sexta-feira, 28 de junho de 2013

Trabalhadores e políticos do ABC Paulista

Candido G. Vieitez
O ABC paulista é, tradicionalmente, uma área industrial com importante condensação de operários e trabalhadores em geral. Quando o assunto é o mundo do trabalho, o nome de Lula é prontamente evocado.
A notoriedade de Lula está justificada. Ele não foi simplesmente Presidente da República, mas o primeiro Presidente da República de origem operária, o ex-metalúrgico do ABC paulista que se converteu em eminente personalidade nacional e internacional. Esta é uma historieta que se tornou trivial. Entretanto, o nome de Lula metalúrgico começou a circular nacionalmente muito antes que ele tivesse ocupado qualquer cargo público.
Esse fato começou a ocorrer lá pelo tempo em que uma massa de trabalhadores, desafiando a ditadura, se reunia no Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, para, juntamente com lideranças e dirigentes, dentre os quais se destacava Lula, deliberar a respeito de sua luta por melhores condições de trabalho e, também, em prol das liberdades democráticas.
As concentrações de Vila Euclides eram inseparáveis das greves que eclodiram na região. Estas foram as primeiras greves que ocorreram no país, após tantos anos de repressão da ditadura. Devido a isso, o redivivo movimento operário e popular (MOP) do ABC, no qual se ressaltava Lula como liderança mais carismática, virou uma referência para os demais trabalhadores organizados do país. Contudo, uma coisa é um líder ser conhecido no país nos meios operários e outra, muito distinta, é ser reconhecido por amplos contingentes da população em geral, que foi o que ocorreu com Lula (1978-1980).
Como foi possível esse acontecimento insólito? A elevação de um dirigente sindical local à condição de figura nacional foi em boa parte obra da mídia (jornais, revistas, rádios e televisões). Os motivos foram basicamente de duas ordens. A primeira é essencialmente política. A segunda é política, mercantil e até certo ponto técnica.
Quando o MOP explodiu, quadros das classes dominantes que incluíam setores estratégicos tanto do regime militar quanto da mídia perceberam que os dias do regime militar estavam contados e era necessário preparar a transição ao Estado de Direito. Eles estavam preparados para conviver com o MOP. O que não podiam admitir é que o MOP, tal qual ocorrera anteriormente a 1964, viesse a ter nos comunistas uma referência importante. Portanto, era vital agir no sentido de que o novo MOP que se estruturava decorresse livre da influência comunista. Foi nessa encruzilhada que esses quadros toparam com Lula e seu grupo. Eles execravam o Lula sindicalista e grevista e tudo o mais que a isso dizia respeito. No entanto, Lula não era comunista, bem como a maioria de seus companheiros, e o pensamento político que esposavam, se não era o desejável, era pelo menos suportável. A tarefa, por conseguinte, consistia em possibilitar a reorganização do MOP, já que esta se afigurava inevitável, sob a égide de correntes ideológicas em desafeto com a tradição comunista.
Nesse empreendimento entrou a mídia, divulgando o novo modo de fazer sindicalismo e a figura de Lula. A mídia realizou essa tarefa em parte por seu próprio interesse de classe e, em parte, por seu modus operandi enquanto negócio. Na mídia domina o pensamento liberal. E, para o pensamento liberal, o indivíduo é o centro do universo social, a origem e finalidade de todas as coisas. Devido a esse individualismo atávico (BOUVEAIS, 2008), a mídia trata de subjetivizar quaisquer que sejam os fatos que examina e apresenta ao público. É por essa razão que ela está sempre em busca de personagens arquetípicas: heróis, anti-heróis, don juans, patetas, santos, crápulas e demônios. Se não as encontra na realidade, ela as inventa. E se as personagens que encontra na realidade não são satisfatórias para seus propósitos, ela as enfeita. A alavancagem de Lula, de sua condição de liderança regional à de figura nacional, atendeu, pois, tanto aos interesses políticos da mídia quanto à sua lógica operatória de negócio da comunicação.
O MOP do ABC paulista foi subjetivizado ou encarnado em algumas personalidades e especialmente em uma. Em confronto com a ditadura, mediante a realização de eventos explosivos, como greves e concentrações, Lula e companheiros possibilitaram à mídia vender notícias durante anos. Ao mesmo tempo, a visibilidade pública necessária ao propósito político não manifesto também se realizou. Entretanto, a exposição midiática de Lula exprime as contradições contidas nesse ato. Lula e os trabalhadores eram importantes, porque foram capazes de desafiar a ditadura e, antes de mais nada, porque constituíam notícia rentável. Todavia, no retrato servido pela mídia ao grande público, Lula sempre esteve muito mais para anti-herói do que para herói.
Nesse processo de produção midiática, os termos da vida real se inverteram. O que ocorreu no ABC paulista aparece dominantemente como atividade protagonista de um punhado de lideranças e dirigentes. A classe trabalhadora ficou no fundo da cena, como coadjuvante um tanto obscuro. E, no entanto, Lula e demais lideranças nem ao menos teriam existido, sindical e politicamente, não fosse a capacidade de ação e atividade organizadora dessa classe, pois, diversamente do que sugere a socialização liberal, não são os líderes que criam o movimento social, mas o inverso.
Nas linhas seguintes, oferecemos um breve resumo assinalando a atividade das organizações coletivas de massa dos trabalhadores do ABC, a qual, longe de ter emergido em fins dos anos 1970, remonta à fundação da República.
Anarquistas, comunistas, trabalhistas e católicos
Na Primeira República, a classe operária industrial no país era diminuta. Não obstante, assinalando uma tendência, algumas indústrias iam assentando-se na região, notadamente em Santo André.
Por essa época e até o Estado novo, a corrente ideológica com mais ascendência entre os trabalhadores da indústria era a anarquista. Os anarquistas eram principalmente imigrantes, espanhóis e italianos, sobretudo estes últimos. Eles incentivaram a criação de associações de trabalhadores, fossem de ajuda mútua ou de luta. A mais importante foi a União Operária. Esta, em 1919 coordenou uma greve na fábrica Ipiranguinha, em meio à qual foi morto pela polícia o operário Constantino Castelani (DIÁRIO DO GRANDE ABC, 1979).
Em 1917, ocorreu a Revolução Soviética na Rússia, o que induziu muitos trabalhadores a criarem partidos comunistas mundo afora. Em Santo André, o PCB foi fundado em 1922, com a participação significativa de muitos anarquistas que se encantaram com a revolução.
Em 1930, surgiu aquele que foi – e em certo sentido ainda é hoje – o sindicato de referência para os trabalhadores no ABC paulista: o dos metalúrgicos. Nessa época e até 1958, esse sindicato com sede em Santo André abrangia todo o ABC paulista. Nele militavam várias tendências, contudo, os ativistas ligados ao PC iam ganhando ascendência, a começar com aquele que foi seu primeiro presidente e um dos mais respeitados dirigentes sindicais do ABC até 1964: Marcos Andreotti.
Durante o Estado Novo, o MOP retraiu-se, dado o caráter autoritário do regime político. O interregno subsequente, porém, que se estendeu do fim da 2ª guerra ao golpe de Estado de 1964, foi uma época de ascensão do MOP, que transcorreu sob o signo da Revolução Brasileira (VIEITEZ, 1999). Esse período correspondeu à primeira metade da era dourada sistêmica do capitalismo. A acumulação de capital disparou e o país seguiu num enérgico movimento de industrialização. Todavia, os problemas engendrados pela rápida acumulação, somados às expectativas de melhorias sociais dos trabalhadores, alimentaram a conflituosidade social.
Em 1947, os comunistas elegeram em Santo André o prefeito e 13 vereadores. Esse episódio insólito foi neutralizado pelo governo Dutra, com a cassação dos eleitos (MEDICI, 1999). No entanto, ele foi indicativo da atmosfera que caracterizaria os anos subsequentes. Nesse tempo, os ativistas anarquistas tinham decrescido, substituídos principalmente pelos trabalhistas (PTB) e pelos comunistas. Mas, no fim dos anos 1950, entraram em cena também os católicos de uma corrente emergente que se aproximava do MOP, sobretudo pela ação da Juventude Operária Católica. Essa foi também a época de D. Jorge Marcos, um bispo pioneiro no apoio ao MOP, o que lhe valeu o epíteto de bispo vermelho, atribuído pelo jornal O Estado de S. Paulo.
Para o MOP, esse foi um período rico em mobilizações e organizações. Os sindicatos fortaleceram-se e disseminaram-se pelo grande ABC. Funcionavam muitas sociedades amigos de bairro (SABs) e formaram-se algumas cooperativas. O Conselho Sindical da Borda do Campo, criado originalmente como uma instância sindical, atuava como uma espécie de conselho urbano geopolítico regional. O Centro Popular de Cultura (CPC) possibilitava aos trabalhadores contatos com o teatro e o cinema de qualidade, tornando-se uma referência para os estudantes e parte da intelectualidade de Santo André e da região. Essa enumeração é apenas exemplificativa. E, de qualquer modo, a ação do regime militar liquidou ou manietou a atividade do MOP até praticamente a eclosão da greve de 1978.
Compressão e retomada do movimento operário e popular (1978-1985)
A ditadura perseguiu, prendeu ou matou os ativistas do movimento popular, com ênfase nos comunistas. As organizações do movimento foram desmanteladas. Uma parte, como os sindicatos, se manteve, porém, passou a atuar sob o todo tipo de restrições. A participação em greves ou manifestações públicas era punida com repressão ostensiva, prisão ou pior.
Não obstante esses óbices, o MOP não desapareceu. Centenas de ativistas remanescentes passaram a atuar de modo clandestino ou semiclandestino nas fábricas e bairros, formando pequenos grupos ou outras modalidades de organização. Eles também estiveram presentes nos sindicatos de modo contido, atuando em meio aos interventores ou aos novos dirigentes moderados que emergiram no clima da ditadura. Esses militantes eram os portadores da tradição do MOP, parte da qual foi passando para os novos militantes que se aproximavam do Movimento.
Até o golpe de Estado, a indústria no ABC estava ainda dominada por pequenas e médias empresas, nas quais os oficiais industriais tinham bastante ascendência sobre os trabalhadores. Nos anos 1970, contudo, os tempos eram já outros. Instalara-se no ABC uma grande indústria fordista, notadamente em SBC, que implicou uma enorme massa fabril e urbana de novos trabalhadores adventícios à classe. Essa foi a base social da renovação de suas organizações. Nas fábricas, incidiram os comitês de fábrica clandestinos. Nos sindicatos, começaram a medrar os germes do posteriormente denominado novo sindicalismo. Nos bairros, destacaram-se os católicos que impulsionaram as comunidades eclesiais de base (CEBs).
Grosso modo, esse foi o humus sobre o qual foi se robustecendo o MOP. Até que, quando a situação econômica e social se tornou menos adversa ao movimento, este explodiu na greve Braços cruzados, máquinas paradas, na empresa Scania, em São Bernardo do Campo. Logo vieram outras movimentações no ABC e, seguindo seu rastro, em vários outros setores e lugares do país, formando uma maré montante que acabou culminando no fim da ditadura e na volta ao Estado de Direito.
Conclusão
A sociedade individualista na qual vivemos encontra-se edificada sobre um sistema de cooperação social que é o mais desenvolvido e extenso da história humana. Esse sistema é composto pelos trabalhadores que, em cada uma das centenas de milhares de unidades de trabalho, constituem um sistema de cooperação, um trabalhador coletivo. Paradoxalmente, porém, a cooperação não pertence ao trabalhador coletivo, porque se encontra vendida ou alienada para o capital, mediante o instituto social do assalariamento.
Devido a essa peculiaridade, os trabalhadores só podem se apropriar de suas próprias atividades cooperativas e ainda assim, muito variavelmente, em instâncias que estão fora do processo de trabalho. Esta é a razão pela qual, a contar da Revolução Industrial, os trabalhadores empenharam-se em criar organizações coletivas: mutualidades, cooperativas, centros culturais, sindicatos ou partidos políticos.
Os trabalhadores do ABC são conhecidos por produzirem carros e muitos outros bens industriais. Entretanto, existe pouca consciência social de que os trabalhadores do ABC, além desses bens, produzem artefatos de uma natureza bem distinta, cujo valor é cultural, social ou político. No plano individual, em cada época histórica, produziram ativistas, dirigentes e lideranças: Castelani, Andreotti, Lula, Frei Chico. Concomitantemente, produziram organizações, que se renovam no tempo ou que se apresentam inéditas. Uma dessas, que se notabilizou na nação, é o Partido dos Trabalhadores (PT). O que os trabalhadores pretendiam com o PT? Originariamente, pretendiam basicamente três coisas: a) contar com uma organização própria, na qual a sua necessária atividade cooperativa fosse controlada por eles mesmos; b) utilizar essa organização para interferir a seu favor, nas relações de compra e venda da cooperação nas unidades de trabalho; c) dar início a um processo de articulação social, visando à reapropriação, pelo menos de modo significativo, do sistema de cooperação nas unidades de trabalho. O empreendimento acabou não redundando, com o PT integrando-se à ordem liberal em pouco tempo. No entanto, se há algo que podemos extrair da história dos trabalhadores, é que estes não desanimam com as derrotas, sejam estas ocasionadas por forças outras, sejam pelos próprios desacertos.
Referências
BEAUVOIS, J-L. Tratado de la servidumbre liberal – análisis de la sumisión. Madrid: La Oveja Negra, 2008.
DIÁRIO DO GRANDE ABC, Santo André, 30/09/1979.
MEDICI, A. 9 de Novembro de 1947: a vitória dos candidatos de Prestes. Santo André, Fundo de Cultura do Município de Santo André, 1999.
VIEITEZ, C.G. Reforma nacional-democrática e contra-reforma: a política do PCB no coração do ABC paulista/1956/1964. Santo André: Fundo de Cultura do Município de Santo André, 1999.

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