
juntamente com a exiguidade da diferença obtida por Evo (mas acima de
10%, evidentemente) obriga a proceder dessa maneira. Se fosse esse o
caso estas virtuosas vestais da democracia deveriam ordenar sem demora a
anulação das eleições presidenciais de 1960 nos Estados Unidos, quando
John F. Kennedy obteve 0,17% de vantagem sobre Richard Nixon (49,72
versus 49,55%) e foi investido como presidente sem enfrentar qualquer
reclamação. Mesa, que perdeu por uma diferença de 10,57%, faria bem em
calar-se. Não o fará, porque num prodígio de adivinhação (que,
obviamente, lhe saiu mal), tinha antecipado a sua vitória e que não
reconheceria outro resultado que não fosse esse, como corresponde a um
democrata “made in USA ” Se ganho, a eleição foi limpa; Se perco, houve
fraude. Nada de novo: a direita nunca acreditou na democracia, muito
menos nestas latitudes, e está de forma irresponsável a apelar à
desobediência civil e a promover desmandos para “corrigir” o resultado
que lhe foi negado nas urnas. Evo, em um gesto que o enaltece, desafiou
a OEA a realizar uma peritagem integral do processo e que, se encontrar
evidência de fraude, convocaria de imediato a votação. Será inútil, mas
o capataz Almagro enviará uma missão à Bolívia para agitar o vespeiro e
entorpecer o trabalho do governo. Desgraçadamente, haverá pessoas que
morrerão ou sofrerão ferimentos graves por causa dos distúrbios que essa
missão causará. Claro está que os movimentos sociais da Bolívia não
permitirão que uma derrota de mais de dez pontos obrigue a uma votação
ou promova como vencedor o perdedor. Além disso, não é um facto menor
que os governos do México e o novo da Argentina tenham reconhecido o
triunfo de Evo, tal como os de Cuba e da República Bolivariana da
Venezuela. Em suma: a restauração do neoliberalismo na Bolívia parece
ter ficado novamente frustrada, por mais esforços que o império e seus
tenentes locais façam.
Em linha com esse quadro regional marcado por um generalizado clima
ideológico de rejeição do neoliberalismo imperante, na Argentina a
experiência neoliberal de Mauricio Macri foi repudiada nas urnas.
Amplamente porque o que aconteceu em 27 de Outubro não foi a primeira
volta de uma eleição presidencial. Esta aconteceu, de facto, no dia 11
de Agosto, nas PASO (eleições primárias, abertas, simultâneas e
obrigatórias) e ali as diferentes alianças políticas mediram as suas
forças. Como naquela ocasião ficou demonstrado que apenas Mauricio Macri
tinha votos para desfiar o poder eleitoral da Frente de Todos, o
presidente atraiu as preferências dos eleitores de direita que nas PASO
tinham optado por outras candidaturas (Juan José Gómez Centurión ou José
Luis Espert e alguns de Roberto Lavagna) e provavelmente com um segmento
majoritário do maior afluxo cidadão que compareceu às eleições neste
domingo. De qualquer forma ficam algumas incógnitas de difícil resolução
e que despertam cada vez mais fundadas suspeitas sobre o genuíno
veredicto das urnas. Por exemplo, é difícil entender o facto de a
fórmula de Fernández-Fernández apenas ter aumentado o seu caudal
eleitoral em cerca de 250.000 votos, diminuindo sua gravitação
percentual em relação às PASO em quase um e meio por cento. Se o seu
rival o tivesse aumentado, mas que o tivesse feito em 2.350.000 votos e
quase sete e meio por cento causa pelo menos alguma curiosidade. É óbvio
que o macrismo beneficiou com a fuga de votos para a sua candidatura,
mas o seu crescimento surge tão excessivo quanto o muito pouco que a
Frente de Todos experimentou num contexto de aprofundamento da crise
económica como a vivida pela Argentina nos últimos dois meses. Outro
mistério da aritmética eleitoral é o paradeiro dos 900.000 votos obtidos
na PASO pelas duas candidaturas presidenciais do trotskismo e que se
reduziram a pouco mais de 550.000 no último domingo. O que aconteceu com
esses 350.000 votos desaparecidos: evaporaram-se, votaram em Macri? São
demasiadas interrogações que não poderemos resolver aqui, mas que
alimentam a suspeita de que pode ter havido uma fraude informática muito
sofisticada que seguramente será descoberta assim que esteja concluído o
escrutínio final da eleição. De qualquer forma, para além destes
insólitos, os quase oito pontos percentuais que separam Fernández de
Macri (que podem aumentar quando forem conhecidos os dados definitivos)
são, para uma votação, uma diferença muito significativa. Recorde-se que
na segunda volta das eleições presidenciais de 2015 Macri teve sobre
Daniel Scioli dois pontos e meio de vantagem, 2,68% segundo o escrutínio
definitivo. Certo é que a árdua tarefa de reconstruir a economia e curar
as profundas feridas que o macrismo deixou no tecido social apenas será
possível abandonando as receitas do neoliberalismo. Este causou na
Argentina a mais grave crise da sua história, pior ainda do que o
traumático colapso da Conversibilidade em 2001. Será como subir uma
ladeira íngreme, porque Macri deixa o país em profunda recessão,
afligido pela inflação e um desemprego de dois dígitos, com quase
quarenta por cento das pessoas em situação de pobreza e uma dívida
descomunal e de curto prazo, nada menos do que com o FMI. Mas os
levantamento sociais do Chile e do Equador são um eloquente dissuasor
para desencorajar quem queira aconselhar o novo presidente que o que há
que fazer é imitar as realizações do neoliberalismo tal como foram
conhecidas no Chile.
Não poderia concluir esta visão panorâmica da agonia do neoliberalismo
na América Latina sem mencionar o sério revés sofrido no domingo passado
por essa corrente ideológica nas eleições regionais da Colômbia. Nesse
país, o autoproclamado Centro Democrático (que não é um nem o outro, mas
uma direita radical e visceralmente antidemocrática), partido ao qual
pertencem Álvaro Uribe e o actual presidente Iván Duque, sofreu uma
forte derrota na disputa travada nas duas principais cidades do país,
Bogotá e Medellín. Em ambas se impôs a oposição de centro-esquerda e o
uribismo apenas prevaleceu em duas das 32 províncias da Colômbia. Embora
seja prematuro antecipar qualquer previsão sobre o que poderia acontecer
nas eleições presidenciais de 2022, o certo é que se algo não era
esperado na Colômbia, era um tropeção tão contundente da direita
ultra-neoliberal naquelas cidades. Um sinal muito positivo, sem dúvida.
Tampouco poderia encerrar essas linhas sem compartilhar neste caso a
preocupação gerada pelo processo eleitoral no Uruguai, em cuja primeira
volta o candidato da Frente Amplio e ex-prefeito de Montevidéu, Daniel
Martínez, obteve 39,2% dos votos contra 28,6% de Luis Lacalle Pou, do
conservador Partido Nacional. Isto faz prever uma disputa renhida na
votação que ocorrerá em 24 de Novembro, porque as restantes forças
políticas da direita prometeram o seu apoio a Lacalle Pou, incluindo a
lamentável novidade da política uruguaia: o “bolsonarismo” encarnado no
partido Cabildo Abierto liderado pelo ex-comandante do Exército Nacional
Guido Manini Ríos, fervoroso opositor de qualquer pretensão de revisão
de casos de violação dos direitos humanos perpetrados pela ditadura no
Uruguai e duro crítico de toda a legislação progressista aprovada pela
Frente Ampla ao longo de quinze anos de governo. Nem tudo está perdido,
mas faltam apenas quatro semanas para persuadir o eleitorado uruguaio de
que eleger um governo neoliberal num momento em que essa corrente se
desmorona em meio de tremendas convulsões sociais - no Chile, no
Equador, no Haiti e antes no México, com o triunfo de López Obrador -
condenaria aquele país a enveredar por um caminho que terminou num
rotundo fracasso em todos os países da região. Seria ingénuo pensar que
o que produziu um holocausto social sem precedentes no México, depois de
36 anos (1982-2018) de co-governo do FMI-PRI-PAN; ou a gravíssima crise
que assola a Argentina e o descalabro que devora o Chile e o Equador
podem dar origem a um resultado virtuoso na nação do Rio de La Plata.
Muito terá que trabalhar a Frente Ampla para que seus compatriotas
observem com cuidado o cenário regional e extraiam as suas próprias
consequências.
Pomos ponto final nesta visão panorâmica das vicissitudes da agonia e
morte do neoliberalismo na América Latina. O que está morto morto está,
mas não é fácil discernir o que brotará das suas cinzas. Será ditado,
como todos os processos sociais, pelas vicissitudes da luta de classes,
pela clarividência das forças dirigentes do processo de reconstrução
económica e social; pela sua audácia em enfrentar todo o tipo de
contingências e preservar a preciosa unidade das forças políticas e
sociais democráticas e de esquerda; pela sua valentia para desbaratar os
planos e as iniciativas dos figurões do passado, dos guardiões da velha
ordem; pela eficácia com que se organize e consciencialize o heteróclito
e tumultuoso campo popular para enfrentar seus inimigos de classe, o
império e seus aliados, o capitalismo como sistema, que conta com
enormes recursos à sua disposição para preservar os seus privilégios e
prosseguir as suas exacções Será uma tarefa hercúlea, mas não
impossível. Avizinham-se “tempos interessantes” e grávidos de grande
potencial de mudança. A incerteza domina a cena, como invariavelmente
acontece em todos os momentos decisivos da história. Mas onde há uma
certeza absoluta é que já mais ninguém na América Latina pode enganar os
nossos povos, ou pretender ganhar eleições dizendo que “há que imitar o
modelo chileno” ou seguir os passos do “melhor aluno” do Consenso de
Washington. Isto foi o que durante décadas eles recomendaram - em vão,
visto o veredicto final da história - o anteriormente loquaz e agora
silencioso Mario Vargas Llosa juntamente com a plêiade de publicistas do
neoliberalismo que impunham com prepotência as suas falácias e sofismas
graças à sua inserção privilegiada nos oligopólios mediáticos e
dispositivos de propaganda da direita. Mas isso já é passado. E não
cometeremos a imbecilidade de fingir fazer gala de uma inverosímil
“neutralidade” ou boas maneiras na hora de descartar essa corrente
ideológica nas suas exéquias, desejando-lhe que “descanse em paz”, como
se faz com aqueles que deixaram uma marca virtuosa na sua passagem por
este mundo. Em vez disso, o que diremos é: “vai para o inferno, maldita,
pagar pelos crimes perpetrados por ti e pelos teus mentores!”

Fonte:
http://www.resumenlatinoamericano.org/2019/10/30/pensamiento-critico-agonia-y-muerte-del-neoliberalismo-en-america-latina/

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/agonia-e-morte-do-neoliberalismo-na/
2/11/2019