segunda-feira, 26 de abril de 2021

Democratopatia osteomuscular

 



// António Santos


Os trabalhadores da Amazon em Bessemer, Alabama, queriam formar um
sindicato. O objectivo era modesto: uma estrutura que os defendesse das
desumanas cargas e ritmos de trabalho impostos pela empresa cujo
proprietário é o homem mais rico do mundo. Foram derrotados por uma
campanha de chantagem e de pressão autenticamente terrorista. Na maior
potência capitalista, que se arroga o direito de dar lições de
democracia ao mundo, qualquer tentativa de organização dos trabalhadores
defronta tais dificuldades e hostilidade que é praticamente inviável.

1798 votos contra 738. Houve eleições, as pessoas lá escolheram, agora
aguentem, eis a democracia: Jeff Bezos, dono da Amazon e o homem mais
rico do mundo, derrotou os trabalhadores dos armazéns de Bessemer, no
Alabama, que queriam formar um sindicato. Mas, se é verdade que quando
se luta só se ganha às vezes e que quando não se luta se perde sempre,
também é verdade que há derrotas em que se aprende mais do que com
muitas vitórias.

A derrota dos trabalhadores da Amazon é todo um tratado sobre a natureza
da democracia no capitalismo e da sua bizarra necessidade de recorrer
aos meios mais sofisticados para manter intocados os problemas mais simples.

Uma das principais razões que levou os trabalhadores do armazém de
Bessemer a querer sindicalizar-se foi a altíssima taxa de acidentes
laborais da Amazon: o dobro da média nacional. Apesar da automação dos
armazéns, estes operários são forçados a repetir os mesmos movimentos a
ritmos cada vez mais rápidos. Afinal trata-se, recorde-se, da empresa
que força os trabalhadores a urinar em garrafas para não perderem tempo
a ir à casa de banho.

O problema é que ao contrário da sede da acumulação do capitalismo, os
músculos e os ossos humanos têm um limite físico que, se ultrapassado,
resulta em acidentes de trabalho e em doenças osteomusculares que
afectam 46% dos trabalhadores dos armazéns da Amazon.

A solução de Jeff Bezos foi a introdução de um algoritmo que monitoriza,
em tempo real, o esforço músculo-esquelético de cada trabalhador em
função da sua actividade física e do seu ritmo de trabalho. O novo
algoritmo permite aumentar ainda mais os ritmos de trabalho porque prevê
o momento em que a lesão osteomuscular está quase a acontecer e faz
circular o trabalhador para outra tarefa em que outros tendões e outros
ossos possam ser sobrecarregados até outro ponto de ruptura.

O sindicato propunha simplesmente que os trabalhadores trabalhassem mais
devagar, menos horas e com mais pausas, mas, como já dissemos, foi
derrotado. O que não dissemos é que, antes, a Amazon ameaçou despedir 75
por cento dos trabalhadores caso o sindicato tivesse mais votos, nem que
havia uma câmara a filmar as urnas de voto, nem que foram contratados
analistas de inteligência para identificar os agitadores sindicais, nem
que havia um programa de espionagem online para infiltrar os grupos
privados dos trabalhadores no Facebook e no Whatsapp, nem que no
exterior da tenda onde decorreu a votação podia ler-se propaganda contra
o sindicato.

É que democracia não é só haver eleições. É, principalmente, as
circunstâncias em que elas acontecem e que condicionam as opções de cada
um. Por outras palavras, quem faz um algoritmo para propositadamente
acelerar e micro-gerir a decadência osteomuscular só pode votar numa
«democracia» igualmente decadente.

/Fonte:
https://www.avante.pt/pt/2473/internacional/163883/Democratopatia-osteomuscular.htm/

In
RESISTIR.INFO
https://www.odiario.info/democratopatia-osteomuscular/
26/4/2021

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