quarta-feira, 29 de agosto de 2018

As finanças contra o povo



       por Prabhat Patnaik [*]



      Por vezes mesmo uma pequena notícia obscura pode revelar enormidades
       acerca do capitalismo. Como é bem sabido, o mercado de acções indiano
      está pujante neste momento: as 30 acções do Sensex fecharam numa nova alta
      de 38.278,75 na segunda-feira, 20 de Agosto, e nesse dia o indicador mais
      vasto do Nifty cruzou a marca dos 11.500 pela primeira vez. Um dos
      executivos do sector financeiro explicou a razão por traz deste boom da
      seguinte maneira (  The Hindu,  21/Agoto): "A única diferença entre este
      momento (em relação a poucos meses atrás) é que a política parece mais
      estável – as perspectivas de uma coligação oposicionista parecem um pouco
      duvidosas". Estes executivos do sector financeiro sabem muito pouco acerca
      da macroeconomia e quando falam sobre o assunto, como é frequente, eles
      meramente exprimem platitudes neoliberais. Mas conhecer acerca do
      "mercado" é o seu dia-a-dia; de modo que as visões do mencionado executivo
      devem ter alguma verdade por trás.
       Isto não quer dizer que o "mercado" agora acredite que uma "coligação da
      oposição" não acontecerá de modo algum. Os movimento do "mercado" de hoje
       reflectem não o que está em vias de acontecer daqui a meses ou anos, mas
      sim o que é provável que hoje ou nesta tarde. Mesmo um recuo efémero e
      temporário em esforços para uma "coligação opositora" entusiasma o
      "mercado". Isto impulsiona o mercado porque as pessoas compram acções na
       esperança de venderem-nas a um preço mais alto amanhã, a alguém que possa
      ainda estar entusiasmado o suficiente amanhã para comprar na crença de que
      possa por sua vez vender a algum outro depois de amanhã a um preço ainda
      mais alto. A questão portanto não é a previsão do "mercado" quanto ao
       resultado da eleição de 2019; a questão é que uma "coligação da oposição"
      amortece o "mercado". Ou, dizendo isto de outro modo, o "mercado" ama Modi
      e o [partido] BJP acima de todos os outros.
       A pergunta é por que? Afinal de contas, Manmohan e Chidambaram não são
      menos "amistosos para com o mercado" do que Modi e Sha. Então porque o
      "mercado" tem esta parcialidade para com os anteriores? Porque ao
      contrário do Congresso, que é um partido de liberais burgueses antiquados
      a tentar manter o seu rebanho junto através de toda espécie de negociações
      e compromissos mesmo quando permanece firmemente comprometido com o
       neoliberalismo, o regime Modi-Sha é simultaneamente implacável na
       generalidade e  implacavelmente neoliberal.  E o "mercado" gosta de
      regimes com  estas ambas qualidades,  regimes que sejam implacavelmente
      pró corporativos  e também  suprimam implacavelmente toda dissidência – e
      portanto a dissidência contra grandes corporações.
       O "mercado", em suma, tem uma antipatia fundamental em relação à
      democracia. Ele ama o autoritarismo e ama ainda mais o
      comunal-autoritarismo, porque o segundo, ao contrário do "mero"
      autoritarismo, também está imbuído de uma ideologia com um apelo de massa
      potencialmente poderoso o qual é simultaneamente desagregador e
      anti-esquerda – e desvia a atenção do povo das condições abissais da sua
       existência material. Se bem que todos os partidos burgueses no país sejam
      neoliberais, os elementos do  Hindutva  emergiram portanto como os
      queridos das grandes corporações, tanto internas como estrangeiras. Eles
      têm feito isso, não só porque estão a governar o país como se houvesse uma
       Emergência não declarada como também porque a sua actuação está associada
      a um apelo ao "nacionalismo"  Hindutva  que pode obter um certo grau de
      apoio de massa.
       Eles podem suprimir oponentes do regime; mas podem também, além disso,
      empaná-los como "anti-nacionais" o que transmitir convicção junto a
      algumas pessoas, especialmente com o apoio oferecido ao regime pelos media
      dóceis. Este facto da sua "utilidade" é quase instintivamente
      internalizado por todo os "participantes do mercado", razão pela qual o
      Sensex sobe com a simples menção de qualquer recuo de movimentos políticos
       anti-BJP.
       Apesar de Modi e Sha terem elevado a sua posição pró corporatista a novas
      alturas, ao ponto de Modia louvá-la aberta e orgulhosamente, a
      parcialidade aberta do BJP para com o grande capital e recíproco amor
      deste último para com o BJP não são fenómenos novos; eles também estavam
      ali anteriormente. De facto, quando, para surpresa de todos, o governo NDA
      de Atal Behari Vajpayee foi derrotado nas eleições de 2004 (uma vez que o
      eleitorado não pensava que "a Índia brilhava" como afirmavam Vajpayee e
      Advani), não só o mercado de acções caiu como também foram levantadas
      perguntas no mundo corporativo acerca da razão porque a Índia gastava
      tanto tempo com eleições tão frequentes!
       O  Wall Street Journal  saiu-se de facto com a mais bizarras das ideias.
      Um artigo nele publicado argumentava que a decisão acerca de quem deveria
      governar um país deveria ser deixada não apenas ao povo desse país, mas a
      todas as  partes interessadas (stake-holders)  desse país, incluindo os
      investidores estrangeiros que haviam investido tanto dinheiro no país.
      Portanto, investidores institucionais estrangeiros e corporações
      multinacionais que têm projectos no país também deveriam determinar quem
      deveria formar o governo – e não apenas o povo.
       Isto foi um exemplo notável de inversão da razão, ou o que Marx havia
      chamado de "reificação", quando relações sociais aparecem numa forma
      invertida. O ideal da democracia é que o povo deve decidir as disposições
       sociais sob as quais ele vive. A propriedade privada, incluindo a forma
       extremamente concentrada da finança globalmente móvel, a qual surge na
      época actual, é uma disposição social cuja existência e operação deve
      idealmente ter a sanção do povo numa democracia. A soberania do povo é
       primária; disposições sociais podem derivar sua legitimidade, se alguma,
      só da vontade do povo soberano. Dizer que as finanças devem ter um voto
      juntamente com o povo porque todos eles são "partes interessadas" é
      colocar criações do povo, nomeadamente as disposições sociais, acima (ou
      pelo menos a par) do próprio povo, que é o que a reificação implica.
       Mas o que toda esta atitude revela, antes e hoje, é a profunda antipatia
       das finanças em relação à democracia. As finanças, quando forçadas a
      tolerar democracia, procuram subvertê-la pela utilização de grandes
      quantias de dinheiro em eleições, pela utilização desenfreada e
       inescrupulosa dos media controlados pelas corporações e pela
       mercantilização geral da política e dos políticos. Quando por acaso,
      apesar de todos estes esforços, acontece ser eleito um governo
      comprometido com uma agenda diferente daquela aprovada pelas finanças, ela
      torna qualquer transição para um regime económico alternativo tão difícil,
      através de todo um conjunto de medidas que vão desde a fuga de capitais
      até a imposição de sanções pelas potências metropolitanas, que o novo
      governo é habitualmente forçado a abandonar a sua agenda alternativa e
      fazer as pazes com as finanças.
       Mas do seu ponto de vista é extremamente conveniente uma situação em que
      um governo que lhe é extremamente próximo consegue perpetuar-se no poder
      pela utilização de uma retórica religiosa que distrai o povo dos seus
      problemas quotidianos. Num caso assim, as finanças dominam dentro da
      fachada da democracia mesmo quando o povo é incitado a centrar-se no ódio
      a alguma infeliz minoria, ao mesmo tempo que aceita este domínio das
       finanças.
       "Finanças contra o povo", em suma, não é algo confinado apenas ao âmago
      da economia. Naturalmente a hegemonia das finanças, a qual manifesta-se
      num processo implacável de acumulação primitiva de capital através de um
      assalto aos pequenos produtores e à agricultura camponesa, a qual incha o
       exército de trabalho de reserva, tem o efeito de piorar, em termos
       absolutos, as condições materiais do povo trabalhador, isto é, dos
      trabalhadores urbanos, trabalhadores agrícolas, camponeses, pescadores,
      artesãos, pequenos comerciantes e outros. Mas este conflito
      necessariamente transcende as fronteiras do âmbito económico para abraçar
      o âmbito da sociedade política  (polity). 
       As finanças querem que o poder do povo seja reduzido. E uma vez que a
       democracia, apesar de todo o seu enfraquecimento, proporciona algum poder
      ao povo, as finanças querem democracia reduzida ou, melhor ainda, abolida.
       Esta simples proposição é ignorada pelo pensamento liberal, o qual
      professa sua crença tanto na democracia como no capitalismo neoliberal
      cuja principal característica é a hegemonia das finanças. Há contudo uma
      contradição irreconciliável entre os dois, o que é apenas uma expressão do
      irreconciliável antagonismo de classe que caracteriza o capitalismo. Esse
      facto brilha fugazmente quando o "mercado" mostra exuberância com a
      remoção de um desafio ao comunal-autoritarismo. Mas este facto é central
      para o capitalismo.

      26/Agosto/2018
      [*] Economista, indiano, ver  Wikipedia
       O original encontra-se em 
      peoplesdemocracy.in/2018/0826_pd/finance-versus-people

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_26ago18.html
26/8/2018

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