quarta-feira, 1 de maio de 2024

Bruno Carvalho: «Há situações em que não podemos ser meros espectadores»

 
 



Por João Manso Pinheiro 1 de Maio de 2024

Em menos de um mês, /A Guerra a Leste: 8 Meses no Donbass/, do
jornalista Bruno Amaral de Carvalho, já está a preparar a terceira
edição. O /AbrilAbril/ conversou com o autor sobre a sua
experiência numa guerra fora dos holofotes.


A um mundo de distância (e, para nós, o Donbass está mesmo num outro
mundo), torna-se difícil acreditar que no meio daquela massa
anónima existam mesmo pessoas. Que por ali andem criaturas dotadas com
as suas próprias vontades, gostos, idiossincrasias engraçadas (para os
outros). Que sejam, no fundo, como nós.

No Donbass estão os outros. Não lhes sabemos os nomes, não lhes é
conhecida opinião ou vontade. Limitam-se a ser. Uns tantos mil que
sobrevivem numa pequena cidade devastada por prolongadas batalhas,
outros tantas centenas a combater em batalhões separatistas. Uma, duas,
três, dez crianças que morrem na leva diária de bombardeamentos contra
populações que vivem em terras com nomes que tão dificilmente sabemos
pronunciar.


Este apagamento, de entre os vários motivos que levaram as redacções
ocidentais a recusar-se a cobrir o que se passava no Donbass durante «o
maior acontecimento geopolítico do pós-guerra fria», será talvez o mais
flagrantemente antideontológico. Sem jornalismo e com a censura de
órgãos de comunicação social «do outro lado», aquela gente é reduzida a
coisa nenhuma. Não existem. Sem semblante de humanidade, é facil
odiarmos os nossos "inimigos" (ou pior: "os maus").

Longe da vista, longe do coração.

Em /A Guerra a Leste: 8 Meses no Donbass/, publicado pela Caminho, o
jornalista Bruno Carvalho furou a redoma que o Ocidente colocou sobre
toda esta região. O livro é tanto sobre o autor como sobre estes outros
apagados: tradutores, colegas de profissão, condutores e, acima de tudo,
os que vivem e lutam pelo Donbass.

Conhecemo-los agora pelo nome: Luís Castañeda, colombiano, que veio
estudar para Donetsk nos anos 80 e nunca mais voltou. Ekaterina, de
Odessa, que em 2014 presenciou o massacre na casa sindical da cidade.
Alexander, de 59 anos, antigo mineiro que sabe, hoje, distinguir
artilharia pelo som. A família de Dima, que com a mulher e os quatro
filhos viveu mais de um mês numa cave em Mariupol ou o soldado
benfiquista que, em terras lusas, trabalhou na construção civil e hoje
vigia estradas.

Não há «lugares errados para se fazer jornalismo».


      O Donbass está condenado a ser um «lugar errado»?

O que define um «lugar errado» não é a sua geografia. É o seu
enquadramento político no contexto mundial. Há não muito tempo, o chefe
da diplomacia europeia, Josep Borrell, dizia que a Europa é um jardim e,
em contraposição, o resto do mundo uma selva. Imediatamente, veio-me à
memória as imagens de seres humanos, africanos, expostos numa feira
belga em 1958 como se fossem animais num jardim zoológico.

    «Queria sublinhar a importância de se ouvir o que as populações têm
    a dizer. Não há nada mais democrático do que resolver este conflito
    auscultando-as e tomando decisões que respeitem essas escolhas.»

A herança colonial europeia está viva nas relações do Ocidente com os
países do chamado Sul Global e não espanta que haja uma aproximação cada
vez maior desses Estados com potências como a China, a Rússia, o Irão ou
o Brasil. Quando alguém não nos trata como iguais, procuramos quem nos
trate com dignidade e respeito. Nesse sentido, a imprensa hegemónica,
alinhada com o poder, define quais são os lugares e quem são os líderes
errados. Os talibans já foram os bons e agora são os maus. O Donbass
continuará a ser um lugar «errado» enquanto não estiver debaixo do
controlo de Kiev ou de qualquer outro aliado dos Estados Unidos e da
União Europeia.


      N'/A Guerra a Leste,/ vários cidadãos das repúblicas de Donetsk e
      Lugansk (assim como a refugiados de diversas partes da Ucrânia)
      assumem uma posição separatista e, noutros casos, favorável à
      intervenção russa. É uma oportunidade de ver uma perspectiva
      praticamente inédita no panorama mediático europeu. Também havia,
      no Donbass, quem defendesse o outro lado? Seja a posição ucraniana
      ou simplesmente contra a adesão à Federação Russa?

Evidentemente, há gente que defende a manutenção do Donbass na Ucrânia
ou a independência dessas repúblicas. Contudo, parecem-me opções
minoritárias. Há também quem recorde com nostalgia a União Soviética.
Antes da guerra, talvez houvesse espaço para um modelo confederal como
tem a Suíça ou para um modelo de regiões com uma autonomia alargada. Os
Acordos de Minsk previam essa possibilidade e eu acrescentava que podia
ter sido adoptada uma solução como aquela encontrada no âmbito do Acordo
de Dayton que criou duas entidades territoriais dentro da Bósnia, uma
para a comunidade bósnia e outra para a comunidade sérvia.

Julgo que as opções eram muitas se houvesse vontade política dos actores
em confronto, mas queria sublinhar a importância de se ouvir o que as
populações têm a dizer. Não há nada mais democrático do que resolver
este conflito auscultando-as e tomando decisões que respeitem essas
escolhas.


      O que aconteceu aos comunistas desta região? Apontas como, na
      última vez em que participaram em eleições (2013, foram banidos a
      seguir a 2014), tiveram cerca de 30% dos votos em algumas zonas do
      Donbass

Os comunistas eram uma força imprescindível desde o fim da União
Soviética no Leste da Ucrânia. Sobretudo porque transportavam consigo
essa herança histórica. Com a sublevação das regiões do Donbass em 2014,
os comunistas foram importantes no processo de criação das
autoproclamadas repúblicas.

Contudo, o contexto de guerra e a influência de Moscovo favoreceram a
existência de governos quase de unidade nacional com um papel diminuído
das forças comunistas. Mantêm a sua intervenção política num ambiente
muito complexo, onde a maioria dos homens se encontra a combater.
Lembro-me de estar em Donetsk no 1.º de Maio de 2022 e de haver uma
manifestação, organizada pelo Partido Comunista, composta por mulheres e
homens sem idade para participarem na guerra. Nas últimas eleições
presidenciais, como aconteceu em praticamente toda a Rússia, os
candidatos apoiados por Vladimir Putin arrasaram, incluindo no Donbass.
Há muitas explicações para este facto. Uma delas é que ninguém quer
mudar de presidente a meio de uma guerra e a outra é que há de facto
muita gente que defende a intervenção russa no Donbass.


      O apoio à intervenção da Rússia pode ser entendida como um apoio
      ao regime de Putin ou é um caso de interesses confluentes? Os
      separatistas garantem a independência e os grandes
      poderes económicos russos ganham acesso àquela que era a região
      mais industrializada da Ucrânia


    Censura: Pavlo Sadokha lidera campanha para proibir livro de Bruno
    Carvalho

<https://www.abrilabril.pt/nacional/censura-pavlo-sadokha-lidera-
campanha-para-proibir-livro-de-bruno-carvalho>

Recordemos que os comunistas russos já tiveram diversos choques com as
autoridades russas. Para além das questões económicas, houve militantes
comunistas detidos em manifestações. A forma de regime também é
questionada no sentido em que os comunistas russos, aos quais se
juntaram os comunistas de Donetsk e Lugansk, defendem um regresso ao
modelo soviético.

Há, certamente, contradições entre as forças que apoiam a intervenção
militar e diferentes visões sobre como o conflito deve ser resolvido.
Independentemente de estarmos de acordo ou não, a questão central
apresentada pelos comunistas russos é a da necessidade de derrota do
fascismo na Ucrânia e, naturalmente, a ilegalização dos comunistas
ucranianos, e agora de praticamente toda a oposição, tem peso nessa
análise.


      Dos comunistas do Donbass com quem contactaste, qual era a posição
      deles em relação à Rússia de Putin (abstraindo-nos, um pouco,
      sobre toda a questão da invasão militar)

Vladimir Putin defende uma economia de mercado com alguma intervenção do
Estado. Os comunistas defendem uma economia planificada. Há também
visões distintas sobre como se deve organizar a sociedade.

Contudo, recordo que o presidente russo habilmente soube recuperar e
valorizar a memória do passado soviético, sobretudo na preservação dos
símbolos e dos monumentos, abdicando de confrontar uma história que é
querida para uma parte substancial da população. Depois do desastre dos
anos 90, com uma economia em colapso e com um presidente que abdicou da
sua soberania, os russos parecem apostar na estabilidade económica e na
preservação das suas fronteiras.


      Dizes, a certo ponto, que não pertences a lado nenhum. É um
      contraste grande com a realidade no Donbass, onde tanto a
      população como alguns dos combatentes internacionais estão imersos
      numa luta de morte pelo direito a pertencer ao seu lugar

Mesmo que permaneça essa sensação de não pertencer a lado nenhum e ao
mesmo tempo ser de todo o lado, ter um lugar donde se é também é um
direito. Respeito muito a luta dos povos pela sua independência e
autodeterminação e muitos desses combatentes estrangeiros acabaram por
encontrar naquela luta e naquela terra o seu espaço. Foram recebidos de
braços abertos por quem combatia e acabaram por obter a nacionalidade
por parte das autoridades separatistas. Faz lembrar o título do enorme
livro do jornalista Joseph North, /Nenhum Homem é Estrangeiro/ [/No Men
Are Strangers/, de 1958]


      A luta que se trava no Donbass está muito longe de ser meramente
      uma disputa de territórios. Como mencionas n'A Guerra a Leste, há
      um confronto grande em termos de toponímia: Bakhmut mudou de nome
      para Artyomovsk em 1924, homenageando o revolucionário
      bolchevique Fyodor Sergeyev (Artyom). Voltou a mudar com a leis de
      descomunização de Poroshenko, em 2016. A recente conquista da
      cidade ditou a recuperação do nome soviético: Artyomovsk. No
      terreno, o confronto é muito ideológico?

    «Respeito muito a luta dos povos pela sua independência e
    autodeterminação e muitos desses combatentes estrangeiros acabaram
    por encontrar naquela luta e naquela terra o seu espaço.»

Eu não diria que isso é sempre visível mas está presente. As tropas
russas classificam o inimigo de fascista e essa é uma escolha que revela
uma opção ideológica. Uma das consignas mais comuns no Donbass, mesmo
que praticamente todos só saibam falar apenas russo, é «no pasarán»,
repetindo aquilo que aprenderam dos combatentes estrangeiros inspirados
na guerra civil de Espanha.

Há bandeiras imperiais russas, bandeiras nacionalistas, bandeiras
soviéticas, bandeiras religiosas. Do outro lado, nas minhas visitas às
posições conquistadas às forças ucranianas encontrei simbologia neonazi
em bandeiras, em murais, em autocolantes, também propaganda
nacionalista. Há batalhões neonazis a combater pela Ucrânia que envergam
todo o tipo de parafernália fascista. Aqui incluo estrangeiros,
incluindo portugueses. Mas há ainda, sobretudo nas zonas mais mineiras e
industriais, o culto do trabalho e do operariado, herança soviética.


      Foi morto (poucos dias antes desta entrevista), o norte-americano
      «Texas», de Austin, nos EUA (que se juntou, após 2014, ao lado
      separatista) alegadamente por militares russos. Referes os
      encontros que tiveste com ele nesses oito meses. No final do livro
      destacas ainda a morte, em combate, do colombiano Alexis Castillo.
      O que estas pessoas procuraram no Donbass?

Tanto um como outro decidiram partir para o Donbass para combater o
fascismo. As ondas do impacto do massacre de Odessa, na Casa dos
Sindicatos, onde meia centena de manifestantes anti-Maidan morreu
queimada, baleada e espancada, chegaram a todo o mundo.

O Alexis juntou-se às milícias separatistas inspirado pelas Brigadas
Internacionais compostas por antifascistas de todo o mundo que
combateram o franquismo nas trincheiras de Espanha em 1936. Foi contra a
vontade do Partido Comunista dos Povos de Espanha, no qual militava na
época. Aderiu posteriormente ao Partido Comunista de Donetsk.

O «Texas» tinha uma trajectória diferente. Talvez procurasse também a
redenção pessoal. Esteve preso por posse de drogas, tinha servido no
exército norte-americano. Depois contou-me que tinha encontrado o seu
lugar. Era uma personagem muito peculiar. Houve outros tantos que caíram
em combate. E na minha última viagem conheci um combatente brasileiro,
que ascendeu a capitão do exército russo, de alcunha «MacGyver».


      «Num jardim, em frente a uma escola, há várias sepulturas
      improvisadas. Numa das covas abertas, a espera de um cadáver, há
      uma placa: este lugar já está reservado». Há uma geração inteira
      de jovens e crianças que só conheceram a guerra, que dura já há 10
      anos. Reparaste nalgum impacto desta realidade na juventude?

Quem tem agora 20 anos, tinha 10 quando a guerra começou. E se tem 20
anos, a não ser que esteja a estudar, está a combater na linha da
frente. É uma absoluta falta de perspectiva de vida.

Conheço muitos que optaram por partir para a Rússia e começar a vida num
lugar onde há alguma esperança. As aulas são à distância há cerca de
dois anos, os órfãos foram transferidos para territórios seguros dentro
da Rússia, as brincadeiras na rua são sempre limitadas.

Vi corpos de crianças em pedaços, famílias desfeitas. Da última vez, um
só bombardeamento ucraniano atingiu uma casa no bairro de Petrovsky onde
morreram três irmãos pequenos. A mãe já tinha perdido o marido na guerra
e agora perdeu todos os filhos numa única noite. Ficou sem casa. É este
o grau de barbárie.


      Acompanhaste, primeiro, a destruição e, meses depois, o início do
      processo de reconstrução de Mariupol. Na tua primeira visita,
      quando chegaste perto de Azovstal, presenciaste o enterro de civis
      nos canteiros da cidade. Foi a tua experiência mais violenta nos
      oito meses no Donbass?

Foi a experiência mais intensa porque foram dias seguidos de combates
comigo nas ruas a absorver tudo o que via. Nunca tinha estado num
cenário deste tipo. Havia mortos enterrados em qualquer lado mas também
havia mortos nas ruas, nas praias, dentro de edifícios. Depois
acompanhei a trasladação de muitos desses cadáveres para cemitérios nos
arredores. Mas diria que um dos dias mais duros foi em Donetsk quando um
bombardeamento das forças ucranianas provocou a morte de mais de uma
dezena de civis numa praça movimentada da cidade.


      Ainda em Mariupol, relatas o momento em que mandaste uma mensagem
      a uma familiar de uma senhora na cidade, avisando-a de que a mesma
      estava viva. Estamos um pouco habituados, no Ocidente, a pensar
      nos jornalistas como fotógrafos da /National Geographic/, que não
      devem intervir com os sujeitos que observam.

    «As minhas reportagens televisivas podiam não ser fartas em
    qualidade estética mas a vontade e o empenho em fazer o melhor
    jornalismo possível estavam lá.»

Naturalmente, a guerra não pode ser um jardim zoológico. Há situações em
que não podemos ser meros espectadores. E esta era uma delas. Fiz bem
mais do que isso. Com outro camarada jornalista, salvámos a perna de uma
mulher vítima de uma mina anti-terrestre colocada pelas forças
ucranianas fazendo-lhe um garrote. Trata-se do mais elementar dever de
ajudar o próximo em situações de desastre. Com isso não estava a tomar
partido de ninguém ou a ajudar alguma das forças militares. Estava tão
somente a ajudar civis.


      «Éramos um pouco piratas». A certa altura, acabas por imprimir uns
      papeis a dizer PRESS e colas no material em segunda-mão que
      encontras. Este jornalismo improvisado, sem meios e agarrando as
      oportunidades à medida que vão surgindo (como fazes várias vezes
      ao longo dos teus oito meses de trabalho) consegue ir mais longe
      do que o jornalismo tradicional, que estaciona os repórteres em
      hotéis longe da frente?

Trata-se mais de vontade do que de capacidade. De facto, um jornalista
de uma grande estação televisiva de um país como os Estados Unidos pode
viajar num carro blindado com seguranças privados e toda uma equipa que
o assessora na produção das reportagens. Mas, ainda assim, não havia
nenhum daquele lado.

Com os nossos parcos recursos, apesar de haver naturalmente dinheiro
envolvido porque não é barato arranjar um condutor, e é justo que assim
seja porque aquela gente está a arriscar-se como nós, procurávamos estar
onde estavam os acontecimentos. Éramos muito atrevidos, digamos assim.
As minhas reportagens televisivas podiam não ser fartas em qualidade
estética mas a vontade e o empenho em fazer o melhor jornalismo possível
estavam lá.


      Foi essa qualidade do Donbass, de lugar pária, que atraiu este
      «jornalista outsider»? Habituado a estar no outro lado, nos
      bairros de Caracas, em áreas controladas pelas FARC, juntos dos
      independentistas bascos e agora nas regiões separatistas da Ucrânia

Sem dúvida. Eu gosto de dar voz a quem não tem voz.


      Oito meses no Donbass depois, ainda acreditas que «o Jornalismo
      deve servir para fazer do mundo um lugar melhor»?

Independentemente do estado actual do jornalismo, continuo a acreditar
que deve servir para fazer do mundo um lugar melhor. Para morder os pés
dos poderosos e denunciar injustiças. Para dar aos cidadãos toda a
informação que precisam para construir as suas opiniões e posições em
absoluta liberdade.

Em
ABRIL ABRIL
https://www.abrilabril.pt/cultura/bruno-carvalho-ha-situacoes-em-que-nao-podemos-ser-meros-espectadores
1/5/2024

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