quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Chilenos lutam contra modelo de previdência que Bolsonaro quer copiar


Rute Pina


Brasil de Fato
Há três anos, o Chile vive um ciclo contínuo de manifestações que coloca milhões
de pessoas nas ruas em torno de um tema: o modelo da previdência vigente no
país. Quase 40 anos depois de implementada, a previdência chilena, que inspira o
presidente de extrema direita Jair Bolsonaro (PSL) a propor um sistema
semelhante no Brasil, enfrenta uma crise profunda.
Na década de 1980, período em que o país era conhecido como “laboratório
neoliberal” por conta de uma série de políticas privatizantes em áreas como
saúde e educação, o Chile instaurou um modelo de previdência baseado em contas
individuais, com contribuição obrigatória. A mudança, nunca implementada em
nenhum outro lugar do mundo, foi feita por meio de um decreto de lei imposto
pelo ditador Augusto Pinochet em 1981.
Os fundos são administrados pelas AFPs [Administradoras de Fundos de Pensão] e
investidos em aplicações financeiras. As primeiras gerações chilenas a se
aposentar pelo sistema se depararam com o valor de aposentadoria abaixo do
salário mínimo.
O cientista político Recaredo Gálvez, pesquisador da Fundación Sol, lembra que o
sistema imposto em um ambiente antidemocrático não possibilitou a disseminação
de informações corretas sobre o sistema e impediu o debate sobre as
consequências que sua implementação traria para o país.
“Não havia real participação para discutir sobre essa transformação de política
no Chile. E isso significou que muito do que a ditadura informou a respeito da
mudança de sistema foi algo que não estava baseado em nenhum fato”, pontua.
No Chile, apesar de o modelo ter sido implementado pelos militares, as forças
armadas não têm o mesmo sistema de aposentadoria porque se opuseram às contas
individuais.
Quatro décadas depois, efeitos nefastos
Nos modelos solidários de repartição, como o brasileiro, os trabalhadores que
estão no mercado de trabalho financiam, com aporte dos empregadores e do Estado,
quem está se aposentando. No sistema de capitalização, lançado pelo Chile, cada
pessoa é responsável por sua aposentadoria por meio de uma conta individual.
Para o advogado da Defensoria Popular dos Trabalhadores, Javier Piñeda, o modelo
privatizado representa um risco para os trabalhadores. “Esta lógica de
capitalização individual significa que cada pessoa tem que se salvar sozinha. E
com as altas taxas de desemprego e de informalidade, isso significa que as
pessoas estão condenadas a receber uma aposentadoria de miséria”, argumenta.
“O risco que existe é que esses fundos vão parar nas grandes empresas que
negociam no mercado de valores. Portanto, a crise impacta nos trabalhadores. A
crise do subprime de 2008 [nos EUA], por exemplo, provocou perdas milionárias
para os trabalhadores e levou, pelo menos, cinco anos para recuperar o fundo
perdido neste período.”
A promessa da ditadura de Pinochet era que os aposentados receberiam um valor
que poderia chegar a 80% do seu último salário antes de se aposentar. Mas o que
acontece hoje é que os chilenos recebem apenas 30% disso, explica o advogado.
“Ou seja, se um trabalhador tinha um salário de US$ 500, ele deveria receber uma
aposentadoria de US$ 400. No entanto, a taxa de retorno está aproximadamente em
30%. Isso significa que esse trabalhador só está recebendo US$ 150”.
Cerca de 90% dos aposentados chilenos recebem menos de 147 mil pesos (R$ 833),
aproximadamente US$ 225. Esse valor equivale a quase metade do salário mínimo do
país que, a partir de março, será fixado em 301 mil pesos chilenos (R$ 1,7 mil),
cerca de US$ 450 dólares.
Recaredo Gálvez destaca que outro efeito da privatização foi o aumento da
desigualdade e uma maior concentração de mercado controlado. Hoje as AFPs são
compostas, basicamente, por seis empresas — cinco delas estrangeiras.
Destas cinco empresas com capital internacional, três são controladas por
empresas estadunidenses: Principal Financial Group, Prudential Financial e
MetLife. Outra é controlada pela seguradora brasileira BTG Pactual.
“É um tipo de política que tem como motivação principal poder gerar uma fonte de
absorção de capital através do esquema financeiro. E que acaba com o direito
social aos trabalhadores e trabalhadoras”, diz o pesquisador.
Movimento “No + AFP”
Os movimentos populares do Chile estão preparando uma marcha em defesa da
Seguridade Social no país para o dia 31 de março de 2019. “Esperamos que essa
marcha também consiga colocar essa problemática em nível regional. Por isso é
necessário falar da experiência chilena e o avanço que representa esse modelo no
Brasil e em outros países da região”, explica Gálvez.
Desde 2015, a população chilena ocupa as ruas para lutar pela Previdência. A
ex-presidente Michelle Bachelet implementou, em 2008, o Pilar Solidário para
auxiliar pessoas que não contribuíram com o sistema, mas não mudou a estrutura
do sistema atual. Em resposta às mobilizações, o atual presidente, Sebastián
Piñera, apresentou há dois meses, em dezembro de 2018, uma medida para injetar
ainda mais recursos no setor privado.
A proposta de Piñera, consiste, em resumo, em aumentar progressivamente a taxa
de contribuição de 10% para 14% para as administradoras. O irmão do atual
presidente, José Piñera, é o economista por trás da proposta do sistema de
previdência privada do Chile que vigora hoje. Ele era ministro do Trabalho e
Segurança Social, e da Mineração, no regime ditatorial de Pinochet. Ele é um dos
famosos “Chicago boys”, como ficaram conhecidos os economistas que adotaram a
linha de pensamento neoliberal disseminada pela Universidade de Chicago — da
qual o ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, também faz parte.
Em 2016, no contexto das manifestações, foi formado o movimento No + AFP (Chega
de AFP, em português). A entidade esboçou sua própria proposta de sistema de
aposentadoria. “A tática do movimento é colocar esse projeto de lei como uma
alternativa viável de construção de um novo sistema de previdência”, explica
Javier Piñeda. O advogado participou da comissão que criou a iniciativa.
A principal reivindicação dos movimentos populares no Chile hoje é um sistema de
repartição solidária entre trabalhadores, empresa e Estado — o mesmo que vigora
no Brasil.
Olhando para as discussões no país vizinho, que quer copiar o modelo tão
questionado em seu país, o advogado chileno aconselha os brasileiros: “Nesse
contexto de privatizações, vocês têm que se opor de maneira contundente porque,
uma vez implementado esse sistema, vai ser difícil voltar atrás. Não só pelo
governo, mas pelas empresas do grande capital nacional e internacional que serão
beneficiados com esses recursos.”
Edição: Mauro Ramos
https://www.brasildefato.com.br/2019/02/08/por-que-os-chilenos-lutam-contra-o-modelo-de-previdencia-que-bolsonaro-quer-copiar/

In
PCB
https://pcb.org.br/portal2/22312/chilenos-lutam-contra-modelo-de-previdencia-que-bolsonaro-quer-copiar/
11/2/2019

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