sexta-feira, 19 de março de 2021

A Comuna de Paris: o assalto aos céus

 

// Manuel Augusto Araújo

A Comuna de Paris, sobre a qual passam 150 anos, é um dos mais
fulgurantes acontecimentos na história da emancipação humana. Todas as
gerações a devem conhecer e celebrar. Os seus curtos 72 dias - aos quais
a burguesia pôs fim com a mais sanguinária repressão - permitiram
vislumbrar um mundo inteiramente novo e as forças sociais que, mais
tarde ou mais cedo, o construirão definitivamente.

É estranho ou mesmo paradoxal que a canção emblemática da Comuna de
Paris (18 de Março a 28 Maio de 1871), a primeira revolução em que a
classe operária partiu «ao assalto dos céus por reconhecidamente ser a
única que era capaz de iniciativa social e política»1, seja uma
cançoneta de amor – escrita em 1866 por Jean-Baptist Clément (letra) e
Antoine Renard (música) – sem o ímpeto das outras que desde as primeiras
revoltas camponesas e operárias até aos dias de hoje cintilam no vasto
cancioneiro revolucionário que continua inacabado. No contexto histórico
daquela epopeia que explodiu os dias calendarizados num tempo sem tempo,
concentraram-se todas as imensas esperanças do proletariado, da classe
operária. Le Temps des Cerises ouve-se com a emoção de se saber que os
amanhãs são sempre possíveis, mesmo quando derrotados circunstancialmente.

*O Assalto aos Céus*

A historiografia contemporânea reaccionária procura fazer uma revisão de
todos os sucessos históricos das lutas operárias, das lutas de classes,
menorizando-os como singularidades de circunstâncias únicas,
contingentes, para que a sua coerência se dilua em micro
subjectividades, negando todas as evidências. A Comuna de Paris, a
Revolução de Outubro e muitos outros sucessos históricos, por cá e
noutra escala o fascismo-salazarista ou o 25 de Abril, são objecto de
branqueamento e limpeza que desvirtuam do que lhes é nuclear e
essencial. Deve-se estar atento à calhordice cínica desses académicos
alinhados na direita mais enquistada que, disfarçada de uma mais que
falsa seriedade científica, promove nos meios universitários, em
revistas com auras de seriedade, nos media corporativos, teorias falazes
com urdidoras embustices que fazem caminho sem olhar a meios para
atingirem os seus fins. A comemoração dos 150 anos da Comuna de Paris,
como seria de esperar, não escapa a essas gralhas reaccionárias. Há que
repor a verdade histórica. A importância que teve e tem na história de
todas as lutas pela libertação da exploração burguesa do trabalho humano.
A Comuna de Paris não aparece por geração espontânea. As suas raízes
históricas mais próximas encontram-se na Revolução Francesa, nos seus
episódios mais decisivos, como a Tomada das Tulherias, o fim da
monarquia, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o preâmbulo
da nova Constituição. É a herdeira política da ala mais radical dirigida
por Robespierre, que acaba guilhotinado pelos conjurados corruptos do
Thermidor, inspira-se na Conspiração para a Igualdade de Babeuf2. A
herdeira das revoluções europeias que incendiaram a Europa em 1848, no
que foi considerado a Primavera dos Povos, foi afogada num banho de
sangue de brutalidade inominável. É um marco na longa linha de lutas e
insurreições operárias e camponesas do séc. XIX, num mundo de mudanças
económicas e modernização capitalista. Será a última desse século, a
primeira a triunfar, mesmo que por um pequeno lapso de tempo, em que se
ergueram em simultâneo as bandeiras do patriotismo e do
internacionalismo. Um marco histórico para as revoluções que lhe
sucederam, nomeadamente a Revolução de Outubro.

Foi a primeira revolução socialista da história da humanidade, numa
Paris que vivia situação turbulenta depois de Napoleão III ter assinado
a rendição na guerra entre a França e a Prússia, num contexto de
agitação insurreccional generalizada. Os operários franceses, que viviam
sob duras condições de trabalho e não concordavam com a rendição da
França, mais revoltados ficaram quando o governo, para resolver os
custos da guerra, lançou novos impostos sobre os trabalhadores para
solucionar os problemas das dívidas contraídas.
A revolta estalou apoiada na Guarda Nacional, maioritariamente formada
por operários, a que se juntaram milícias populares de cidadãos e
soldados que se amotinaram. Um governo revolucionário foi organizado na
base de comités de bairro que elegeram um Comité Central, onde figuravam
representantes da Federação dos Bairros, blanquistas, proudhonistas,
membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1864
por impulso de Karl Marx. Confluíram várias tendências políticas, dos
socialistas aos anarquistas, proletariado e pequena burguesia, artistas
e escritores. O vácuo político deixado pelo governo – o qual, impotente
para conter a revolta, tinha fugido para Versalhes – foi ocupado pelos
revolucionários.
A Comuna foi proclamada. O seu primeiro édito é esclarecedor: «abolição
do sistema de escravidão do salário de uma vez por todas». O sistema
eleitoral sofreu uma viragem integral. A democracia directa foi
instituída em todos os níveis da administração pública. A polícia foi
abolida e substituída pela Guarda Nacional. A educação foi secularizada.
A previdência social foi instituída. O poder da burguesia foi pela
primeira vez posto radicalmente em causa. O alarme na Europa alastrou
com violência.
O governo de Thiers, depois de humilhado pela Prússia, com a coroação do
imperador Guilherme II no palácio de Versalhes, negociou com o Império
Alemão a libertação dos soldados franceses, para recompor o exército e
atacar Paris. A desproporção de forças não podia ser maior. Cem mil
soldados a mando de Versalhes contra 18 mil milicianos da Comuna. A
cidade, apesar de heroicamente defendida, foi tomada de assalto. A
repressão que se seguiu foi de uma imensa brutalidade, como tem sido
sempre, ontem e hoje, contra quem ousa afrontar o instituído poder da
burguesia mesmo pelo uso do voto, como se assistiu no Chile ou quando,
na Indonésia, Suharto massacrou um milhão de militantes comunistas que
ameaçavam vencer as eleições.
Vinte mil communards foram imediatamente executados. 40 mil foram
presos, torturados e executados. Esses eram os considerados «contumazes»
pelos Conselhos de Guerra de Versalhes, que julgaram e condenaram 13 450
cidadãos. Contam-se nos autos 80 crianças, 1320 mulheres, 12 050 homens.
O número de mortos às mãos do governo de Thiers é calculado em 80 mil.
A Comuna de Paris acabou por ser uma causa desesperada. Uma causa
indispensável na luta de massas, pelo que se aprendeu para lutas
futuras. Como escreve Marx a Ludwig Kugelman3:
«a história mundial seria, aliás, muito fácil de fazer se a luta fosse
empreendida apenas sob a condição de probabilidades infalivelmente
favoráveis. Ela seria, por outro lado, de natureza muito mística se as
“casualidades” não desempenhassem nenhum papel. Estas casualidades
ocorrem elas próprias naturalmente no campo geral do desenvolvimento e
são de novo compensadas por outras casualidades. Mas a aceleração e o
retardamento estão muito dependentes de tais “casualidades”, entre as
quais figura também o “acaso” do carácter das pessoas que no início
estão à cabeça do movimento.
Desta vez, o “acaso” decisivamente desfavorável não deve de modo nenhum
procurar-se nas condições gerais da sociedade francesa mas na presença
dos prussianos em França e na sua posição mesmo às portas de Paris. Isto
sabiam-no os parisienses muito bem. Mas sabiam-no também os canalhas
burgueses de Versalhes. Precisamente por isso colocaram os parisienses
perante a alternativa de aceitarem a luta ou de caírem sem lutar. A
desmoralização da classe operária neste último caso teria sido uma
desgraça muito maior do que a morte de qualquer número de “chefes”. Com
a luta de Paris, a luta da classe operária com os capitalistas e o seu
Estado entrou numa nova fase. Corra a coisa como correr no imediato,
está ganho um novo ponto de partida de importância histórico-mundial.»

*Apontar para o Futuro*

Pela primeira vez na História da Humanidade, simples operários ousaram
tomar nas suas mãos os privilégios dos que se julgam seus «superiores
naturais». Ousaram formar, com os seus iguais, o seu próprio governo.
É admirável a actividade legislativa da Comuna. Em semanas introduziu
mais reformas que os governos nos dois séculos anteriores. Era o ímpeto
revolucionário de corte integral com o passado, o triunfo dos
sans-culottes sobre os jacobinos que os tinham traído na Revolução Francesa.
Os principais decretos da Comuna de Paris são referências que apontam
para o futuro. O trabalho nocturno foi abolido; oficinas que estavam
fechadas foram reabertas para que cooperativas fossem instaladas;
residências vazias foram desapropriadas e ocupadas; todos os descontos
em salário foram revogados; a jornada de trabalho foi reduzida,
propõe-se a jornada de oito horas; os sindicatos foram legalizados;
instituiu-se a igualdade entre os sexos; projectou-se a autogestão das
fábricas; o monopólio da lei pelos advogados, o juramento judicial e os
honorários foram anulados; testamentos, adopções e a contratação de
advogados tornaram-se gratuitos; o casamento foi simplificado, tornou-se
gracioso; a pena de morte foi eliminada; o cargo de juiz tornou-se
electivo; o Estado e a Igreja foram separados, a Igreja deixou de ser
subvencionada pelo Estado; os espólios sem herdeiros passaram a ser
propriedade do Estado; a educação tornou-se gratuita, laica e
obrigatória; escolas nocturnas foram criadas e todas as escolas passaram
a ser de frequência mista; a Bandeira Vermelha foi adoptada como símbolo
da Unidade Federal da Humanidade; instituiu-se um escritório central de
imprensa; o serviço militar obrigatório e o exército regular foram
banidos; todas as finanças foram reorganizadas, incluindo os correios, a
assistência pública e os telégrafos; traçou-se um plano para a rotação
de trabalhadores; organizou-se uma Escola Nacional de Serviço Público;
os artistas e os escritores passaram a autogestionar os teatros e
editoras; o salário dos professores foi duplicado; o internacionalismo
foi posto em prática, o facto de ser estrangeiro foi considerado
irrelevante. Os integrantes da Comuna incluíam revolucionários de
praticamente todos os países da Europa, em especial belgas, italianos,
polacos, húngaros, que defenderam mais patrioticamente a França que os
vendidos aos interesses privados na esteira do bispo Cauchon, que
entregou Joana D’Arc aos ingleses, ou dos que actualmente rastejam às
ordens do grande capital sem pátria.

*Uma lição de história*

A insurreição do 18 de Março de 1871 é singular, até contingente e
inesperada, mas tem consequências imediatas sobre o movimento operário e
revolucionário. As novas e inovadoras relações entre o Estado o Poder e
a propriedade privada, as estratégias revolucionárias incidindo nas
cooperativas, as relações entre o movimento operário e a questão
camponesa, o papel das mulheres, influenciaram textos maiores do
marxismo-leninismo como a Origem da Família, da Propriedade e Privada e
do Estado de Engels4, em 1884, obra fulcral para se compreender a origem
do patriarcado e da opressão das mulheres. Marx, com a grande clareza e
lucidez que o caracterizam, percebe melhor a importância da participação
das mulheres durante a Comuna e propõe a criação de secções femininas na
Internacional. Aprofunda os estudos sobre a urgência e necessidade de
alianças entre operários e camponeses, o que a Comuna no seu breve tempo
de existência não teve tempo de realizar. Nas várias reflexões sobre
esse acontecimento histórico, nas já referidas cartas a Ludwig Kugelmann
e ao dirigente socialista alemão Wilhelm Liebknetch, sublinha a
indecisão dos communards de marcharem imediatamente sobre Versalhes e os
seus escrúpulos em se apoderarem das reservas do Banco de França, que
poderiam ter dado outro curso à história da Comuna. Marx sabe bem que o
curso de uma revolução nunca é linear e que a realidade vivida está
sempre sujeita a avanços e recuos, a contratempos: «nas revoluções o
amanhã é sempre desconhecido»5.
A Comuna tem um papel de relevo na elaboração da teoria revolucionária
em Marx, Engels e Lenine. O ensaio de Marx, A Guerra Civil em França6,
tem a particularidade de, depois de ter feito vários avisos à classe
operária sobre os perigos de acções prematuras em 1870, evidenciar um
enorme entusiasmo com a Comuna sem deixar de criticar os seus erros, as
suas fragilidades. Ao analisar as debilidades políticas da direcção
communard não coloca em causa a Comuna. O seu objectivo é retirar lições
da derrota para robustecer a resistência, as futuras revoluções. Via
nessa experiência histórica um alcance imenso.
Em 1917, nas vésperas da Revolução de Outubro, Lenine escreve O Estado e
a Revolução7, ensaio central na sua vasta obra política. A Comuna de
Paris, os textos de Marx são o ponto de partida para as suas teses sobre
a natureza do Estado. A Comuna de Paris é:
«um passo em frente da revolução proletária universal, um passo real,
bem mais importante que centenas de programas e de raciocínios (…) na
mais democrática das repúblicas, a mais ampla democracia representativa,
nunca conseguirá eximir-se às consequências devastadoras que é a
separação entre representantes e representados. Separados desde logo
económica e socialmente, permite que os representantes manipulem os
representados de acordo com os seus próprios interesses (…) não basta
apoderar-se do Estado e fazê-lo funcionar para os seus próprios fins.
Exige-se a sua transformação impondo a democracia proletária (ditadura
do proletariado) contra a democracia formal burguesa (ditadura da
burguesia)»8.
Democracia burguesa que não hesita em recorrer à mais feroz repressão,
quando a sente necessária para a sua sobrevivência. Na realidade, ontem
como hoje, a liberdade não é igual entre todos. A liberdade nas
democracias burguesas é instrumental. Nada é mais desigual que a
igualdade formal entre desiguais. A liberdade de um trabalhador, por
razões sociais e económicas, nunca é igual à de um capitalista, o que
levou Orwell a considerar, mesmo quando se opõe ao totalitarismo, que
«para sermos corrompidos pelo totalitarismo não é necessário viver num
país totalitário».
Essa a grande lição da Comuna de Paris. Uma experiência revolucionária
ímpar na luta milenar das lutas do proletariado e dos povos oprimidos.
Uma chama de esperança revolucionária na longa história, feita de êxitos
e fracassos, da luta pela transformação do mundo e da vida, evidenciando
que o que foi possível um dia o será de novo, ainda que noutro contexto
sujeito às condições objectivas e subjectivas do momento e das
circunstâncias históricas em que eclodirá.

1.A Guerra Civil em França, Karl Marx, Edições Avante!, 1984.

2.Histoire De La Conspiration Pour L’Égalite (dite de Babeuf); de
Philippe Buonarroti, edição crítica estabelecida por Jean-Numa Ducange,
Alain Maillard, Stéphanie Roza, Jean-Marc Schiappa; La Ville Brule,
reimpressão (2014).

3.Carta de Karl Marx a Ludwig Kugelman, in Obras Escolhidas de
Marx/Engels, em três tomos, Edições Avante! 2008-2018.

4.A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Friedrich
Engels; Edições Avante!, 1986.

5.Marx (1984).

6.Em 30 de Maio de 1871, apenas dois dias depois do fim da Semana
Sangrenta, Marx apresenta ao Conselho da Internacional, em Londres, o
texto The civil war in France, que foi rapidamente traduzido para alemão
e outras línguas.

7.O Estado e a Revolução, Lenine, Edições Avante!, reimpressão (2011).

8.Ditadura do Proletariado tem dado origem às mais diversas
interpretações centradas na etimologia da palavra ditadura, sobretudo
por parte dos militantes do chamado socialismo democrático, a forma mais
aberta e liberal da ditadura da burguesia, da concepção burguesa do
Mundo, que não suprime o processo de acumulação capitalista e cuja
hegemonia ideológica continuará a dominar as massas populares se a
concepção da consciência de classe proletária não se consubstanciar em
conteúdos precisos, sem degenerescências positivistas nem fatalismos
mecanicistas que assumem como absolutamente certo e pré-estabelecido o
devir histórico. O exemplo mais acabado de Ditadura da Burguesia é o dos
EUA, em que dois partidos se alternam continuando políticas que, no
essencial, são idênticas. A Ditadura do Proletariado, desde a sua
formulação por Lenine, tem sido motivo de amplo e fundo debate
ideológico entre os revolucionários, desde logo entre Lenine e Rosa
Luxemburgo, nas hipóteses da Ditadura do Proletariado ser de partido
único ou multipartidário. O que é central na tese de Lenine é a
hegemonia de uma classe e não qualquer outro conceito.

Fonte:
https://www.abrilabril.pt/cultura/comuna-de-paris-o-assalto-aos-ceus
<https://www.abrilabril.pt/cultura/comuna-de-paris-o-assalto-aos-ceus>

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/a-comuna-de-paris-o-assalto/
18/3/2021


Nenhum comentário:

Postar um comentário