sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Gênese do absolutismo de mercado


Liberais insistem em entender ''1984'' como advertência ao
totalitarismo de Estado, sem perceber que seu próprio mundo é há
tempos totalitário

Robert KurzPublicado em 08/06/97

Em seu próprio nome o liberalismo lança mão do conceito de
''liberdade''. O pathos liberal evoca a iniciativa e a
responsabilidade do indivíduo. À primeira vista, isto sempre soa
bem. Quem desejaria contradizer este belo conceito? Como criaturas
esclarecidas da modernidade, nós sabemos porém que não se deve
confiar nas palavras.
Quando George Orwell escreveu ''1984'', sua utopia negativa, não por
acaso escolheu como tema uma linguagem pública cujos conceitos dizem
essencialmente o oposto do que significam oficialmente. A título de
forma retórica de paliação, tal figura de linguagem já era conhecida
pelos antigos e recebeu o nome de ''eufemismo''. Por puro medo, os
gregos antigos se referiam às divindades demoníacas da vingança,
cujos cabelos eram serpentes sibilantes, como ''as
bem-intencionadas''. Talvez o conceito de liberalismo tenha surgido
num contexto semelhante.
Para chegar à verdade sobre um fenômeno da vida social, sempre é
aconselhável remontar às suas origens. O liberalismo nasceu no
século 17 e 18 como oposição aos Estados militares pré-modernos das
monarquias absolutistas e dos principados. Mas na mesma época havia
também uma oposição ainda maior das massas populares, que nada
tinham a ver com o liberalismo. É instrutivo portanto comparar estas
duas formas de oposição.
O absolutismo lançara então a primeira base do moderno modo de
produção capitalista, ao dar sinal verde para que a economia
monetária de mercado suprisse as demandas de seu gigantesco aparato
militar e burocrático. A grande maioria das pessoas sentiu este
desenvolvimento como uma repressão insolente e francamente
monstruosa.
De fato, o antigo e ''simples'' feudalismo sangrara apenas
superficialmente os camponeses e artesãos da sociedade agrária, os
quais reservavam uma pequena parcela de seus produtos aos senhores
feudais ou lhes faziam certos trabalhos. Quanto ao resto, no
entanto, o feudalismo os deixava em paz. Em seus campos e em suas
oficinas eles podiam fazer o que bem entendessem. Além disso, eles
dispunham de sua própria administração local.
O absolutismo destruiu todavia essa autonomia limitada e quis
submeter as pessoas à sua burocracia centralizada, para chupar-lhes
o sangue e torná-los ''material humano'' de um ''trabalho'' abstrato
totalmente predeterminado, sob o jugo do dinheiro.
Os camponeses e artesãos europeus defenderam-se encarniçadamente
contra esta opressão por mais de 300 anos, até meados do século 19;
e, ao seguirem a bandeira da ''liberdade'' em suas inúmeras
revoltas, eles sempre tinham em mente a autonomia social tanto
contra as investidas da burocracia absolutista quanto contra as
coerções dos novos mercados autônomos. Eles não queriam ser
milimetricamente comandados por um princípio que lhes era externo,
mas antes preservar o controle sobre as condições diretas de sua
subsistência.
O liberalismo, pelo contrário, era a ideologia dos ''executores''
econômicos no terreno da economia monetária de mercado iniciada pelo
absolutismo. Eram os novos capitalistas financeiros que prosperavam
sob o absolutismo, os grandes mercadores d'além mar e especuladores
coloniais, os capatazes (a soldo do Estado) das prisões-manufaturas
e do trabalho recluso, os proprietários e administradores dos
latifúndios criados para o mercado agrário mundial. Todos estes
voltaram-se à idéia liberal. Eles nada tinham em comum com o
conceito de liberdade social dos camponeses e artesãos revoltosos.
Ao contrário, eles assentiam de pleno juízo ao absolutismo no fito
de converter a massa dos produtores em ''material humano'' dos
mercados mundiais, despojá-los do controle dos meios de produção e
degradá-los a meros ''empregados'' sob o ditame do capital de
investimento.
Por isso os primeiros liberais jamais imaginaram, nem sequer em
sonho, que o ''material humano'' da economia de mercado pudesse ter
algum direito à ''liberdade''. Entre eles havia mesmo proprietários
de escravos e latifundiários que expulsavam camponeses de seus
pequenos sítios para transformá-los em pasto. Quando falavam de
''liberdade'', eles tinham em mente apenas sua própria liberdade
econômica de movimento como investidores e ''empresários'' que se
sentiam constritos pela tutela burocrática do Estado absolutista.
Sua oposição ao absolutismo teve portanto um caráter inteiramente
diverso da resistência social dos produtores diretos.
Por isso eles faziam causa comum com absolutismo contra as revoltas
sociais ''de baixo''. O conflito entre a ideologia liberal
originária, a par de sua clientela, e a ''graça divina'' do Estado
absolutista do início da modernidade nunca passou de uma rusga
familiar capitalista sobre o ulterior desenvolvimento dos
fundamentos comerciais comuns.
Mas já nessa crítica precoce movida pelos senhores capitalistas,
preocupados com a sua ''liberdade'' burguesa, contra o controle
social exercido pelo Estado autoritário pode-se notar uma curiosa
inversão lógica dos pontos de vista que indica o caráter irracional
de ambas as partes. Não somente o absolutismo pré-moderno e
monárquico, mas todo absolutismo de Estado (inclusive o socialista e
fascista) ** quer de um lado submeter a atividade econômica dos
indivíduos a um controle estatal abrangente; de outro lado,
entretanto, ele faz valer a idéia de que a subjetividade humana, a
vontade humana (na figura do monarca, do governo, do ''líder'' ou do
Comitê Central), deve ser de certo modo ''soberana'' diante do
sistema do mercado e do dinheiro.
Inversamente, o liberalismo representa de um lado a ''iniciativa
econômica'' do indivíduo capitalista diante do Estado; porém
justamente em virtude disso a pretensão a uma soberania da vontade
humana perante o sistema do mercado e do dinheiro é totalmente
abandonada. Este sistema, portanto, autonomiza-se, torna-se a lei
cega do comércio, e o homem converte-se em joguete das ''estruturas
econômicas'' e de sua dinâmica sem objetivo.
Já Adam Smith, o fundador da teoria econômica moderna sobre bases
liberais, venerava o sistema do mercado total como uma espécie de
''máquina divina'' pilotada pelo cego mecanismo ''auto-regulativo''
dos preços. De maneira análoga à imagem mecânica e física do mundo
de Isaac Newton, que considerava a natureza como uma grande máquina
universal unitária, Smith concebia a economia como a máquina
universal automática da sociedade, a cujas engrenagens os homens
tinham de se submeter.
Na física, a imagem mecânica do mundo há muito foi superada; na
economia, porém, a humanidade ainda insiste (e hoje mais do que
nunca) no ponto de vista mecanicista do século 18, que se
''objetivou'' nas formas da reprodução social. O liberalismo
caracteriza-se com isso por uma enorme contradição: a ''liberdade''
social do indivíduo sempre coincide com a irrestrita capitulação
geral de todos os indivíduos ante uma cega máquina social avessa a
discussões: o baal secularizado do capital.
Também se pode dizer que, por meio de suas exigências desmedidas no
seio da sociedade, o absolutismo gerou o monstro sem sujeito de um
automatismo econômico independentizado que fugiu a seu próprio
controle e a seguir arrebatou-lhe a ''soberania''. O liberalismo,
que exigia em primeiro lugar a ''liberdade'' do indivíduo, na
verdade somente deu execução à autonomia dessa ''máquina''. Os
liberais não são outra coisa senão sacerdotes de um ídolo automático
que dita ao ''processo de troca natural com a natureza'' (Marx) uma
cadência irracional segundo ''regularidades'' mecânicas.
O contraste entre liberalismo e absolutismo de Estado não pode ser
tomado sob um prisma emancipatório a partir de nenhum dos lados. Ele
reflete somente os mesmos paradoxos sociais do sistema produtor de
mercadorias: ou a ''soberania'' humana em relação à máquina de
mercado tem de se dissimular como controle autoritário do Estado
sobre os indivíduos, ou a ''liberdade'' dos indivíduos tem de se
dissimular como total abnegação da vontade humana à marcha cega da
máquina do mercado.
Para a maioria das pessoas, a contraposição entre absolutismo e
liberalismo é irrelevante: dá no mesmo se elas são torturadas e
humilhadas por uma burocracia estatal ou pelo mecanismo sem sujeito
do mercado. Esta experiência foi sentida na pele pelos europeus do
Leste, que saíram da cruz da ditadura do socialismo estatal
diretamente para a caldeirinha da degradação pelo mercado ''livre''.
Em fins do século 18 e início do século 19, o liberalismo deparou-se
com o problema de ter de eliminar não só a pretensão da burocracia
estatal absolutista, mas também as pretensões das massas populares à
autonomia social. Logo tornou-se claro que era impossível coagir as
pessoas exclusivamente por meio da repressão, da polícia, do
exército, da força e das prisões; melhor seria transformá-las em
material para os ''mercados de trabalho'' e submeter a própria força
de trabalho abstrata às leis da oferta e da procura. Por isso o
liberalismo começou a vincular a repressão à ''pedagogia'' popular e
industrial.
Se num primeiro momento os liberais relacionavam o conceito de
''responsabilidade'' apenas a si mesmos, na condição de
''executores'' de um capitalismo individual, tal conceito foi então
estendido também ao ''material humano''. Eis aqui um monstruoso
cinismo: as pessoas absolutamente despojadas de todo controle sobre
suas próprias condições de subsistência material e social devem ser
''responsáveis'' justamente pelo fato de se tornarem de vontade
própria ''burros de carga'' do mercado e mendigarem indignamente por
''empregos'', ainda que sob as mais miseráveis condições.
Um dos grandes ideólogos dessa ''pedagogia popular'' foi Jeremy
Bentham (1748-1832), o fundador do ''utilitarismo''. O ''anseio do
homem por felicidade'' devia ser traduzido no impulso de integrar
todas as manifestações da vida ao objetivo da valorização do
capital. A fim de convencer as pessoas a enxergarem sua própria
''felicidade'' justamente no fato de poderem se fazer ''úteis'' no
ramerrão capitalista, Bentham inventou uma instalação penitenciária
bastante especial, o panóxtico.
O que é o panóptico? O próprio Bentham diz que se trata de um
princípio apropriado tanto para prisões quanto para fábricas,
escritórios, hospitais, escolas, casernas, reformatórios etc. Do
aspecto arquitetônico, o panóptico consiste numa construção em
círculo, em cujo centro se acha a cadeira (encoberta por cortinas)
do ''inspetor'' e cuja periferia é destinada às celas, apartadas
entre si, dos presos ou dos alunos. Muitos cárceres de trabalho
forçado foram construídos segundo esse modelo. O refinado objetivo
da disposição é fazer com que os presos se sintam permanentemente
observados e controlados, sem saber se a cadeira do inspetor está
realmente ocupada. Os detentos devem ''a partir de si próprios'', de
modo progressivo e automático, comportar-se como se fossem
observados, mesmo que este não seja o caso.
O panóptico, para Bentham um modelo da sociedade de mercado
''ideal'', não passava de uma ''máquina de responsabilidade'' para
condicionar os indivíduos ao comportamento compatível ao mercado. Os
mecanismos de submissão e abnegação de~iam converter-se em ''traços
intrínsecos da conduta'' das pessoas. Essa ditadura liberal de
ensino objetivou-se em estruturas arquitetônicas e organizacionais,
em símbolos e mecanismos psíquicos.
Os imperativos capitalistas, escreveu o filósofo Michel Foucault
sobre o panóptico em seu livro ''Vigiar e Punir'' (1976), aparecem
''numa ordem concentrada de corpos, superfícies, luzes e olhares,
(...) num aparato cujos mecanismos internos produzem a relação a que
se prendem os indivíduos''. Bentham aperfeiçou incessantemente seu
aparato social de adestramento humano. Ele inventou a solitária, as
carteiras de identidade, as tarjetas de identificação na campainha
dos prédios e os escritórios de vastas dimensões. Em 1804, ele
sugeriu tatuar um número em todos os ingleses.
Ao mesmo tempo, Bentham foi um fervoroso democrata. Todos, do garoto
de recados até o ministro, deviam contribuir para o ''controle
público'', isto é, observar a si mesmos e aos outros para dar corda
diariamente ao relógio comum da auto-opressão. Kant, o maior
filósofo do Iluminismo, conclamara o homem a ''sair da menoridade
imposta por si próprio e servir ao entendimento sem a condução de
outrem''. Na esteira de Bentham, o sentido oculto deste imperativo
liberal vem à luz: cada um seu próprio policial, educador,
carcereiro e capataz! A máquina universal auto-regulativa do mercado
necessita de indivíduos auto-regulativos, que se adaptem
''automaticamente''.
Bentham antecipou ''1984'', o pesadelo de Orwell, em quase 200 anos,
porém como projeto real. Ironicamente, o mundo liberal-democrático
insiste em entender ''1984'' como uma advertência ao totalitarismo
(de Estado), sem perceber que ele próprio é há tempos o produto de
uma lavagem cerebral de cunho liberal e totalitário. Hoje todos nos
portamos de maneira ''auto-regulativa'' como robôs da
responsabilidade da economia de mercado, e aquele antigo conceito de
''liberdade'' que visava à autonomia social foi tachado de
pré-industrial e primitivo.
Obviamente não queremos nem podemos regressar ao restrito modo de
vida agrário de camponeses e artesãos. Mas será que o preço do
progresso tinha de ser a degradação social do homem a um ''cão de
Pavlov'' da máquina do mercado? A humanidade realmente é incapaz de
regular as forças produtivas modernas através de determinações
sociais e entendimentos conscientes, ao invés de se abandonar
cegamente a um autômato econômico? O absolutismo do mercado não é
uma alternativa ao absolutismo do Estado. A nós cumpre reinventar,
para o século 21, o antigo conceito de ''liberdade social'' em
oposição à ''liberdade orwelliana'' do liberalismo.

** O blog não necessariamente está de acordo com o teor dos textos que veicula, em parte
ou na íntegra, uma vez que seu objetivo é contribuir para o debate e a circulação de
informações.
O socialismo histórico não superou a alienação do trabalho, entre outros grandes
problemas. No entanto, a equiparação dos regimes socialistas com os regimes do
"Antigo Regime" não pode ser mais do que uma metáfora cômoda à exposição.
De modo análogo, a apresentação linear exemplificativa do socialismo histórico ao
lado do fascismo, mais contribui para obscurecer do que esclarecer o processo his-
tórico. De resto, a pesquisa histórica recente sobre a URSS, por exemplo, começa
a sugerir que esse regimes apresentaram - e ainda apresentam - complexidades
até recentemente insuspeitas.


In
http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=17556
10/1/2014

Publicado originariamente em 8/7/1997

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